Cega? Eu?
Na semana seguinte, era Dia de Ação de Graças. Tinha aula da Susan Boone na terça-feira, mas a de quinta-feira tinha sido cancelada por causa do feriado.
Achei que, quando me encontrasse com o Harry no ateliê, na terça, eu pediria desculpa pelo que tinha acontecido na casa da Gina. Tipo assim, apesar de a Luna ficar repetindo que eu não tinha feito nada de errado, uma outra parte de mim (e uma parte bem grande) discordava. Achei que, no mínimo, devia desculpas ao Harry. Eu ia convidá-lo para ir jogar boliche comigo, a Luna e o Ron na sexta-feira seguinte. Eu sabia que a Lucy tinha jogado naquela noite, de modo que não havia possibilidade de toparmos com o Draco. Assim, o Harry saberia que eu o tinha convidado para sair por causa dele mesmo, e não para deixar o Draco com ciúme.
Eu não sabia por que era tão importante para mim, fazer com que o Harry entendesse que ele estava errado... que eu não era igual às outras garotas que ele conhecia.
Principalmente sobre o namorado da minha irmã. Que eu gostava de usar preto. E que as margaridas da minha bota tinham sido idéia minha.
Eu só queria que as coisas entre nós ficassem bem de novo.
Só que o Harry não foi à aula de terça-feira.
O Harry não foi à aula, e não dava para perguntar para alguém que estava lá por que não tinha ido. Sabe como é, tipo se ele estivesse doente. Tipo assim, a Gertie e a Lynn não eram amigas do Harry. Eu era. E eu não sabia por que ele não estava lá. Será que ele estava doente? Será que ele tinha ido para Camp Harry para passar o Dia de Ação de Graças com a família, como tinha sido divulgado pelos jornais e pelo gabinete de imprensa? Eu não sabia.
Eu só sabia que, enquanto eu estava lá desenhando as cuias que a Susan Boone tinha arrumado em cima da mesinha na nossa frente, com meu capacete de margarida na cabeça para me proteger de ataques aéreos de corvos, eu me senti meio idiota.
Idiota por estar tão decepcionada com o fato de o Harry não ter aparecido na aula. Idiota por ter de fato acreditado que as coisas seriam assim tão simples – que eu ia pedir desculpas e pronto.
Mas, acima de tudo, eu me senti idiota por ligar para aquilo. Tipo assim, eu nem gostava do Harry. Ah, claro, como amigo eu gostava dele, sim.
Ah, sim, e tinha aquela maluquice de frisson que acontecia às vezes quando estávamos juntos.
Mas também não era só por causa daquilo que eu ia esquecer o Draco de vez. Está certo, tudo bem, o Draco tinha sido totalmente estúpido na festa da Gina. Mas isso não significava que eu tinha me desapaixonado dele, nem nada assim. Tipo assim, quando você passa tanto tempo amando uma pessoa, como tinha acontecido comigo em relação ao Draco, você consegue enxergar totalmente além de toda a estupidez da pessoa. O modo como eu me sentia em relação ao Draco era mais profundo do que aquilo. Tipo assim, eu simplesmente sabia que a maneira como ele se sentia a meu respeito era mais profunda do que o jeito como ele se sentia em relação à Lucy.
Só que ele ainda não tinha conhecimento desse fato.
Bom, mas se o Harry estava achando que ia se livrar de mim só porque tinha faltado à aula da Susan Boone na terça, ele ia ter que mudar de pensamento, como diz a Molly. Porque, na posição de embaixadora teen na ONU, eu ia à Casa Branca toda quarta-feira. De modo que o meu plano era o seguinte: se o Harry ainda não tivesse ido viajar, eu iria simplesmente sair procurando por ele. Em algum momento na quarta-feira antes do Dia de Ação de Graças, quando o Sr. White, o secretário de imprensa, não estivesse prestando atenção.
Só que isso também não deu muito certo, porque naquele dia o Sr. White estava totalmente prestando atenção em mim.
E isso porque as inscrições para o concurso Da Minha Janela, da ONU, não paravam de chegar. Estávamos recebendo quadros de lugares tão longínquos quanto o Havaí e tão próximos quanto Chevy Chase (a inscrição do Draco). O Sr. White reclamava muito, porque havia quadros demais e não tinha lugar para guardar todos. E só podíamos escolher um para mandar para o embaixador americano no ONU, em Nova York.
Alguns quadros eram muito ruins. Alguns eram muito bons. Todos eram muito interessantes.
O que mais me interessou tinha sido pintado por uma garota chamada Maria Sanchez, que morava em San Diego. O quadro da Maria mostrava um quintal com lençóis recém-lavados pendurados em um varal. Entre os lençóis, que esvoaçavam por causa de uma brisa invisível, dava para ver uns pedaços de cerca de arame-farpado bem ao longe... mas não tão longe assim, porque dava para ver umas garotas entrando por um buraco que tinham aberto na cerca, e corriam para fugir de homens com uniformes marrons, que carregavam armas e cassetetes e perseguiam as pessoas. O nome do quadro era Terra da Liberdade?, assim mesmo, com ponto de interrogação.
O Sr. White, o secretário de imprensa, detestou o quadro. Ficava falando:
-Este concurso não tem nada a ver com militância política.
Mas eu tinha uma idéia meio diferente.
-O concurso é sobre o que você vê pela sua janela – argumentei. – E é isso que a Maria Sanchez, de San Diego, vê da janela dela. Ela não está fazendo nenhuma militância política. Ela só está pintando o que vê.
O Sr. White rangeu os dentes. Ele tinha gostado de um quadro feito por Angie Tucker, de Little Deer Isle, no estado do Maine. O quadro da Angie era de um farol e do mar. Era um quadro bacana. Mas, por algum motivo, eu não acreditei nele. Que aquilo era o que a Angie via todos os dias da janela dela. Tipo assim, um farol? Fala sério. Quem ela achava que era? Alguma personagem de livro?
E era por isso que eu não achava o quadro da Angie tão bom quanto o da Maria.
Surpreendentemente, o do Draco também não.
Ah, o do Draco era bom. Não me entenda mal. Como todos os quadros do Draco , o que ele inscreveu no concurso Da Minha Janela era genial. Mostrava três jovens com cara de desiludidos parados em um estacionamento do lado de uma loja de conveniência de bairro, com bitucas de cigarro pisadas no chão e garrafas de cervejas quebradas espalhadas por ali; os cacos de vidro brilhavam igual a esmeraldas. Falava eloqüentemente a respeito da terrível condição da juventude urbana, da falta de esperança da nossa geração.
Era um quadro bom. Um quadro ótimo, para falar a verdade.
Mas, adivinha só?
Não era o que o Draco via da janela dele.
E eu sei disso com certeza. Isso porque a loja de conveniência mais próxima da casa do Draco fica a quarteirões de distância. E não dá para ver aquilo da janela dele de jeito nenhum. O Draco mora em uma casa grande cercada de árvores altas e cheias de folhas e com uma entrada circular na frente. E ao mesmo tempo em que eu reconheço que a vista da janela do Draco é meio chata, de jeito nenhum eu poderia dar o prêmio para ele por mentir, basicamente. Por mais que eu o adorasse, não dava, sabe como é, para deixar que aquilo afetasse o meu critério de escolha. Eu tinha que ser justa.
E isso significava que a inscrição do Draco estava efetivamente fora do páreo.
O Sr. White e eu tínhamos chegado a um impasse. Dava para ver que ele estava cheio daquela discussão e que só queria sair dali. Era quarta-feira antes do Dia de Ação de Graças e tudo o mais. Achei que devia dar um tempo para ele e mandei:
-Bom, Sr. White, escuta só. O que você acha de a gente abreviar a minha visitinha nesta semana? Eu estava pensando em dar uma passada lá na casa do presidente e dar um oi para o Harry, sabe como é, antes de ele sair para viajar...
O Sr. White lançou um olhar na minha direção.
-Você não vai dar uma passada em lugar nenhum. Ainda temos uma tonelada de trabalho. Tem o Festival Internacional da Criança no próximo sábado. O presidente quer muito que você esteja presente...
Fiquei toda espevitada ao ouvir isso.
-É mesmo? O Harry vai?
O sr. White olhou para mim com ar exausto. Às vezes eu achava que o Sr. White amaldiçoava o dia em que eu impedi que Larry Wayne Rogers matasse o patrão dele. Não que ele quisesse que o presidente morresse. Não mesmo. O Sr. White adorava o chão em que o cara pisava. Ele queria mesmo era se livrar de mim.
-Hermione – suspirou ele. – Eu não sei. No entanto, haverá representantes de mais de 80 países presentes, inclusive o presidente, e seria muito bom se, pelo menos dessa vez, você colocasse uma roupa mais arrumada. Tente parecer-se com uma jovem dama, e não com uma apresentadora desses canais de música.
Olhei para a minha bota, minha meia-calça preta grossa, meu kilt que no passado fora xadrezinho vermelho e que eu tinha tingido de preto e minha blusa de gola alta preta preferida.
-Você acha que eu tenho cara de VJ? – perguntei, emocionada com o elogio inesperado.
O Sr. White revirou os olhos e perguntou se dava para eu fazer alguma coisa a respeito do gesso. Estava meio feio porque estava ficando velho. Como eu tinha dito a Harry que faria, decorei o gesso com motivos patrióticos, com águias e o Sino da Liberdade e até mesmo um retrato de celebridade pequenininho (da Dolley Granger). Catorze garotas já tinham pedido para ficar com o gesso quando fosse tirado. A Molly sugeriu que eu fizesse um leilão na Internet.
-Porque daí – explicou ela – você poderia com certeza conseguir milhares de dólares por ele. Depois da queda do Muro de Berlim, fizeram leilão dos pedacinhos. Por que não o gesso da garota que transformou o mundo em um lugar seguro para a democracia?
Eu não sabia o que ia fazer com o meu gesso quando tirasse, mas achei que ainda tinha muito tempo para resolver. Ainda ia ficar com ele mais uma semana.
Mas dava para entender a posição do Sr. White. O gesso tinha ficado meio sujo, e tinha umas partes que estavam esfarelando, nos lugares em que tinha molhado (era difícil lavar uma mão sem a ajuda da outra).
-Talvez a sua mãe possa dar um jeito – sugeriu, com a cara franzida. – Tipo uma tipóia bacana para, hum, esconder o braço?
Se eu já não soubesse, por causa da atitude dele sobre o concurso de pintura e tal, eu ia ter percebido pela maneira como ele olhava para o meu gesso: o Sr. White não gostava de arte.
Quando ele parou de tagarelar a respeito de todas as pessoas que estariam no Festival Internacional da Criança, já eram cinco horas, e hora de ir para casa. Não tinha mais jeito de eu escapulir para procurar o Harry. Mais uma vez, tinha perdido a minha oportunidade.
E isso não me deixou exatamente em um clima festivo de feriado, sabe como é? Eu nem estava mais ligando por ficar quatro dias sem ir à escola. Normalmente, quatro dias livres das aulas de alemão me deixariam nas nuvens. Mas, por alguma razão, dessa vez não era tão legal assim. Tipo assim, tecnicamente, significava que, se o Harry não aparecesse no Festival Internacional da Criança, ia demorar cinco dias inteiros para a gente se ver de novo. Eu poderia ter ligado para ele, acho, mas não era a mesma coisa. E eu nem tinha o e-mail dele.
Nem mesmo o fato de a Molly estar na cozinha assando torta serviu para me animar. Ela estava fazendo torta de abóbora (eca!) para o dia seguinte. E nem era para nós. Era para os filhos, e também para os netos, da Molly. Como ela passava a semana interina na nossa casa, só podia organizar a festa de Ação de Graças dela quando estava lá. Minha mãe não ligava. Nós sempre passávamos o Dia de Ação de Graças na casa da minha avó, em Baltimore, então ela não usava o forno nem nada.
-Qual é o seu problema? – a Molly quis saber quando eu entrei na cozinha, larguei meu casaco e minha mochila e ataquei direto as bolachas integrais sem nem mesmo reclamar que ela só dava coisas gostosas para a gente quando o Draco ia lá.
-Nada – respondi. Sentei-me à mesa da cozinha e fiquei olhando para a capa do romance que a Rebeca estava lendo. Aparentemente, ela havia abandonado as histórias de amor em nome da ficção científica de novo, já que tinha nas mãos o último capítulo da saga da Academia Jedi. Levando todos os aspectos em consideração, achei que tinha tomado uma decisão sábia.
-Então vê se pára de suspirar – a Molly estava tensa. A Molly sempre ficava tensa antes de feriados. Ela falava que era porque nunca sabia com qual das ex-esposas o Fred ia aparecer... ou se ia chegar lá com uma mulher totalmente nova. A Molly dizia que era mais do que qualquer mãe podia suportar.
Suspirei de novo, e a Rebecca tirou os olhos do livros.
-Se você está chateada porque o Draco não está aqui - disse com voz cheia de tédio -, não fique. Ele e a Lucy devem estar estourando por aí daqui a alguns minutos. Eles só foram até a videolocadora para pegar uma cópia de Duro de matar. Você sabe que esse é o filme de feriado preferido do papai.
Funguei.
-Por que é que eu ia estar chateada com o fato de o Draco não estar aqui? – inquiri.
Quando a Rebecca revirou os olhos, sem dizer nada, eu mandei, provavelmente em tom mais alto do que deveria:
-Eu não gosto do Draco, sabe, Rebecca. Daquele jeito, sabe como é.
-Claro que não – respondeu Rebecca (mas não em tom de quem tinha acreditado) e voltou para o livro dela.
-Não gosto mesmo – reforcei. – Credo. Até parece. Tipo assim, ele é namorado da Luy.
-E daí? – Rebecca virou uma página.
-E daí que eu não gosto dele desse jeito, tá?
Credo, será que eu ia ter que passar o resto da vida negando meus sentimentos verdadeiros para todas as pessoas que eu conhecia? Tipo assim, na escola ficava todo mundo tipo “a Mione e o Harry”, “a Mione e o Harry”. Até a imprensa, já que o nosso grande “encontro” tinha sido só “a Mione e o Harry”, “a Mione e o Harry”. Até o noticiário da TV tinha mencionado alguma coisa. Em rede nacional. Não foi tipo a manchete nem nada, mas sim uma daquelas coisas de interesse geral que passam uns cinco minutos antes de o jornal sério começar. Foi completamente humilhante. Os repórteres ficaram tipo: “O Natal não é a única coisa que está no ar aqui na capital. Não, parece que o amor juvenil também está por aí.”
Era totalmente revoltante. Tipo assim, não era para menos que o Harry não tinha aparecido na aula da Susan Boone. O lugar estivera lotado de repórteres e, quando eu passei por eles, apressada, ouvi: “Você e o Harry se divertiram na festa, Mione?”
O que me lembrou de uma coisa. Olhei para Rebecca e mandei, com a voz mais arrogante que consegui:
-Além disso, se eu gosto tanto assim do Draco, que papo era aquele de frisson que você disse ter sentido entre mim e o Harry? Hein? Como é que eu posso ter frisson com um cara se estou supostamente apaixonada por outro?
A Rebecca simplesmente olhou para mim e fuzilou:
-Porque você está totalmente cega em relação ao que está bem na sua frente – e voltou a ler o livro dela.
Cega? Do que é que ela estava falando, cega? Graças à Susan Boone, eu nunca tinha enxergado tão bem na vida, muito obrigada. Não era eu quem desenhava os melhores ovos do ateliê? E aquelas cuias que eu tinha feito no dia anterior? As minhas cuias tinham ficado melhores do que as de qualquer outra pessoa. Até mesmo a Susan Boone ficou impressionada. Durante a hora da crítica, no final da aula, ela até disse: “Mione, você está fazendo um progresso tremendo.”
Um progresso tremendo. Como é que uma pessoa cega poderia estar fazendo um progresso tremendo na aula de ARTE?
Comentei o fato com a Rebecca, mas ela só comentou:
-Ah, é? Bom, pode até ser que você seja boa para enxergar ovos e cuias, mas não enxerga nada além disso.]
E daí eu disse a única coisa que uma irmã mais velha pode dizer à mais nova quando ela está agindo como se fosse a tal. Deus sabe que a Lucy já disse isso para mim um montão de vezes.
Depois que eu falei, a Molly me mandou para o quarto.
Mas eu nem liguei. Aliás, eu preferia ficar no meu quarto. Na verdade, se eu pudesse fazer as coisas do meu jeito, nunca sairia do quarto, a não ser para comer e para assistir a Buffy, a caça-vampiros. Mas só. Porque, cada vez que eu saio do quarto, parece que eu me meto em uma encrenca diferente. Ou eu salvo alguém de ser assassinado ou me meto em discussões a respeito do Picasso ou então alguém vem me dizer que eu sou cega.
Bom, é isso aí. Vou ficar no meu quarto para sempre. E ninguém vai me deter.
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