Matando Aula



Por sorte, estava chovendo na quinta-feira, quando a Molly me levou para o ateliê da Susan Boone. Isso significa que a possibilidade de ela achar lugar para estacionar, procurar o guarda-chuva no banco de trás, sair do carro e me levar até a porta do estúdio era exatamente zero.

Em vez disso, ela parou no meio da Connecticut Avenue (fazendo com que todos os carros atrás dela buzinassem) e mandou:

- Se você não estiver aqui exatamente às cinco e meia, eu vou atrás de você como uma louca. Entendeu bem? Eu vou sair caçando você como se fosse um animal.

- Tudo bem – respondi, soltando o cinto de segurança.

- Estou falando sério, Dona Hermione. – frisou Molly. – Cinco e meia em ponto. Ou eu vou estacionar em fila dupla e você vai ter que pagar a taxa do guincho se a minivan for guinchada.

- Pode ser – respondi, saindo para a chuva torrencial.- Até mais.-
Então, corri até a porta do ateliê.

Só que é claro que não subi a escada estreita. Bom, como é que eu ia fazer isso? Eu tinha que lutar contra o sistema, certo?

Além disso, não tinha sido completamente humilhada lá em cima, anteontem? Será que dava mesmo para entrar lá toda faceira, como se nada tivesse acontecido?

A resposta, obviamente, era não. Não, não dava.

Em vez disso, o que fiz foi esperar cerca de um minuto no hallzinho de entrada, com a água da chuva pingando do capuz da minha capa emborrachada. Enquanto estava lá, tentava não me sentir muito culpada. Eu sabia que estava assumindo uma posição e tal, ao boicotar a Susan Boone. Tipo assim, eu estava mostrando que apoiava totalmente os rebeldes da arte de todos os lugares.

Mas os meus pais estavam gastando um bom dinheiro com essas aulas de arte. Ouvi meu pai reclamando que custavam, por mês, quase tanto quanto o especialista em comportamento animal. Parece que a tal da Susan Boone era meio famosa. Por que ela era famosa eu não fazia a mínima idéia mas, aparentemente, cobrava uma boa grana por sua tutela artística.

De modo que, apesar de eu estar lutando contra o sistema, não me sentia muito à vontade, sabendo que estava desperdiçando o dinheiro que meus pais trabalhavam tanto para ganhar.

Mas, se você pensar bem, eu sou a filha mais barata dos meus pais. Tipo assim, eles gastam uma pequena fortuna com a Lucy todo mês. Ela sempre precisa de roupas novas, pompons novos, aparelho de dente novo, cremes dermatológicos novos, qualquer coisa, para manter sua imagem como uma das lindas da escola John Adams.

E a Rebecca, credo. Só as taxas de laboratório da Horizon chegam bem perto do produto interno bruto de um pequeno país subdesenvolvido.

E eu? O que é que meus pais gastavam comigo todo mês? Bom, até eu ser pega com o negócio dos desenhos de celebridades, nada além da educação. Tipo assim, eu usava os sutiãs velhos da minha irmã, certo? E eu nem precisava de roupas novas esse ano: tingi todas as roupas do semestre passado de preto e voilá! Um guarda-roupa inteiramente renovado.

Fala sério, no que diz respeito a filhas, eu sou uma pechincha. Eu nem como muito, já que detesto tudo que é comida, menos hambúrgueres, as baguetes da Mulher do Pão e sobremesa.

De modo que eu nem devia estar me sentindo culpada por cabular a aula de arte. Não mesmo.

Mas fiquei lá parada, o cheiro bem conhecido de terebintina me envolveu, e dava para ouvir, bem lá no alto da escada, o som baixinho da música erudita, além de um grasnado ocasional de Joe, o corvo. De repente, fui envolvida por uma estranha vontade de subir aquela escada, ir até meu banco, sentar e desenhar.

Mas daí me lembrei da humilhação que tinha sofrido da última vez que entrei naquela sala. E na frente daquele tal de Harry, além do mais! Tipo assim, é verdade, ele não era tão fofo quanto o Draco, ou qualquer coisa assim. Mas ele era um cara, puxa! Um cara que gostava de Save Ferris! E que disse ter gostado da minha bota!

Tudo bem, eu não ia subir aquela escada de jeito nenhum. Estava assumindo uma posição. Uma posição contra o sistema.

Em vez disso, fiquei esperando ali no vestíbulo, rezando para que ninguém entrasse enquanto eu me encolhia ali e dissesse: “Oi Mione, você não vai subir?”

Como se alguém ali fosse se lembrar do meu nome! A não ser, possivelmente, Susan Boone.

Mas ninguém entrou. Quando dois minutos tinham se passado, eu abri a porta com cuidado e olhei para a rua ensopada de chuva.
A Molly e a minivan não estavam mais lá. A barra estava limpa. Dava para sair.

O primeiro lugar a que fui foi a Capitol Cookies. Bom, como é que eu poderia fazer outra coisa? A confeitaria parecia tão aconchegante e convidativa, ainda mais com aquela chuva e tudo mais, e eu por acaso tinha US$ 1,86 no bolso, exatamente o preço do biscoito de chocolate Congressional. Além disso, o confeito que entregaram na minha mão ainda estava quente do forno. Guardei no bolso da minha capa emborrachada. Era proibido entrar com comida na Static, meu próximo destino.

Naquela tarde não estava tocando Garbage. Era o Donnas que cantava pelos alto-falantes. Não era ska, mas dava para engolir. Fui até o lugar onde tinha fones plugados na parede para as pessoas ouvirem os CDs que estavam pensando em comprar. Passei uma boa meia hora ouvindo o CD do Less Than Jake que eu queria, mas não tinha dinheiro para comprar, pois o financiamento materno para tais itens estava fechado.

Enquanto ouvia, eu levava pedacinhos de biscoito até a boca com a mão e repetia para mim mesmo que o que estava fazendo não era tão errado assim. Tipo assim, lutar contra o sistema. Além disso, olha só a Luna: há anos que os pais dela a obrigam a freqüentar aulas de educação religiosa enquanto eles estão na igreja. Como tem, tipo assim, uns dois anos de diferença entre a Luna e os irmãos dela, cada um dos três estava em uma classe diferente, de modo que ela nunca soube, até este ano, que o Marco e o Javier davam tchauzinho para a mãe quando ela os deixava na frente da escola e logo escapuliam para o Fliperama Beltway, bem na esquina. Ela só descobriu quando, um dia, a classe dela foi liberada mais cedo e ela saiu procurando os irmãos, mas não encontrou.

De modo que, basicamente, todos os anos que a Luna passou sentada lá, ouvindo os professores de religião dizendo que ela deveria resistir a tentações e tal, durante todo aquele tempo os irmãos dela (e praticamente todos os outros garotos e garotas legais que freqüentavam a igreja dela) estavam ali ao lado, batendo recordes no Super Mario.

Então, o que Luna faz agora? Ela dá tchauzinho para a mãe igual ao Marco e ao Javier e daí vai, também, para o Fliperama Beltway – e fica fazendo a lição de casa de geometria sob o brilho da tela do Delta Force.

E ela se sente mal por isso? Não. Por que não? Porque ela diz que, se Deus a tudo perdoa de verdade, como ensinaram para ela na aula, Ele vai entender que ela precisa mesmo daquele tempinho extra de estudo, senão vai repetir em geometria, nunca vai entrar em uma boa faculdade e vencer na vida.

Então, por que é que eu deveria me sentir mal por cabular a aula de desenho? Tipo assim, é só uma aula de desenho. A Luna, por outro lado, está cabulando Deus.

Claro que meus pais, no caso improvável de descobrirem o que eu fiz, vão entender que eu só estava tentando preservar minha integridade artística. Claro que eles vão entender. Provavelmente. Talvez. Em um dia bom, acho, quando não tiverem encontrado bifenil policlorinado no reservatório de água de alguma cidadezinha do Meio-Oeste, ou quando não haja muita oscilação na economia do norte da África.

Se alguém na Static achou esquisito uma garota de 15 anos, morena, vestida de preto dos pés à cabeça, ficar por lá durante duas horas, ouvindo CDs mas sem comprar nada, ninguém disse nada para mim. A mina do caixa, que tinha o tipo de cabelo preto espetado que eu sempre quis ter, mas nunca tive coragem, estava ocupada demais paquerando outro atendente, um cara de calça clara e camiseta do Lê Tigre, de modo que não prestou atenção em mim.

OS outros clientes também estavam me ignorando. A maior parte deles parecia ser estudante de faculdade matando tempo entre as aulas. Alguns poderiam estar ainda no ensino médio. Um deles era um cara meio velho, tipo com uns 30 anos, com roupas militares, carregando uma bolsa de lona. Ele ficou um pouco por ali nos fones, onde eu estava, ouvindo Billy Joel. Fiquei surpresa de ver que um lugar igual ao Static tinha Billy Joel para vender, mas tinha. O cara ficou ouvindo “Uptown girl” uma vez atrás da outra. Aliás, meu pai é fã do Billy Joel, ele escuta isso o tempo todo no carro (e é por isso que andar de carro com ele é tão divertido), mas até ele já superou “Uptown Girl”.

Mais ou menos no meio do segundo álbum do Spitvalve, meu biscoito já tinha acabado. Enfiei a mão no bolso e só encontrei migalhas. Pensei em ir até a Capitol Cookies para comprar outro, mas lembrei que estava dura. Além disso, àquela altura, já eram quase cinco e meia. Eu precisava sair para esperar a Molly vir me buscar.

Coloquei o capuz na cabeça e saí para a rua, na chuva. Não estava chovendo tanto quanto chovia quando eu cheguei, mas achei que o capuz impediria que alguém que saísse do Estúdio de Arte Susan Boone me reconhecesse e mandasse essa: “Ei, onde é que você se enfiou?”

Como se algum deles fosse sentir a minha falta.

Tinha escurecido enquanto eu ainda estava na loja de CDs. Todos os carros que passavam estavam com o farol aceso. E tinha muito mais carros do que antes, porque era a hora do rush e todo mundo estava tentando voltar para casa para ficar ao lado de seus entes queridos. Ou talvez só quisessem assistir a Friends. Sei lá.

Fiquei parada na calçada, na frente da Igreja Fundamental de Cientologia, apertando os olhos para enxergar através da garoa fina e dos faróis, olhando na direção de que a Molly deveria vir. Parada ali, não pude evitar sentir um pouco de pena de mim mesma. Tipo assim, lá estava eu: 15 anos, canhota, com cabelos castanhos, sem namorado, incompreendida, filha do meio rejeitada, dura, parada na chuva depois de ter cabulado a aula de desenhos porque não suporta críticas. O que aconteceria se eu crescesse e abrisse meu próprio negócio de retratos de celebridades ou algo assim? Será que eu abandonaria tudo se a coisa não pegasse de imediato? Será que eu ia me esconder na Static? Talvez eu pudesse simplesmente arrumar logo um trabalho lá, para facilitar as coisas. Na verdade, não parecia um lugar ruim para trabalhar. Aposto que os funcionários têm desconto nos CDs

Enquanto eu estava lá com vergonha de mim mesma por não enfrentar as coisas, o velho que gostava tanto de Billy Joel saiu da Static e ficou parado do meu lado, apesar de o sinal de pedestres estar verde. Observei-o com o canto do olho. Ele estava remexendo em alguma coisa embaixo do poncho de chuva dele, que tinha estampa camuflada. Fiquei imaginando que ele podia ter roubado algo da loja. Na Static, reparei que eles tinham um Paredão da Vergonha, onde colocavam fotos de pessoas que tinham tentado roubar alguma coisa. Esse sujeito parecia o melhor candidato para o Paredão da Vergonha que eu já tinha visto.


Logo depois disso, vi luzes vermelhas piscantes se aproximando através da chuva, quebrando a escuridão, e pensei, tipo assim, pronto, os guardas chegaram. O Sr. Uptown Girl está ferrado.


Só que daí eu vi que as luzes vermelhas não tinham nada a ver com guardas. Em vez disso, faziam parte da comitiva de carros do presidente. Na frente vinha o carro-líder, um jipão preto com uma faixa de luzes vermelhas no teto. Depois vinha outro jipão preto e, atrás dele, uma limusine preta comprida. Atrás dela tinha mais alguns jipões com luzes vermelhas.


Em vez de ficar anima porque eu ia ver o presidente passar (apesar de não dar para vê-lo dentro da limusine porque as janelas são daquele tipo esquisito em que as pessoas conseguem ver de dentro para fora, mas não de fora para dentro), pensei: que droga. Porque a Molly devia estar em algum lugar atrás da comitiva, que avançava a passo de tartaruga. Não só ela ia ficar de mau humor total quando finalmente conseguisse me pegar, como também eu não ia ter a chace de não cruzar com o Harry na saída da aula da Susan Boone. Ele com certeza ia me ver ali parada e ficar tipo: "Cara, ela é esquisita", e nunca mais falaria comigo. Não que eu ligasse, porque estou completamente apaixonada pelo namorado da minha irmã. Mas foi legal da parte dele reparar na minha bota. Quase ninguém tinha reparado nisso.


E, além do mais, quando se mora em Washington, D.C., ver o presidente passar não é nada de mais, porque ele vive passando o tempo todo.


E foi então que uma coisa super esquisita aconteceu. O primeiro jipão da comitiva aproximou-se do meio-fio bem na minha frente... e parou. Simplesmente parou.


E o sinal nem estava vermelho.


Atrás do primeiro jipão, o segundo parou, depois a limusine e assim por diante. O trânsito estava totalmente parado atrás daquilo tudo, por toda extensão da Connecticut Avenue. Daí uns caras com fones nos ouvidos desceram do carro e foram todas na direção da limusine. E então, para meu completo assombro, o presidente dos Estados Unidos saiu da limusine e caminhou até a Capitol Cookies, com um punhado de caras do Serviço Secreto na cola dele, segurando guarda-chuvas, olhando em volta e falando nos walkie talkies!


É isso aí, ele simplesmente entrou na Capitol Cookie, como se fizesse aquilo todo dia.


Eu não sabia que o presidente gostava da Capitol Cookies. A Capitol Cookies é boa, mas não é a melhor confeitaria que existe por aí, nem nada assim. Tipo assim, só existe aquela loja, não tem nenhuma filial.


E não é se pensar que, se você fosse o presidente, pediria ao dono que enviasse seu suprimento pessoal de biscoitos, de modo que você não precisaria sair da sua limusine, na chuva, só para pegar alguns doces? Tipo assim, se eu fosse dona de uma confeitaria e descobrisse que o presidente dos Estados Unidos gostava dos meus biscoitos, eu iria me assegurar que ele recebesse um fornecimento completo dos meus produtos.


Por outro lado, os donos da Capitol Cookies provavelmente preferem que todos vejam o presidente entrando na loja. Assim, obtém-se uma divulgação bem maior do que se você simplesmente mandasse biscoitos em uma remessa particular.

E então, enquanto eu estava lá no escuro e na chuva, com as luzes vermelhas no teto do jipão piscando na minha cara, vi o sr. Uptown Girl jogar o poncho de chuva para trás.


E revelou-se que o que ele estava fazendo lá em baixo não tinha nada a ver com o roubo de CDs. Nada mesmo. Revelou-se que o que ele estava fazendo lá em baixo tinha a ver com uma pistola enorme, que ele sacou e apontou na direção da porta da Capitol Cookies... a porta que o presidente cujos biscoitos haviam sido providenciados com rapidez surpreendentemente, estava usando para sair da loja.


Eu não sou exatamente o que se pode chamar de uma pessoa corajosa. Eu só defendo o pessoal da escola que os outros ficam enchendo porque eu lembro como era eu tratada no Marrocos e durante toda aquela história da fonoaudiologia.


Mas isso não significa que eu seja o tipo de garota que se joga no caminho do perigo sem dar a mínima para a segurança pessoal. Tipo assim, o mais próximo que eu cheguei de algo que pode ser qualificado como combate físico nos últimos tempos foi a última vez que eu e a Lucy brigamos pela posse do controle remoto.

E, obviamente, não sou muito a favor de confrontos. Tipo assim, estava dando um golpe em nome dos espíritos criativos ao boicotar a aula da Susan Boone e tal. Mas, fala sério, eu só estava envergonhada de mais para voltar lá depois da humilhação que sofri da última vez.


Mas sei lá. O que aconteceu a seguir era tão atípico para mim que foi como se outra pessoa tivesse possuído o meu corpo durante um minuto, ou qualquer coisa assim. O que eu sei é que, em um segundo, eu estava ali parada, observando o sr. Uptown Girl erguer a arma para atirar no presidente quando ele saia da Capitol Cookies...


...e, no segundo seguinte, eu tinha me jogado em cima dele.

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