Paranóia
Quando contei ao Draco o que tinha acontecido no Estúdio de Arte Susan Boone, ele só riu.
Riu! Como se fosse engraçado!
Eu meio que fiquei ofendida por causa disso, mas acho que devia ser meio engraçado. De certo modo.
- Mione – ele sacudiu a cabeça, e a cruz egípcia de prata que carrega na orelha brilhou com a luz. – Você não pode deixar o sistema vencer, Você precisa lutar contra o sistema.
Muito fácil dizer isso. Afinal, ele tem 1,95m e pesa mais de 90 kg. O técnico de futebol americano da escola fez de tudo para convence-lo a entrar no time depois que o melhor defensor de linha se mudou para Dubai.
Mas o Draco nunca faria parte do estratagema do treinador Donnelly para dominar o campeonato do nosso distrito escolar. Draco não acredita em esportes organizados, mas não porque tenha, como eu, ficado ressentido por aquela atividade consumir fundos valiosos que poderiam ser destinados ao departamento de arte. Não, o Draco está convencido de que os esportes, assim como a loteria, só servem para enganar o proletariado e leva-lo a acreditar que um dia vai se elevar acima de seus colegas bebedores de cerveja e motoristas de pick-ups.
É muito fácil para um cara como o Draco lutar contra o sistema.
Eu, por outro lado, só tenho 1,60 m e não sei quanto peso, já que a minha mãe jogou fora a balança depois de ler uma reportagem a respeito de como a anorexia atinge as adolescentes. Além disso, nunca consegui me pendurar na corda durante as aulas de educação física, já que herdei do meu pai a total falta de força na parte superior do corpo.
Quando fiz essa observação, no entanto, o Draco começou a rir ainda mais, o que eu achei, sabe como é, meio sem educação. Para um cara que supostamente é a minha alma gêmea e tal. Mesmo que ele talvez ainda não saiba disso.
- Mione – explicou ele –, não estou falando de lutar contra o sistema de maneira física. Você precisa ser mais esperta do que isso.
Ele estava sentado na mesa da cozinha, servindo-se de uma caixa de rosquinhas com cobertura de chocolate que a Molly comprou para o lanche da tarde. A gente não costuma ter doces para comer no lanche. A minha mãe só quer que a gente tenha maçãs, bolachas integrais e leite, coisas assim. Mas a Molly, ao contrário dos meus pais, não liga para as notas do Draco nem para as afirmações políticas que ele gosta de fazer com uma espingarda de chumbinho, de modo que, sempre que ele aparece e ela está por lá, é uma festa só. Às vezes ela até assa um bolo. Uma vez, fez brigadeiro. Estou dizendo, a Lucy sair com o único cara no mundo que inspira a Molly fazer brigadeiro prova definitivamente que não existe justiça no mundo.
- A Susan Boone está sufocando a minha criatividade – exclamei, indignada. – Ela está tentando me transformar em algum tipo de clone artístico...
- Claro que está – Draco parecia surpreso ao dar uma dentada em mais um bolinho. – É isso que os professores fazem. Você tentou ser um pouco criativa, colocou um abacaxi a mais, e... BAM! Lá vem o punho da conformidade para esmagar você.
Quando o Draco fica animado, ele começa a mastigar com a boca aberta. Foi o que ele fez. Pedacinhos de bolo saíram voando pela mesa e bateram na revista que Lucy estava lendo. Ela abaixou seu exemplar de Nova Moda, olhou para os pedacinhos de bolo colados na capa, olhou para o Draco e disse:
- Cara, vê se fala sem cuspir.
E daí voltou a ler a respeito de orgasmos.
Está vendo? Está vendo o que eu quero dizer quando falo que ela ignora a genialidade do Draco?
Dei uma mordida no meu bolinho. A mesa da cozinha, onde geralmente só tomamos café e lanche, fica em uma espécie de átrio envidraçado que se projeta a partir da cozinha para o quintal. Nossa casa é antiga (tem mais de cem anos de idade, como a maior parte das casas de Cleveland Park, que são umas construções vitorianas com um monte de vitrais e balaustradas, pintadas com cores vivas). Por exemplo, a nossa casa é azul-turquesa, amarela e branca.
O átrio envidraçado e a mesa da cozinha foram incorporados à casa no ano passado. O teto é de vidro, três paredes são de vidro e a mesa da cozinha é feita com um bloco enorme de vidro. Como estava ficando escuro lá fora, eu via meu reflexo em todo canto. E não gostei muito do que vi:
Uma garota de tamanho médio, com pele branca demais e sardas, vestida toda de preto, com um monte de cabelo castanho ondulado saindo da cabeça, todo espetado.
E gostei ainda menos do que vi ao lado do meu reflexo:
Uma garota com traços delicados sem sarda nenhuma, usando um uniforme roxo e branco de animadora de torcida, com cabelo brilhante perfeitamente assentado e levemente ondulado apenas no local em que saía de uma fivela.
E:
Um cara gostoso, lindo, de ombros largos, com olhos azuis penetrantes e cabelo loiro comprido, usando jeans rasgados e um sobretudo militar azul-marinho, comendo bolinhos como se não houvesse amanhã.
E lá estava eu, no meio, entre os dois, onde sempre estive.
Uma vez, assisti a um documentário sobre a ordem de nascimento dos filhos no Canal de Saúde, e adivinha só o que dizia:
Primeira filha (também conhecida como Lucy): mandona. Sempre consegue o que quer. Filha com maior possibilidade de tornar-se presidente de uma empresa importante, ditadora de um país pequeno ou supermodelo, como preferisse.
Última filha (também conhecida como Rebecca): Bebê. Sempre consegue o que quer. Filha com maior probabilidade de descobrir a cura para o câncer, ter seu próprio programa de entrevistas, entrar na nave-mãe quando a invasão começar e mandar uns “Bem-vindos à Terra” e assim por diante.
Filha do meio (também conhecida como eu mesma): Perdida na confusão. Nunca consegue o que quer. Filha com maior probabilidade de se transformar em adolescente fugitiva, vivendo de restos de Big Mac recolhidos nos lixos atrás do McDonald’s fica no local durante semanas até que alguém perceba que ela desapareceu.
É a história da minha vida.
Só que, pensando bem, o fato de eu ser canhota indica que provavelmente tive, a certa altura, uma irmã gêmea. Pelo menos de acordo com um artigo que li no consultório do dentista. Segundo uma teoria aí, a maior parte dos canhotos começou a vida como metade de um par de gêmeos. Uma em cada dez gravidezes começa com a gestação de gêmeos. Uma em cada dez pessoas é canhota.
É só fazer as contas.
Durante um tempo, achei que minha mãe nunca tinha mencionado minha irmã gêmea morta para não me magoar. Mas daí li na internet que em 70% das gravidezes que começam como gestação de gêmeos, um dos bebês desaparece. Assim mesmo. Puf! Isso é conhecido como a síndrome do gêmeo desaparecido, e geralmente a mãe nem percebe que estava carregando dois bebês em vez de um só, já que o outro desaparece tão no começo da gestação.
Não que alguma coisa dessas faça a menor diferença. Porque mesmo que a minha irmã gêmea tivesse sobrevivido, eu ainda seria a filha do meio. Só que daí eu teria alguém com quem dividir o fardo. E talvez ela tivesse feito com que eu desistisse de estudar alemão.
- Bom – respondi, parando de encarar o meu reflexo e abaixando os olhos para o jogo americano debaixo dos cotovelos. – E o que é que eu devo fazer agora? Na escola, ninguém me falava sobre coisas a mais nos meus desenhos. Sempre deixavam colocar tudo o que eu queria.
Draco deu uma gargalhada.
- Escola – exclamou. – Tá bom.
O Draco estava vivendo um conflito bem complicado com a coordenação da escola por causa de uns quadros que ele tinha inscrito em uma exposição de arte no shopping center. O sr. Espósito, diretor da John Adams, onde o Draco, a Lucy e eu estudamos, não gostou nadinha de o Draco ter inscrito os quadros em nome da instituição de ensino (ele não tinha visto os quadros). E então, quando os trabalhos foram aceitos, ele ficou louco da vida, porque o teor das pinturas não era o que ele considerava expressão da “qualidade John Adams”. Os quadros todos eram de adolescentes com bonés, matando tempo na frente de uma loja de conveniência. Chamava-se Estudos sobre Malatitude, Números Um a Três – apesar de um integrante irado do conselho ter chamado a série de Estudos sobre Preguicite.
Sempre que o Draco fica triste por causa disso, digo a ele que os impressionistas também não eram apreciados em sua época.
De qualquer modo, não há a menos afinidade entre o Draco e a coordenação da Escola Preparatória John Adams. Na verdade, se os pais dele não estivessem entre os principais doadores do fundo de ex-alunos da escola, Draco com certeza já teria sido expulso há muito tempo.
- Você só precisa encontrar uma maneira de lutar contra essa tal de Susan Boone – sugeriu Draco. – Tipo assim, antes que ela consiga arrancar cada pensamento criativo da sua cabeça. Você precisa desenhar o que está no seu coração, Mione. Se não, qual é o sentido?
- Eu sempre achei que as pessoas devem desenhar o que conhecem – afirmou Lucy em tom entediado, virando uma página da revista.
- Escrever o que conhecem – corrigiu Rebecca, na ponta oposta da mesa em relação a mim, levantando os olhos do laptop. – desenhar o que vêem. Todo mundo sabe disso.
Draco olhou para mim, todo triunfante
- Está vendo? Está vendo como essa coisa é traiçoeira? Já entrou até na consciência de garotinhas de 11 anos.
Rebecca lançou um olhar irritado na direção dele. A Rebecca sempre ficou 100% ao lado dos meus pais no que diz respeito ao Draco.
- Ei! – protestou. – Eu não sou garotinha nenhuma.
Draco ignorou.
- Onde é que nós estaríamos se o Picasso só desenhasse o que via? – Draco quis saber. – Ou o Pollock? Ou o Miro? – sacudiu a cabeça. – Apegue-se às suas crenças, Mione. Você desenha com o coração. Se o seu coração manda colocar um abacaxi, então você coloca um abacaxi. Não permita que o sistema lhe diga o que fazer. Não deixe que os outros determinem o que e como você desenha.
Eu não sei como é que ele consegue mas, de alguma forma, o Draco sempre fala a coisa certa. Sempre.
- Então, você vai largar? – quis saber Luna, naquela mesma noite, quando me ligou para falar sobre a aula de biologia. Nossa tarefa era assistir a um documentário no Canal Educativo a respeito de pessoas que têm transtorno do corpo dismórfico. Sobre gente tipo o Michael Jackson, que se acha horrivelmente desfigurada, quando na verdade não é. Por exemplo, um homem detestava tanto o nariz que o abriu com uma faca, tirou a cartilagem dali e colocou um osso de galinha no lugar.
O que só serve para ilustrar que, por pior que você ache que uma pessoa é, sempre existe alguma coisa muito, muito pior.
- Não sei – respondi. Já tínhamos discutido toda a história do osso de galinha. – Eu quero sair. A classe é cheia de gente esquisita.
- Ué – fez Luna. – Você disse que tinha um cara fofo.
Pensei no Harry, com aquela cara que eu já tinha visto antes, a camiseta da Save Ferris, as mãos e os pés grandes, olhando para a minha bota.
E na maneira como ele me viu sendo completa e totalmente esmigalhada, igual a uma formiga, bem na frente dele, pela Susan Boone.
- Ele é fofo – reconheci. – Mas não tão fofo quanto o Draco.
- E quem é? – perguntou Luna, com um suspiro. – Talvez só o Heath.
Puts, é verdade.
- E a sua mãe vai deixar você largar? – Luna quis saber. – Tipo assim, isso é meio que um castigo por causa da sua nota baixa em alemão, não é? Talvez seja para você não gostar de propósito.
- Acho que o objetivo é que seja uma experiência de aprendizado para mim – respondi. – Sabe como é, igual os pais da Debbie Kinley. Ela foi obrigada a fazer uma expedição nas montanhas depois que bebeu uma garrafa inteira de vodka na festa do Rodd Muckinfuss. As aulas de arte são tipo a minha expedição.
- Então, você não pode largar – concluiu Luna. – O que vai fazer?
- Vou pensar em alguma coisa – respondi.
Na verdade, eu já tinha um plano.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!