Capítulo 2
Quando voltou ao andar de cima, Hermione encontrou a porta da sala de visitas fechada e ouviu um murmúrio abafado de vozes que vinham de dentro. Katy estava nesse instante colocando um casaco de peles escuro em um cabide, pendurando-o em seguida no armário para agasalhos, que ficava ao lado da porta de entrada. Usava vestido marrom-escuro e um avental florido, o seu modo de quebrar a formalidade do jantar, e teve um sobressalto, pulando de modo dramático quando Hermione apareceu de repente.
- Nossa! Você me deu um susto!
- Quem é que chegou?
- O Senhor e a Senhora Haldane - e jogou a cabeça para o lado em direção à sala. - Acabaram de entrar. É melhor você entrar também, porque já está atrasada!
- Fui ver Jody. - Relutante em se juntar ao grupo na sala, Hermione resolveu ficar um pouco mais com Katy, e se encostou à ponta do corrimão da escada. Ficou imaginando a felicidade que seria subir de volta, pular na cama e comer apenas um ovo cozido.
- Ele ainda está assistindo ao filme de índios na TV? - perguntou Katy.
- Não, desistiu! Reclamou que havia muitas cenas de beijo.
- Bem, é melhor ver beijos do que toda aquela violência, sempre digo. - Katy torceu a cara e fechou a porta do armário da entrada. - É bem melhor que as crianças vejam cenas de amor e fiquem tentando entender aquilo tudo do que assistir àquelas cenas violentas e depois saírem pela rua espancando velhinhas com guarda-chuvas.
E depois de fazer essa notável observação voltou à cozinha.
Hermione ficou sozinha no saguão de entrada e, sem nenhuma outra desculpa para maiores atrasos, atravessou a saleta, colocou um sorriso no rosto e abriu a porta da sala de visitas. (Outra coisa importante que ela aprendera na escola de teatro foi como realizar uma entrada marcante.) O murmúrio das conversas cessou de imediato e alguém exclamou: "Hermione chegou!"
A sala de visitas de Diana à noite, toda iluminada para a festa, era tão espetacular quanto qualquer palco de teatro. As três janelas altas que davam para a rua sossegada eram guarnecidas com cortinas de veludo em um tom claro de amêndoa, ligeiramente esverdeado. Havia imensos e macios sofás em tons rosa e bege, um carpete cor de areia e, combinando maravilhosamente com os quadros antigos, móveis em imbuia no estilo Chippendale e uma mesinha de café italiana em estilo moderno, feita de aço e vidro. Havia flores em toda parte, e o ar estava embebido por uma variedade de aromas deliciosos e caros. Era um cheiro misturado de jacintos com "Madame Rochas", e um toque dos autênticos charutos Havana de Sírius.
Todos estavam exatamente como Hermione os havia imaginado: agrupados em torno da lareira, conversando, com seus drinques na mão. Antes mesmo, porém, de ela fechar novamente a porta da sala atrás de si, Neville já havia se destacado do grupo, colocara seu copo sobre a mesa e atravessara a sala para recebê-la.
- Querida! - Segurou Hermione com as duas mãos sobre seus ombros e se abaixou para beijá-la. Em seguida, olhou discretamente para seu relógio de ouro que era fino como um papel, e, ao fazer isso, exibiu a ponta do punho da camisa, imaculadamente branca e toda engomada, preso por abotoaduras de ouro trançado.
- Você está atrasada!
- Mas os Lundstrom ainda nem chegaram!
- Onde você estava?
- Com Jody.
- Então está perdoada.
Neville era alto, muito mais alto que Hermione. Era magro, com a pele pálida, e estava começando a ficar calvo. Isso o fazia parecer mais velho do que a sua idade verdadeira, que era de trinta e três anos. Usava um paletó azul-marinho de veludo e uma camisa social com discretas listras bordadas. Seus olhos, embaixo de sobrancelhas grossas e marcantes, eram azul-esverdeados e exibiam, nesse momento, uma expressão que misturava satisfação, irritação e um pouco de orgulho.
Hermione sentiu esse orgulho e ficou aliviada. Neville Logbotton alimentava grandes expectativas com relação a Hermione, e ela passava metade do tempo lutando contra a sensação de se sentir inútil. Tirando isso, ele era, como futuro marido, totalmente satisfatório. Bem-sucedido em sua carreira de corretor na Bolsa de Valores, Neville era maravilhosamente atencioso e tinha muita consideração por ela, mesmo quando seus padrões pareciam desnecessariamente elevados. Mas talvez isso fosse de se esperar, pois era uma característica comum na família de Neville, e ele era, afinal de contas, irmão de Diana.
Devido ao fato de que Parker Haldane se sentia atraído por mulheres com pouca idade e bonitas sem demonstrar nenhum constrangimento por isso, e também por Hermione se enquadrar em suas preferências, as maneiras de Elaine Haldane em relação à jovem eram normalmente frias, mas não provocavam nenhuma preocupação desnecessária em Hermione, por dois motivos. Um deles é que ela raramente se encontrava com Elaine, pois os Haldane moravam em Paris, onde Parker estava à frente da filial francesa de uma grande agência de propaganda americana, e só vinha a Londres a cada dois ou três meses, para reuniões importantes. A visita daquele dia estava acontecendo em uma dessas ocasiões.
O outro motivo é que Hermione, secretamente, não gostava muito de Elaine. Isso era lamentável, pois Elaine e Diana eram grandes amigas. "Por que você sempre tem que ser tão distante e hostil com Elaine?", era o que Diana costumava perguntar, e Hermione aprendera a encolher os ombros e dizer apenas "Desculpe...", pois qualquer tentativa de dar uma explicação mais detalhada a respeito disso poderia ser ainda mais ofensivo.
Elaine era uma mulher bela e com aparência distinta. Tinha, porém, uma antiga tendência a se vestir com certo exagero que nem mesmo o fato de morar em Paris conseguira curar. Podia ser extremamente divertida, mas Hermione descobrira, através de experiências amargas, que seus gracejos escondiam farpas agudas de crueldade verbal, sempre dirigidas a amigos e conhecidos que coincidentemente nunca estavam presentes. Era preocupante ouvi-la falar dos outros, porque as pessoas jamais poderiam imaginar o que Elaine estava planejando dizer sobre elas depois, pelas costas.
Parker, por outro lado, não era para ser levado a sério.
- Você, minha criatura maravilhosa... - e se curvou para executar um floreado beijo sobre a mão de Hermione, que ficava sempre esperando que ele, após o beijo, batesse nos calcanhares. - Por que é que você tem sempre que nos fazer esperar pela sua chegada?
- Fui me despedir de Jody, que já vai para a cama - respondeu ela, virando-se para a esposa dele. - Boa noite, Elaine! - e as duas se tocaram levemente com as bochechas, jogando sons de beijos para o ar.
- Alô, querida. Que vestido lindo!
- Obrigada.
- Esses vestidos assim largos e soltos são tão práticos de usar... - e deu uma longa tragada no cigarro, jogando a cabeça para trás e expelindo uma imensa nuvem de fumaça. - Estava agora mesmo falando com Diana a respeito de Virginia.
- O que aconteceu com ela? - perguntou Hermione educadamente, ficando subitamente sem ânimo, pois sabia que lhe seria comunicado com todos os detalhes que Virginia ficara noiva; ou que Virginia estivera recentemente com algum importante líder árabe; ou que Virginia estivera recentemente em Nova York, fazendo um trabalho de modelo para a edição internacional da revista Vogue.
Virginia era a filha de Elaine, nascida de um casamento anterior. Era um pouco mais velha que Hermione e, apesar do fato de às vezes Hermione sentir que sabia mais sobre Virginia do que ela própria, as duas jamais haviam se encontrado. Virginia dividia seu tempo entre os pais, com a mãe em Paris e o pai na Escócia. Nas raras ocasiões em que aparecera em Londres, Hermione estava invariavelmente fora.
- Ela não esteve recentemente nas Antilhas, Bahamas, ou algo assim? - perguntou Hermione, tentando se lembrar das últimas notícias que tivera a respeito de Virginia.
- Sim, minha querida, ela estava lá com uma velha amiga dos tempos de colégio, divertindo-se maravilhosamente. Só que voltou há alguns dias, foi se encontrar com o pai em Prestwick e recebeu uma notícia terrível.
- Que notícia?
- Bem... Sabe?... Há dez anos, quando Arthur e eu ainda estávamos juntos, nós compramos uma grande propriedade na Escócia... Na verdade, foi Arthur quem comprou, apesar de eu ter sido categoricamente contra... Para o casamento, aquela foi a gota d'água... – Elaine parou de falar de repente, com uma expressão confusa no rosto.
- E Virginia?... - incentivou Hermione, com delicadeza.
- Ah, sim!... É claro... Bem, a primeira coisa que Virginia fez naquele lugar foi travar amizade com os dois irmãos que viviam na propriedade vizinha... Bem, não eram meninos, exatamente, já eram adultos quando os conhecemos. Os dois eram a personificação do charme, e colocaram Virginia sob suas asas, protegendo-a como se fosse uma espécie de irmã mais nova. Em um piscar de olhos já era considerada da casa. Entrava e saía da mansão deles como se tivesse morado lá a vida inteira. E ambos a adoravam, embora o irmão mais velho tivesse uma quedinha especial por ela. Pois, minha querida, pouco antes de ela chegar lá de volta, esta última vez, ele morreu em um terrível acidente de carro. Com as estradas em um estado medonho e cheias de gelo, o carro do pobre rapaz bateu de frente em um muro de pedra.
- Nossa, que coisa horrível! - Hermione não conseguiu evitar o sobressalto, e o seu choque era verdadeiro.
- Sim, uma coisa horrorosa. Tinha apenas vinte e oito anos, o rapaz. Um fazendeiro maravilhoso, tão jovem, bem-apanhado, bonito mesmo, uma pessoa muito gentil e educada. Você bem pode imaginar Virginia, pobrezinha, chegando em casa e recebendo uma notícia como essa. Ligou para mim em lágrimas para contar. Sugeri que ela voltasse imediatamente aqui para Londres, para que pudéssemos animá-la um pouco, mas ela argumentou que poderia ser mais útil ficando por lá.
- Tenho certeza de que o pai dela vai preferir tê-la por perto em um momento como esse. - Era Parker, que escolhera este momento para se materializar ao lado de Hermione, trazendo para ela um martini tão gelado que o copo quase lhe congelou os dedos, antes de continuar a falar: - Quem é que nós estamos esperando?
- Os Lundstrom. São canadenses. O Senhor Lundstrom é um banqueiro de Montreal. Esta visita tem a ver com o novo projeto de Sírius.
- Quer dizer que Diana e Sírius estão realmente de mudança para o Canadá? - perguntou Elaine. - Mas o que é que nós vamos fazer sem eles por aqui? - Virou-se para Diana, desolada. - Querida, como vamos ficar sem você por perto?
- Por quanto tempo eles vão morar fora? - perguntou Parker.
- Três ou quatro anos. Talvez menos. Vão partir assim que possível, logo depois do meu casamento.
- E esta casa? Você e Neville vão ficar morando aqui depois de casados?
- Não. Aqui é grande demais para nós dois. Além do mais, Neville possui um apartamento próprio, e perfeitamente adequado. Katy é que vai ficar morando lá embaixo, assim como se fosse uma espécie de caseira. Diana pensou até mesmo em alugar a casa, se conseguir encontrar o inquilino certo.
- E Jody?
Hermione olhou para Parker por um instante, sem responder. Depois baixou os olhos para o seu drinque.
- Jody vai com eles. Também vai morar lá.
- Você não se importa com isso?
- Sim, claro que me importo. Mas Diana quer levá-lo. Neville, pensou, não vai querer começar o casamento com um menino a tiracolo. Pelo menos não por agora. Talvez um bebê, daqui a uns dois anos, mas não um menino já grande, com onze anos... e Diana já o matriculou em uma escola particular no Canadá... e Sírius diz que vai ensiná-lo a esquiar e jogar hóquei. - Parker ainda estava olhando para Hermione, e ela deu um sorriso de lado, dizendo:
- Você conhece Diana, Parker. Ela faz planos e... click!, em um estalar de dedos eles acontecem.
- Você vai sentir falta dele, não vai?
- Vou... Vou sentir muita falta de meu irmão.
Os Lundstrom finalmente chegaram, foram apresentados, receberam drinques e foram inseridos, educadamente, na conversa. Hermione saiu discretamente para o lado, sob o pretexto de procurar um cigarro, e ficou observando o casal de recém-chegados, com um pouco de curiosidade. Achou que se pareciam um com o outro, como as pessoas casadas há muitos anos freqüentemente se parecem. Ambos eram altos, com formas angulosas, quase atléticas. Ela os imaginou jogando golfe, juntos, durante os fins de semana, ou velejando, talvez até participando de regatas no verão. O vestido da Senhora Lundstrom parecia simples, mas os seus diamantes eram sensacionais. O Senhor Lundstrom possuía aquela aura indistinta e sem cor que encobria o seu contorno real como pessoa; uma névoa comum aos homens espetacularmente bem-sucedidos.
De repente, Hermione pensou que seria maravilhoso, assim como uma brisa de ar fresco, se naquela casa entrasse inesperadamente alguém que fosse pobre, fracassado, sem valores morais elevados, ou pelo menos bêbado. Um artista, talvez, passando fome nas sarjetas. Um escritor que escrevesse histórias que ninguém jamais compraria. Ou algum catador de latas bastante animado, que exibisse uma barba de três dias por fazer e uma barriga deselegante que transbordasse por cima do cinto, para fora das calças. Lembrou-se dos amigos do pai na Grécia, geralmente com má reputação, sempre com características próprias e totalmente independentes. Bebiam vinho tinto ou bebidas gregas baratas pela noite adentro, dormiam onde quer que caíssem, geralmente no sofá já muito gasto da sala, ou então sentados em alguma poltrona, com os pés colocados sobre a mureta do terraço. E se lembrou da casa toda branca em Aphros, à noite, pintada pelo luar em blocos escuros e claros, sempre com o som do mar ao fundo.
- E então... Vamos entrar para jantar!
Era Neville. Hermione notou que ele já dissera isso a ela, e fora obrigado a repetir.
- Você estava sonhando acordada, Mione. Termine logo o seu drinque, pois já está na hora de irmos para a sala de jantar. Venha, vamos comer alguma coisa.
Na mesa de jantar, ela se viu sentada entre John Lundstrom e Sírius. Este último estava ocupado preparando o vinho, e então Hermione começou a conversar de modo natural com o Senhor Lundstrom.
- É a sua primeira visita à Inglaterra?
- Não, não. Já estive aqui nesta terra muitas vezes. – Ele empunhou a faca e o garfo e franziu levemente as sobrancelhas. - Agora, deixe ver se eu entendi direito... essa relação de parentesco entre vocês... Hermione, quem é você, é a enteada de Diana?
- Sim, isso mesmo. E vou me casar com Neville, que é o irmão dela, na próxima semana. A maioria das pessoas acha que isso é quase ilegal, mas na verdade não é. Quer dizer, não existe nada de errado, nem mesmo sob o aspecto religioso.
- Ora, mas eu não pensei nem por um momento que fosse ilegal. Acho simplesmente muito bem adequado e perfeito. Uma forma de manter as pessoas certas todas na mesma família.
- Mas essa não é uma maneira muito limitada de pensar?
Ele olhou para ela e sorriu. Parecia mais jovem, mais alegre e menos rico quando sorria... Mais humano. Hermione começou a gostar dele.
- Eu não diria limitada. Chamaria de prática. Quando é que vocês vão se casar mesmo?
- Na terça-feira da semana que vem. Mal posso acreditar que já está tão próximo.
- E vocês vão aparecer para visitar Sírius e Diana em Montreal?
- Acho que sim... Mais tarde, não agora, de imediato.
- E ainda tem o menino...
- Sim. Jody, meu irmão.
- Ele vai para o Canadá com eles?
- Sim.
- Vai adorar! Vai se sentir como um peixe dentro d'água, lá no Canadá. É um lugar fabuloso para um menino crescer.
- Sim - repetiu Hermione.
- E são apenas vocês dois, não é? Não há outros irmãos?
- Há, sim - respondeu ela. - Temos o Angus.
- Mais um irmão, então?
- Sim. Ele já tem quase vinte e cinco anos.
- E em que ele trabalha?
- Não sabemos.
John Lundstrom levantou as sobrancelhas de uma forma que era educada, mas denotava surpresa. Hermione continuou:
- Foi isso mesmo que eu disse. Nós não temos a menor idéia do que ele faz na vida, nem de onde está. Sabe, é que todos vivíamos na ilha de Aphros, no Mar Egeu. Meu pai era arquiteto lá, e era também um tipo de corretor para pessoas que queriam comprar propriedades e construir casas no local. Foi assim que ele e Diana se conheceram.
- Mas... Espere aí. Quer dizer que Diana foi até lá para comprar terras?
- Sim, queria construir uma casa. Mas não fez uma coisa nem outra. Em vez disso, encontrou meu pai e se casou com ele. Ficou em Aphros, ela e todos nós, morando na casa que tínhamos lá.
- Aí vocês acabaram voltando para Londres depois de algum tempo...
- Sim. É que meu pai morreu, e então Diana voltou e nos trouxe com ela. Foi quando Angus resolveu que não queria voltar para Londres conosco. Já tinha dezenove anos na época, estava com os cabelos compridos até os ombros e não possuía absolutamente nada na vida. Diana falou que, se preferisse, ele poderia continuar morando na casa em Aphros. Angus, porém, disse que era melhor que ela colocasse a casa à venda, pois ele comprara um pequeno carro usado e decidira ir dirigindo até a Índia, atravessando o Afeganistão. Quando Diana perguntou o que é que ele iria fazer quando chegasse lá, Angus respondeu que iria "se encontrar".
- Então ele é apenas mais um entre milhares que fazem isso, todos os anos. Você sabe disso, não?
- Sim, mas quando se trata do seu irmão, as coisas não são tão fáceis de aceitar.
- E vocês tornaram a vê-lo depois disso?
- Sim. Ele voltou pouco depois do casamento de Diana e Sírius, mas... Sabe como essas coisas são... Nós pensávamos que pelo menos ele teria um par de sapatos para calçar, mas Angus continuava o mesmo, e sem arrependimentos. Tudo o que Diana sugeria só o fazia sentir-se pior; então, ele acabou voltando para o Afeganistão e não soubemos mais dele.
- Nem uma notícia?
- Bem... Só uma vez. Recebemos um cartão-postal de Cabul, ou Srinagar, ou Teerã... Um desses lugares. - Ela sorriu, tentando transformar isso em uma piada, mas antes que John Lundstrom sequer pensasse em fazer algum tipo de comentário, Katy se curvou por cima dos ombros dele para colocar sobre a mesa uma tigela com sopa de tartaruga. Com essa interrupção de Katy, ele se virou para o outro lado e começou a conversar com Elaine.
A reunião prosseguiu, formal, previsível e, para Hermione, enfadonha. Depois de tomarem café e conhaque, todos se reuniram mais uma vez na sala de visitas. Os homens se aglomeraram em um dos cantos da sala para falar de negócios, e as mulheres se juntaram em torno da lareira, onde fizeram mexericos, falaram de planos para o Canadá e admiraram a tapeçaria na qual Diana estava trabalhando no momento.
Depois de algum tempo, Neville se destacou do grupo masculino de forma ostensiva, para tomar a encher o copo de John Lundstrom. Depois de ter feito isso, veio até Hermione, sentou-se no braço da poltrona em que ela estava e perguntou:
- E você, como é que está se sentindo?
- Por que pergunta?
- Para saber se está bem o bastante para ir até o Arabella's.
Ela olhou para cima. Visto do fundo da poltrona, o rosto de Neville aparecia quase de cabeça para baixo. Era estranho.
- Que horas são? - perguntou ela.
- Onze! - Olhou para o relógio. - Talvez você esteja muito cansada...
Antes que tivesse a chance de responder, Diana, que tinha entreouvido a conversa, levantou os olhos da tapeçaria que exibia e disse:
- Saiam logo. Vão, vão, vocês dois!
- Para onde eles vão? - quis saber Elaine.
- Arabella's. É um pequeno clube noturno privativo, do qual Neville é sócio.
- Ora... Parece interessante. - Elaine deu um grande sorriso para Neville, parecendo conhecer tudo sobre interessantes clubes noturnos privativos. Neville e Hermione pediram licença, se despediram de todos e saíram. Hermione subiu até o quarto para pegar um casaco e deu uma parada diante do espelho para pentear o cabelo. Ao passar, no corredor, pela porta do quarto de Jody, parou. A luz estava apagada e nenhum som vinha lá de dentro. Assim, resolveu não perturbá-lo e desceu as escadas novamente, até onde Neville estava, à sua espera no saguão. Ele abriu a porta de modo educado para Hermione, e os dois saíram juntos para a escuridão suave e a brisa da noite. Caminharam pela calçada até o local onde o carro estava estacionado. Neville ligou o motor e eles saíram, contornando a praça e saindo na Rua Kensington High. Hermione notou que no céu havia o contorno tímido de uma lua em quarto crescente, e fiapos de nuvem passeavam diante dela, levados pelo vento. As árvores do parque agitavam seus galhos secos; o brilho alaranjado das luzes da cidade estava refletido no céu. Hermione baixou o vidro da janela do carro e deixou o ar frio soprar sobre seus cabelos. Pensou que em uma noite como aquela seria bom estar no campo, caminhando através de estradas escuras, sem postes de iluminação, com o vento sussurrando entre as árvores e apenas o brilho irregular do luar para mostrar o caminho. Soltou então um profundo suspiro.
- Por que isso agora? - perguntou Neville.
- "Por que isso?”... Como assim?
- Esse suspiro. Mais parecia um suspiro de tragédia.
- Não é nada.
- Está tudo bem? - perguntou Neville, após alguns instantes. - Você está preocupada com alguma coisa?
- Não, não é nada. - Não havia, afinal, nada com o que se preocupar. Nada... E tudo. Essa sensação de enjôo o tempo todo era um grande motivo, para começar. Hermione se perguntou por que parecia tão impossível falar com Neville a respeito disso. Talvez porque ele estivesse assim bem-disposto o tempo todo. Vigoroso, ativo, cheio de energia e, aparentemente, jamais cansado. De qualquer maneira, se já era chato se sentir doente a todo instante, falar sobre isso era mais chato ainda.
O silêncio entre eles aumentou. Finalmente, quando estavam em um cruzamento esperando o sinal abrir, Neville disse:
- Os Lundstrom são muito agradáveis.
- Sim. Contei ao Senhor Lundstrom tudo a respeito de Angus, e ele me ouviu com atenção.
- E o que mais você esperava que ele fizesse?
- Ora, o que todos sempre fazem. Parecem chocados, horrorizados ou acham graça... Ou mudam de assunto. Diana detesta quando falamos a respeito de Angus. Acho que é porque essa foi a única derrota da vida dela. - E se corrigiu em seguida. - Essa ainda é a única derrota da vida dela.
- Você diz isso só porque ele não aceitou voltar para Londres como todos vocês?
- Sim, não quis entrar em um curso para se tomar um contador público registrado, ou sei lá que outra carreira Diana planejara para ele. Em vez disso, fez exatamente o que tinha vontade de fazer.
- Correndo o risco de parecer que eu estou do lado de Diana nessa história, sou obrigado a dizer que você fez a mesma coisa. Apesar de toda aquela oposição cerrada, você se matriculou na escola de teatro e chegou até mesmo a conseguir um emprego...
- Por seis meses, apenas. Foi só por esse tempo.
- Mas é porque você ficou doente. Teve pneumonia, não foi por culpa sua que você parou.
- Não, sei que não foi. Só que depois eu fiquei boa e, se tivesse tido mais garra, teria voltado e retomado a carreira exatamente do lugar onde parará. Mas não... Acabei me acovardando. Diana sempre disse que eu não tinha força de vontade nem perseverança e, no fim, inevitavelmente, estava certa. A única coisa que ela não disse foi "Eu não falei?..."
- Mas se você ainda estivesse seguindo com a sua carreira no palco... - disse Neville com delicadeza. - Provavelmente não estaria se casando comigo agora.
Hermione olhou para ele e analisou o seu perfil, estranhamente iluminado pelas luzes das ruas no lado de fora, que entravam pela janela, e pelo brilho verde do painel do carro. Neville estava com uma aparência sombria e ares de vilão.
- É... Imagino que, se tivesse continuado no teatro, provavelmente não estaria me casando com você...
Só que não era assim tão simples. Os motivos que a estavam levando a se casar com Neville eram tantos e estavam tão entrelaçados uns com os outros que era difícil separá-los. Gratidão, porém, parecia ser o mais importante deles. Neville entrara em sua vida quando Hermione tinha acabado de chegar de Aphros com Diana, ainda uma garota magricela, com quinze anos e um pai morto. Naquele momento, muito tristonha, embaraçada e cheia de infelicidade, ao observar Neville enquanto ele lidava com a imensa bagagem e os passaportes, e cuidava de um Jody cansado que não parava de choramingar, Hermione reconhecera muitas de suas qualidades. Neville representava exatamente o tipo de relação masculina confiável e segura, da qual ela sempre necessitara, sem nunca ter se dado conta disso. Era agradável ter alguém para resolver tudo em volta e tomar conta de você, e a atitude dele não sendo exatamente paternal, mas parecendo a de um tio atencioso e disponível, e essa maneira de agir perdurara por todos aqueles anos difíceis de crescimento.
Outra força que deveria ser reconhecida era Diana propriamente dita. Desde o começo, ela parecera ter decidido que Neville e Hermione formavam o casal perfeito. A precisão desse arranjo, tão adequado em todos os sentidos, era um grande apelo para ela. De maneira sutil, pois Diana era inteligente demais para forçar situações, ela os encorajava a ficarem sempre juntos. “Neville pode levar você até a estação, meu bem! Querida, você vai ficar para jantar em casa hoje à noite? Vou receber convidados, Neville vai estar aqui e eu queria que você fizesse par com ele, para a mesa ficar completa”.
Mas até mesmo essa pressão incansável teria sido totalmente em vão se não fosse pelo caso que Hermione tivera com Draco Malfoy. Depois disso... Depois de amar de forma tão completa como aquela, parecia a Hermione que nada poderia voltar a ser novamente como era. Depois que tudo acabou, e ela conseguiu olhar em volta sem estar com os olhos cheios de lágrimas, viu que Neville ainda estava ali. Esperando por ela. Não mudara em nada, só que agora queria se casar, e parecia não haver nenhum motivo no mundo para que ela recusasse a proposta.
- Você ficou muito quieta a noite toda - disse ele.
- Ora, e pensei que eu estava falando até demais.
- Você me contaria se algo a estivesse preocupando, não contaria?
- É que as coisas estão acontecendo muito depressa, e ainda falta tanta coisa para fazer. Encontrar com os Lundstrom me fez sentir como se Jody já tivesse ido embora para o Canadá, e é como se eu nunca mais fosse vê-lo novamente.
Neville ficou em silêncio, pegou um cigarro e o acendeu, usando o isqueiro do carro para isso. Encaixando o isqueiro de volta no painel, disse:
- Eu estou completamente convencido de que você está sofrendo de "depressão feminina pré-nupcial" ou outra coisa qualquer desse tipo, que as revistas femininas explicam.
- E qual é a causa disso?
- Muitas coisas para resolver ao mesmo tempo. Muitos presentes para abrir; muitas cartas de agradecimento para enviar; roupas e adereços para experimentar; cortinas para escolher; os encarregados do bufê e os floristas batendo na porta ao mesmo tempo. Tudo isso já é o suficiente para deixar a mais calma das mulheres completamente louca.
- Então por que você deixou que fôssemos induzidos a realizar um casamento tão grandioso como esse?
- Porque nós dois significamos muito para Diana. Se tivéssemos escapulido até um cartório para casar só no civil, depois fôssemos passar dois dias no balneário de Brighton, aqui perto, e voltássemos correndo, iríamos privá-la de um prazer infinito.
- Mas somos pessoas, não cordeiros de sacrifício!
- Vamos, alegre-se - e colocou a mão sobre a dela. - A terça-feira da semana que vem vai chegar logo, e tudo estará encerrado. Estaremos voando para as Bahamas e você vai poder ficar deitada o dia inteiro pegando sol, sem se preocupar em escrever cartas para ninguém e comendo só laranjas, o tempo todo. Que tal lhe parece essa descrição?
- Eu preferia que estivéssemos indo para Aphros - disse ela, sabendo que estava sendo infantil.
- Ah, Hermione!... - Neville começou a parecer impaciente. - Você sabe que já discutimos essa idéia umas mil vezes...
Ela parou de ouvir a voz dele. Seu pensamento foi carregado de volta a Aphros como um peixe fisgado por um anzol. De repente, recordou-se dos pomares de oliveiras e das árvores centenárias cercadas de flores bem junto do caule, até a altura do joelho, tendo como fundo o azul forte do mar. E os campos cheios de jacintos da cor de uva e ciclamens perfumados, muito claros, em tom rosado. E o som dos pequenos sinos que balançavam nos pescoços das cabras em rebanho, e o cheiro que envolvia as montanhas, vindo da resina que pingava morna dos caules dos pinheiros.
- ... de qualquer modo, já está tudo providenciado.
- Mas será que algum dia vamos poder voltar a Aphros, Nev?
- Você não escutou uma só palavra do que eu falei, não é?
- Podíamos alugar uma casinha lá, nas férias.
- Não.
- Ou fretar um iate e fazer um cruzeiro.
- Não.
- Por que você não quer ir?
- Porque eu acho que você deve guardar a recordação daquele lugar do jeito que era, não do jeito que ficou agora, estragado pela especulação imobiliária e pelos hotéis, altos como arranha-céus.
- Você não pode saber com certeza que Aphros ficou desse jeito.
- Mas dá para ter uma idéia bem nítida.
- Mas...
- Não - disse Neville.
Depois de uma pausa, Hermione disse, de forma teimosa:
- Mesmo assim, eu ainda quero voltar lá.
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