Magia antiga e profunda
Harry resolveu, de última hora, não voltar para a casa dos Dursley. Sabia que era uma decisão complicada, e que Dumbledore não apoiaria. O diretor de Hogwarts alertara Harry de que a casa dos tios era um local protegido por vários tipos de encantamentos, que valeriam até que ele completasse a maioridade bruxa. Mas Harry não via sentido em voltar a um local onde não se sentia bem. O mundo bruxo era seu lugar, e ele precisava estar lá mais do que nunca. Era um mundo que dependia dele, e esse pensamento arrepiava todos os pelinhos da nuca de Harry cada vez que vinha a tona. Uma infinidade de bruxos e bruxas de todas as idades depositavam nele suas esperanças mais desvairadas de acabar com o Lord das Trevas de uma vez por todas e trazer a verdadeira paz para o mundo mágico. Mas as recentes perdas faziam com que ele tivesse cada vez menos esperanças em sobreviver a esta triste jornada que o aguardava. Embora a certeza fosse uma só: Harry iria até o fim para vencer Voldemort. Ou pelo menos morreria tentando. Muitos deram a vida por ele. Estava na hora de ele dar a vida por muitos e honrar aqueles que já se foram.
Harry pediu a Molly e Arthur que o recebessem na Toca. Afinal, haveria o casamento de Gui e Fleur. Embora todos tivessem achado que a meia veela não se casaria mais com o meio lobisomem, ela tinha mantido sua palavra, e seu amor. Isso fez até com que Hermione mudasse suas concepções sobre a colega francesa.
- Até que Fleur não é tão descabeçada e fútil quanto eu pensava. – disse antes de eles se despedirem no Expresso de Hogwarts.
Harry pensava em como as coisas podiam ficar tão iguais depois de dias conturbados como aqueles. Mas lá estavam ele, Rony e Hermione no Expresso, voltando para casa. Era estranho pensar assim, mas algumas coisas não mudavam. Até aquele momento. Era como se fosse um marco na vida do garoto. A última vez que ele viajaria naquele trem. A última vez que Harry estivera em Hogwarts. E ele nem se despedira do castelo, do salão comunal, dos professores, de ninguém. Simplesmente partira. E agora estava na Toca.
Os preparativos para o casamento estavam a todo o vapor. Por fora, Harry tentava parecer animado. Por dentro, fervilhava: não era possível que todos da Ordem estivessem pensando em comemorar um casamento enquanto Voldemort estava solto lá fora, cada vez mais fortalecido e rodeado de seguidores. Mas Harry não queria ser egoísta. Era um momento feliz para os Weasley, e eles o haviam acolhido tão bem. Ele não poderia deixar aquela raiva transparecer, mas não se sentia a vontade em nenhum momento enquanto Molly e Fleur discutiam sobre vestidos de noiva, docinhos nevados, bolo de hidromel e um coral de duendes. E Rony insistia em jogar quadribol para não perder a forma se voltasse ao time da Grifinória. Tudo isso acontecendo há apenas algumas semanas da morte de Dumbledore. Para Harry, soava como uma imensa falta de respeito com a memória do diretor.
E tinha Gina. Desde que Harry terminara o namoro com a ruiva, ela se tornara muito arredia. Não falava com ele, e voltava a ter comportamentos estranhos como sair correndo quando via Harry tomando o café da manhã na mesa da cozinha. Ele não conseguia reunir coragem para conversar de novo com ela. Sofria cada minuto longe da presença da ruiva, do cheiro adocicado que emanava dela, mesmo cheiro que ele sentira quando estava diante da poção do amor. “Ela tem o cheiro de quem mais gostamos”, dissera Slughorn em algum lugar de um passado remoto que parecia descolado da vida de Harry. E para ele, o cheiro era de grama molhada e flores depois da chuva. O cheiro de Gina Weasley.
Hermione chegou na manhã do casamento, aparatando no quintal dos Weasley. A Toca estava lotada e em festa. Todos os membros da Ordem, amigos de Arthur do Ministério da Magia e a família de Fleur (Rony ficara abobado com as primas de Fleur e Hermione estava emburrada) estavam presentes. Harry tentava se divertir, mas alguma coisa o estava incomodando. Hermione trouxera o malão de Hogwarts.
- Para o caso de recebermos as corujas. Se Hogwarts reabrir...
Harry tinha certeza que não voltaria para Hogwarts, mesmo que a escola voltasse a funcionar. Ele não fizera seu exame de aparatação, mas já sabia como aparatar. Não ter o pedaço de papel que daria a licença para o procedimento mágico não era fator de intimidação. Harry já não se importava mais em seguir as leis do Ministério da Magia.
O casamento aconteceu. E veio a comilança. Rony lembrava um trasgo faminto ao se deliciar com as comidas de Molly. Como se fosse a última vez que as comeria.
Hermione chorou durante a cerimônia. Ela ficara estranhamente agarrada a Rony, segurando sua mão durante toda a falação do bruxo do Ministério que efetuou os tramites legais da união. Rony parecia uma porta, tão rígido estava enquanto a menina apertava sua mão até quase tirar-lhe a circulação.
Quando tudo acabou, Harry só queria adormecer. Tinha decidido: iria embora naquela madrugada. Já tinha feito sua parte, acompanhara o casamento, conversara com os amigos da Ordem. Todos estavam tristes pela morte de Dumbledore, era o que diziam. Mas Harry se lembrava que apenas ele sabia das horcruxes. A Ordem estava disposta a se defender e a defendê-lo também. Mas Harry precisava atacar. Não podia ficar parado, esperando que Voldemort ficasse cada dia mais forte. Precisava atacar suas fraquezas que ainda restavam, antes que ele se tornasse novamente o bruxo das trevas mais poderoso da história da magia no mundo.
Envolto em pensamentos, Harry se dirigiu para o quarto de Rony, onde ele estava dormindo numa cama de armar. O quarto estava escuro e Rony não voltara. Talvez tivesse ficado pela sala, sem forças para subir as escadas depois da décima costeleta de porco. Harry precisava descansar e, para se locomover melhor pelo aposento, pegou a varinha do bolso de trás das vestes e murmurou Lumus. Foi quando se deu conta de que não estava sozinho no quarto. Gina estava parada ali, vestindo apenas uma camisola cor de rosa e um par de pantufas com cara de coelho. A roupa fazia com que ela parecesse uma menina. O rosto decidido e as curvas por baixo das vestes mostravam a Harry a mulher mais fascinante que ele já conhecera na vida.
Um brilho estranho passou pelos olhos da ruiva por um momento menor que um segundo. Logo ela se aproximava de Harry, que a enlaçou calorosamente, incapaz de resistir. Gina beijou-o nos lábios de forma suave, passeando a língua molhada pela boca de Harry. O peito do bruxo arfava, subia e descia, e o coração palpitava acelerado.
- Harry... eu... – começou a falar, mas foi interrompida.
- Gina, eu preciso saber se você quer isso. Se isso vai ser bom para você também. Eu quero respeitá-la, porque sei que você é a mulher com quem eu quero me casar um dia. – Harry regurgitava as palavras apressadamente - Mas você precisa saber que esse dia pode não chegar, Gina. Eu posso não voltar para você. O que eu tenho para fazer é grande, complicado e cheio de perigos. Eu posso não voltar Gina, e não quero deixar em você uma marca que te machuque.
- Independente de qualquer coisa, Harry, eu já estou marcada por você pela eternidade. Isso só consuma os fatos.
Dizendo isso, Gina deu por encerrada a conversa e abraçou Harry de maneira mais forte, mordiscando de leve o lóbulo da orelha do garoto. Desceu pelo pescoço e afagou os cabelos muito negros, bagunçando-os ainda mais. Retirou os óculos do rosto de Harry, e por um instante a luz da varinha do bruxo iluminou sua cicatriz...
- Nox!
A lua brilhou mais forte na noite em que a magia do amor verdadeiro foi consolidada.
O sol ainda não havia nascido, mas a luz fraca já invadia o quarto de Rony. Harry abriu os olhos, esfregando suavemente com os dedos. Sentia um pouco de frio, pois a única coberta que o protegia era o corpo nu de Gina. Os cabelos muito vermelhos da bruxa contrastavam com a pele branca como um floco de neve. Ela ressonava, totalmente entregue ao abraço de Harry, sentindo-se protegida assim, aninhada em seu peito. Embora a noite tivesse sido mágica e representasse agora um dos momentos mais especiais da vida de Harry, a hora havia chegado. A magia tinha sido compartilhada e o bruxo se sentira mais forte depois disso. Gina havia dado tudo de si para ele, Harry sabia disso. Não foi simplesmente o corpo que ela entregou, mas também a alma. Mas em nenhum momento ele a enganara. Ela sabia que Harry tinha que partir.
Reuniu toda a coragem que lhe restava e afastou o corpo quente do seu. Gina murmurou qualquer coisa incompreensível quando Harry jogou uma coberta por cima da amada. Pegou uma mala pequena, magicamente ampliada, e começou a guardar suas coisas. Levaria o estritamente necessário: algumas mudas de roupa, a Firebolt, dinheiro bruxo, sua varinha e... ao fuçar dentro do malão a procura de mais alguma coisa que poderia precisar, Harry encontrou o espelho que Sirius havia dado a ele de presente. O menino havia rachado o espelho ao meio quando Sirius caira no véu dentro do Departamento de Mistérios. Mesmo avariado, Harry sentiu um ímpeto de levá-lo consigo. Depositou-o cuidadosamente na mala ampliada, verificando mais uma vez o seu conteúdo. Colocou-a nas costas, olhou Gina uma última vez antes de sair do quarto, com um peso no coração que o fazia temer aquela como a última vez em que eles estiveram juntos.
Desceu as escadas murmurando Abaffiato para que seus pés não fizessem barulho. Não havia ninguém acordado. Rony roncava no sofá. O nó na garganta de Harry aumentou. E se nunca mais visse os amigos? Nem ao menos conversara direito com Hermione nos últimos dias. Gostaria de se despedir, mas se os acordasse para contar o que estava fazendo, eles não deixariam que ele partisse sozinho. Resignado, rumou para a porta de entrada da Toca, murmurou novamente o feitiço silenciador e abriu-a, recebendo no rosto um golpe de ar gelado. Arrumou a gola do blusão, olhou uma última vez para a casa que gostaria que fosse sua desde o momento em que pisou os pés ali pela primeira vez, e fechou a porta. O menino Harry ficara ali, trancado naquela casa, em meio as lembranças. O homem Harry acabara de nascer.
- Rumo a Askaban – murmurou para si mesmo. – É lá que vou encontrar o medalhão e descobrir quem é R.A.B.
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