Parte IV – Caminhos de Volta
Sarah suspirou, olhando pela janela do avião a paisagem que se aproximava. Faltava pouco para aterrissarem em Londres. Ela se lembrou vagamente de um filme que assistira, que tinha uma cena de pessoas chegando, tanto no início quanto no final... e lembrou-se de um trecho da canção tema:... “love is all around me”...
Perguntou-se mais uma vez se André estaria esperando por ela, afinal, devia estar atarefado por causa do casamento próximo. Só seu irmão mesmo, escolher se casar às vésperas do Natal, e provocar toda aquela correria...
Nenhum dos outros irmãos pudera vir. Felipe estava nos Estados Unidos, um congresso de medicina importante. Neuza e o marido haviam se mudado para Brasília, ele passara em um concurso federal. Assumira há pouco tempo, não podia sair por tantos dias. Berenice, que se casara em abril com um major do Corpo de Bombeiros, filho de um antigo colega de farda do pai, se mudara para outra cidade, onde o marido era comandante de uma unidade da corporação. Então, Sarah seria a única Laurent presente no casamento do irmão caçula. Sim, porque seus pais...
Um soluço escapou de seu peito, e ela olhou em volta, temendo chamar a atenção sobre si. Não queria ninguém perguntando o que ocorria ou tentando lhe consolar com chavões sem profundidade ou sinceridade. Sua dor era sua, embora isso lhe parecesse demasiadamente egoísta, ás vezes.
Mas como explicar que sentira mais a perda dos pais do que os outros? Ela, a filha adotiva? Talvez por isso mesmo... Perdera a referência, mais do que os outros, que ainda se mantinham uma família, embora cada vez mais distantes, como se evitassem se encontrar, para não sentirem que faltavam dois membros tão importantes na família. Justamente a sua base.
Aquele acidente estúpido... aquele motorista idiota e irresponsável! Tirara dela o que tinha de mais precioso: os pais.
Na volta do carnaval, um motorista embriagado desfizera em segundos de irresponsabilidade a felicidade construída em anos de trabalho e união: a família Laurent.
Agora, era cada um pra um lado, e neste primeiro Natal sem os pais, isso ficara ainda mais marcante. Talvez André tivesse a esperança de que seu casamento seria um bom motivo para reunir a todos... mas então, deveria ter escolhido se casar mais perto de casa. Londres? Difícil todos conseguirem ir, assim, de uma hora para outra. Apenas Sarah, porque tinha mais um motivo para ir à Inglaterra.
Sim. Depois de tantos anos, uma pista.
Felipe lhe passara, antes de viajar, informações importantes. Embora as referências fossem confusas, ele encontrara indícios de que os pais biológicos de Sarah fossem ingleses.
Ao falar com André a respeito, ele prometera pesquisar, com a ajuda da noiva, que trabalhava em alguma espécie de órgão governamental. E, enfim, conseguira: havia o registro de uma menina recém-nascida de nome Serenna, seqüestrada e nunca mais encontrada. E Sarah sentiu um forte impacto em seu peito ao ouvir isso. Não fora este o nome que o pai dissera estar gravado em suas roupas? Quem sabe esta pista não a levaria direto para seus pais verdadeiros? E então, teria novamente uma família!
Esta esperança é que a movia agora, enquanto deixava o avião, cuja aterrissagem fora tranqüila.
Graças a Deus, seu irmão cumprira a promessa e a esperava na saída, abraçado a Susan, sua simpática noiva inglesa.
Sarah os abraçou, emocionada. Não via o irmão, desde o enterro dos pais, no início de março, e já era praticamente Natal...
De novo, a canção do filme pairou em sua mente, junto com um rosto que de vez em quando via em seus sonhos... Mas sacudiu a cabeça, afastando os devaneios. André já falava sem parar, e olhando seu rosto redondo e sorridente, Sarah se lembrou de algo que se esquecera completamente: ele também era adotado! Fora abandonado pela verdadeira mãe, com pouco mais de dois anos, e Martinho e Beatriz o adotaram. Mas era tão parecido com todos, que ninguém se lembrava do fato. Com Sarah era diferente, nunca haviam escondido o fato. Não que tivessem escondido de André sua condição. Apenas a esqueceram com o correr dos anos.
Então, Sarah sentiu-se realmente egoísta, por não ter pensado que ele sofria tanto quanto ela. E ficou feliz por ter vindo. Eles, os Laurent adotados, estariam unidos sempre, afinal.
Quando André viu sua bagagem, estranhou.
- Querida, você está de mudança? – ele brincou, e se espantou com a resposta da irmã.
- Claro que sim! Você tem idéia de quanto pode demorar uma pesquisa como a que tenho pela frente? Sem conhecer o país direito?
- Mas pode dar em nada, afinal... – ele comentou, preocupado, sem perceber o olhar divertido da noiva, ao seu lado em silêncio.
- Mesmo assim... Tirei licença de um ano, mais as duas férias vencidas... Ano passado, tirei falsas férias, eram dias que tinha na casa, horas extras, essas coisas... Então, logo depois das festas, começo a minha pesquisa, e também a procurar trabalho por aqui. Se prepare, irmãozinho, se pensou que não ia ter uma Laurent de olho em você, se enganou! Você já passou pra alguém seu velho “ap”? Não? Que ótimo, fico com ele.
- Meu Deus! O que foi que eu fiz? – André levantou os olhos para o céu, num gesto teatral.
A irmã riu, chamando-o de grande bobão, e Susan a acompanhou na risada. Logo, os três estavam em um táxi, necessário pro tanta coisa para ser levada. E dali a pouco estavam no pequeno apartamento perto do Regent Park, que André já desocupara parcialmente.
Juntos, arrumaram tudo, enquanto conversavam sem parar. Os dois irmãos, claro. Susan os observava, curiosa e divertida. Eles falavam numa mistura engraçada de inglês e português, como se não conseguissem se decidir sobre que idioma usar, o que tornava a conversa bastante estranha...
Quando a arrumação terminou, Susan já lhes acenava com o jantar pronto. E, depois de mais algumas horas, Sarah finalmente foi deixada sozinha. Olhou em volta, pensativa.
Estava em seu novo lar, sua nova vida.
Nova vida... O que será que encontraria? Que surpresas estariam reservadas para ela, neste “novo velho mundo”? Já vivera ali por algum tempo, mas era de passagem, um passeio. Agora, não. Era definitivo. Pois já se decidira. Não voltaria ao Brasil, mesmo que as suas pesquisas não dessem em nada. Não tinha nada pra que voltar. Nem seu trabalho a entusiasmava mais, como antes. Trabalhara o ano inteiro, quase como um autômato. Apenas com as crianças da Fundação, se soltara um pouco mais e conseguira se sentir bem, útil, produtiva. Havia também o processo de adoção de Aline e Leo, que estava emperrado em questiúnculas jurídicas...
Não, não poderia continuar naquele marasmo, naquela subvida! Precisava de uma mudança. Uma mudança radical!
E era o que estava fazendo. Com certeza.
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