capítuolo 16



Os dois dias que se seguiram, Sarah os passou meio em suspenso. O primeiro, gastou comprando roupas mais apropriadas para o inverno londrino, já que tinha poucas peças de sua última viagem. A peça mais inusitada era um cachecol vermelho e amarelo, feito por Aline- a menina aprendera tricô com Irmã Bernadete - que muito a emocionara, ao se despedir.
- Você vai pra terra de Harry Potter – a garota dissera, fazendo-a a rir com gosto – tem que levar algo que o faça reconhecer você.
- E como este cachecol vai ajudar? – ela perguntara, tentando entender o raciocínio da garota de 9 anos.
- Ora! É igual ao que ele usou no filme, lembra?
Sarah sorrira, lembrando-se de que uma das voluntárias da fundação doara fitas e livros que sua filha resolvera não querer mais, entre eles, alguns volumes de Harry Potter. Aline fora uma das crianças que mais apreciaram os filmes e livros. Sarah aceitara o presente, com alegria. Afinal, frio no pescoço não ia sentir de jeito nenhum, mesmo que não encontrasse o tal de Harry Potter, respondera. Duvidava que ele existisse.
- Existe sim! – a garota insistira.
- Ah, eu sei. VOCÊ é que não existe, sua danadinha!
Elas haviam se abraçado, e Sarah por um momento quase desistira.... Depois, pensou, quando ajeitasse as coisas, talvez trouxesse a garota e seu irmão para morar com ela. Talvez, a resposta que aguardava a respeito saísse mais cedo do que pensava. E ela continuaria a tradição da família Laurent, de aumentar os seus membros sempre que possível, da forma não usual. Será que os dois se adaptariam à Inglaterra, tão diferente de tudo que conheciam, se ela resolvesse mesmo não voltar ao Brasil?

Lembrando-se disso agora, suspirou. Primeiro, teria que arranjar um emprego para sustentar a si mesma, antes de pensar em trazer uma criança, aliás, duas, para sua responsabilidade. E se perguntou: será que ali, encontraria oportunidade de trabalhar no que estava habituada?
Haveria mercado para uma assistente social, formada também em letras e pedagogia, com pós graduação em psicologia infantil? Seu currículo costumava espantar até seus colegas de trabalho mais graduados, que viviam se perguntando como ela tinha conseguido cursar 3 faculdades e ainda trabalhar tanto.
Ela respondia simplesmente que era “mal de família”. Sim, Martinho também era formado em 3 cursos diferentes e sempre estimulara os filhos a estudarem e muito. A fama de CDF’s perseguia todos os filhos da família Laurent, e Sarah era seu maior expoente neste sentido.
Ma ainda tinha a questão de providenciar o reconhecimento de seus títulos ali, naquele país. Os primeiros contatos com a burocracia inglesa quase a desanimaram.
- Por que não me mudei pra Portugal? Lá, pelo menos a língua não atrapalha...
Quando chegou em casa, estava exausta. Os pés, frios e molhados. Pensou em quanto quisera ver a neve, quando criança... com certeza, a neve de seus sonhos não se transformava na lama gelada em seus sapatos agora.
- Botas. Tenho que comprar botas novas, as minhas não vão agüentar.

*****

E chegou o grande dia. O casamento de André! Sarah nem conseguia acreditar que era isso mesmo. Seu irmão caçula estava se casando. Agora, ela seria a única Laurent solteira.
Sorriu para seu reflexo no espelho, enquanto exclamava baixinho:
- Definitivamente, estou ficando pra titia...
Seu reflexo, por um minuto, lhe pareceu o de uma mulher estranha. Não sabia exatamente porque escolhera justo aquele vestido. Verde, presente de um professor inglês que conhecera no ano anterior e passara o Natal com sua família, a convite de seu pai, era apropriado para o inverno, com certeza, mas... pareceu-lhe tão estranho, de repente.
Não que fosse espalhafatoso ou “brega”. Pelo contrário. Era um vestido clássico, apesar da cor incomum. E tinha um ar de... coisa de filme... daqueles filmes sobre princesas encantadas, bruxas e fadas... Talvez pelo falso xale que lhe envolvia os ombros num calor gostoso, naquele inverno tão diferente do que estava habituada.
Dando de ombros, pois se não fosse com ele não teria outra opção, André lhe avisara em cima da hora que tipo de festa faria, acabou de se aprontar e saiu para pegar o táxi que já a esperava. Uma sorte em véspera de feriado, conseguir achar um disponível para o horário que pedira.

O local da festa era inusitado: um prédio antigo, que Sarah jurava estar a ponto de ser demolido. Dentro, porém, o ambiente era requintado e muito bonito, além de quentinho.
A família de Susan, pelo visto, era de gente importante, pois todos estavam em trajes de gala. Ou, então, na Inglaterra era comum se vestirem para um casamento como se fossem a um baile na Corte, Sarah pensou com bom humor e deu graças a Deus por seu vestido não ser inadequado, enquanto seu casaco era guardado por uma mulher pequena de aparência estranha. Só de uma coisa sentira falta ao se arrumar: uma jóia que tinha desde pequena e que ficara perdida, talvez até deixada pra trás, pois não a encontrara em suas coisas.
Os amigos brasileiros de André se misturavam com os amigos ingleses, por alguns trabalharem juntos ou já terem se conhecido através de André ou freqüentarem os mesmos lugares. Eram os que Sarah poderia considerar de “normais”, em ternos ou smokings, infalíveis pretinhos básicos ou combinações despojadas de peças da moda.
Mas os amigos e a família de Susan.... eram realmente, “um grupo à parte”. Em tudo. Era notável a maneira como evitavam conversar muito com os demais, embora um senhor ruivo que já começava a branquear os cabelos parecesse afoito em conversar com o máximo possível de pessoas, enquanto uma mulher também ruiva como ele, mas baixinha e rechonchuda, provavelmente sua esposa, tentasse evitar isso, puxando-o para trás, com olhar preocupado, a todo momento. E Sarah, nunca imaginaria, por exemplo, ver suco de abóbora em uma festa de casamento...

Notou que muitos deles a olhavam com simpatia, como se a conhecessem ou soubessem algo a seu respeito que ela não sabia. Em parte, percebeu, podia ser pelo seu vestido, de alguma forma mais próximo do que eles usavam do que o pretinho básico das amigas de André. Uma das jovens lhe perguntara se era da loja de Madame Malkin. Ela respondera que não sabia, que o ganhara de um amigo no Natal passado e... uma lembrança fugidia passou por sua mente, deixando-a com o olhar triste. A jovem pedira desculpas e se afastara, enquanto ela tentava em vão identificar as imagens fracas que lhe vinham à mente...
André fizera questão de apresentar à irmã um convidado em especial. Negro como ele, alto e forte, vestindo um terno elegante e discreto, e um inusitado brinco de ouro na orelha, Kingsley Schakebolt sorriu para ela, enquanto André comentava:
- Ele já foi assessor do Primeiro Ministro, acredite!
O homem fizera um gesto de quem diz que isso não era importante, enquanto Sarah imaginava que o homem poderia muito bem ser um daqueles agentes especiais que ela via em filmes de ação. Era o que chamariam no Brasil de “armário de quatro portas, aberto!” Alguma coisa nele parecia familiar... o nome, talvez... tinha certeza de já ter visto este nome. Mas Susan desviara sua atenção, apresentando-a aos seus pais.

Todos pareciam ao mesmo tempo querer se aproximar e manter a reserva... E ela continuava com a estranha sensação de já conhecer pelo menos alguns, como aquele rapaz de olhos verdes e óculos, por exemplo. Notara que ele não perdia um só movimento seu, e parecia vigiar quem se aproximava dela. E quando o menino estranho, todo vestido de preto se aproximou, ele cruzou rapidamente a distância que os separava, chegando perto a tempo de ouvir o garoto se apresentar.
- Oi, você é a Sarah, não é? Sou Alan Patrick Sn... – e foi interrompido bruscamente pelo outro.
- Oi, sou Harry. Prazer.
Sarah estranhou. Ingleses não tinham o hábito de se apresentarem só pelo primeiro nome... isso era coisa de brasileiro, completamente desligado de formalidades. Mas sorrira para os dois, gentil. Depois daquela apresentação incomum, o que se apresentara como Harry disse alguma coisa para o menino, que se afastou, indo falar com a mulher ruiva, a baixinha esposa do homem alto também ruivo, que logo veio até eles.
- Molly! – Harry a cumprimentou – Você já conhece a irmã de Andrey?
Sarah estava achando engraçada a forma como falavam o nome de seu irmão, mas já quase se acostumara.
- Ah, você é a Sarah, não é mesmo? Que bom que pode vir, querida. Andrey comentou conosco que é... como é mesmo? Ah, sim. Assistente social? Isso é maravilhoso!
Harry sorriu, e comentou:
- A Molly já está querendo “te laçar”... cuidado.
- Harry, que exagero! Não é nada disso – Molly arriscou um tom ofendido, que a Sarah pareceu forçado. Aliás, a conversa parecia já ter sido ensaiada, mas ela não sabia suas falas, pensou com um toque de ironia.
- Sabe, uma de minhas seis... – Molly se interrompeu, Harry teria lhe dado um cutucão? Mas continuou como se nada tivesse acontecido - Tenho uma nora brasileira, mas infelizmente não pode vir, compromisso de trabalho. Ela é uma...
De novo, Sarah pensou ter visto Harry cutucá-la, mas fingiu que nada estava acontecendo. Os dois já estavam bastante constrangidos, pelo jeito, pois mantinham a custo um sorriso “amarelo”.
- É que a Molly está muito entusiasmada com um novo... projeto, e está o tempo todo tentando nos convencer a ajudá-la, na certa vai fazer o mesmo com você – Harry se apressara em explicar.
- Ora, Harry, se ela tem mesmo experiência com esse tipo de coisas, poderia nos dar umas dicas de como fazer...
O sentido profissional de Sarah nunca desligava, por isso, seu olhar mudou de imediato. Do que falavam? Algum projeto social? Ou alguma escola especial? Porque tinha sim, formação e experiência e, inclusive, procurava uma colocação. Pretendia firmar residência na Inglaterra.
- Está vendo, Harry? Ela está procurando trabalho. E nós, uma profissional como ela. Não é muita sorte? Por Mer...
De novo, o cutucão, e Sarah imaginou que a pobre senhora já estaria com as costelas roxas a esta altura.
Molly, um pouco sem graça, começou a falar sobre crianças deixadas sem lar pela guerra, acolhidas de maneira... emergencial, mas elas não podiam ficar assim, precisavam de famílias de verdade, a vida em orfanatos não era muito... promissora, por melhor que se tentasse fazer. Sempre havia o risco...
Aí, estranhamente, ela se interrompeu, emocionada. Harry, prontamente, completou.
- Nossa preocupação é porque não temos uma experiência muito positiva com isso... Eu mesmo fui criado por uma família que me via como... um fardo.
- Sei como é – Sarah, falou, compreensiva – Eu fui adotada também, por uma família que, felizmente, sempre me amou muito. E André também, foi adotado. – ela procurou André com os olhos, ele estava do outro lado do pequeno salão, abraçado feliz com a jovem esposa, e por um momento, Sarah se lembrou de Martinho e Beatriz, seus queridos pais, de como eles estariam felizes se pudessem estar ali, e completou mais para si mesma – Com certeza estão...
- O que disse, querida? – Molly perguntou com voz gentil, percebendo os olhos marejados da mulher à sua frente.
- Desculpem-me, sim? – Sarah balbuciou, e se afastou em direção ao banheiro.

Lá, deixou-se ficar por alguns minutos, tentando recuperar a serenidade, fazendo força pra não chorar.
Os pais estavam ali, sim, com certeza, em espírito, e estariam sempre com ela, torcendo por sua felicidade. Não gostariam de vê-la tão triste, ainda mais num dia como aquele. Nem André, ou sua noiva.
Resoluta, lavou o rosto e, sem se preocupar em retocar a maquiagem, que era quase nenhuma mesmo, voltou ao salão.

Rapidamente, localizou Harry e Molly, no meio de grupo de “amigos da noiva”. Foi até lá em passos decididos, causando espanto a alguns que pareceram confusos com sua chegada.
Mas não ligou pra isso, cumprimentou a todos com um sorriso tímido, e falou diretamente para os dois:
- Este projeto de vocês... No que estão pensando, exatamente? Já existe uma casa, um espaço, qualquer coisa, onde estas crianças podem ser acolhidas? E vocês querem mesmo que eu trabalhe com vocês? Acham que posso ajudar, mesmo sendo recém-chegada ao país? Vou ter que me colocar a par das leis aqui, dos procedimentos, tudo pode ser diferente do que já vi, mas... eu aceito!
A expressão de alívio no rosto deles só não foi maior que a de espanto nos rostos dos demais. Mas Molly já a abraçava, feliz, e dizia que esperaria por sua visita na segunda-feira, sem falta.
Então, um pedaço de papel lhe foi passado, onde se lia um endereço em caligrafia fina e miúda, que ela teve a impressão de reconhecer.

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