O sacrifício
- Eles já foram?
- Já. Podemos sair daqui.
Gina levantou, cautelosamente e bem devagar, o tampo do alçapão onde ela e Hermione estavam escondidas por longos e tensos minutos, esperando que os comensais perdessem suas pistas e desistissem de procurá-las naquele lugar. O tampo rangeu sensivelmente em suas dobradiças até encostar-se ao chão, do outro lado; com um pouco de dificuldade, Gina se esgueirou para fora do compartimento, e em seguida Hermione fez o mesmo. Elas se sentaram por um momento no chão, as pernas ainda dentro do alçapão, e se fitaram nos olhos. Gina não podia ver Hermione claramente; seu rosto estava parcialmente imerso nas sombras da sala escura, apenas uma porção dele sendo iluminada pela luz vacilante das estrelas; no entanto, podia enxergar perfeitamente seus olhos, e havia um quê de dor e pena nos olhos castanhos de Hermione.
Parecia que elas estavam imersas no próprio universo; as estrelas piscavam ao seu redor, e o planeta Saturno orbitava não muito distante, ou pelo menos era o que parecia. Seria um lugar belo e fascinante se a situação não fosse tão desesperadora. Elas tinham entrado ali ao acaso, fugindo dos vários comensais que as perseguiam. Era suicídio tentar enfrentá-los, logo, tudo que elas puderam fazer foi proteger suas próprias vidas e torcer para que Harry, Rony, Luna e Neville tivessem feito o mesmo. Gina sentia como se uma mão esmagasse seu peito só de imaginar o que poderia ter acontecido a eles.
- É melhor irmos embora, é possível que eles voltem ou ainda estejam por aqui. – Gina disse depois de algum tempo, muito mais para escapar ao olhar penetrante de Hermione, do que pela segurança das duas.
Hermione não disse nada, apenas se levantou, assim como Gina, e as duas empurraram juntas o tampo de volta ao seu lugar. Ele se confundiu novamente com o universo estrelado no qual elas estavam imersas. Gina nem acreditou que tivessem conseguido encontrar aquele esconderijo; estava profundamente agradecida até agora por Hermione ser tão inteligente a ponto de, com um único feitiço, descobrir um lugar como aquele para se esconderem.
Elas caminharam em silêncio por alguns minutos, as varinhas em punho, os olhos e os ouvidos alertas, mesmo que estivessem ambas permanentemente aterrorizadas por pensamentos negros sobre o que poderia estar acontecendo naquele exato momento com os outros. Gina fitou Hermione de esguelha, e viu que ela estava compenetrada procurando uma porta de saída; de vez em quando ela murmurava um feitiço para tentar revelar portas, mas demorou muito até que achasse alguma. Depois de vários minutos, uma das portas, assim que foi atingida, cintilou intensamente por causa do feitiço da garota, ofuscando por um segundo os olhos das duas jovens; então o brilho diminuiu, mas ainda era suficiente para mostrar uma porta brilhante como se fosse formada por estrelas. Sob a luz intensa delas, Gina notou o feio vergão no pescoço de Hermione – resultado da mão prateada de Rabicho – quando ela se adiantou para levar a mão à maçaneta cintilante.
- Você está bem, Hermione? – perguntou e, quando a garota se virou, intrigada, para encará-la, Gina apontou o pescoço da outra. – Isso.
- Ah... – Hermione suspirou, levando uma das mãos ao pescoço e envolvendo-o delicadamente; ela parecia tentar esconder, em seu rosto, a expressão de dor. – Está tudo bem, Gina, acho que não foi nada sério. Apenas arde um pouco.
- Tenho certeza que vão conseguir encontrar uma maneira de tirar essa marca daí.
Houve uma pausa breve. Hermione baixou os olhos por um instante.
- Não tenho tanta certeza assim, Gina. – ela disse, tentando esconder um tom de tristeza em sua voz, e Gina teve a impressão que não era por causa da marca em seu pescoço. – Certas cicatrizes não desaparecem...
As palavras dela dirigiram o pensamento de Gina de imediato a uma pessoa.
- Está se referindo ao...?
- Não, não à cicatriz do Harry. – Hermione disse lentamente, balançando a cabeça. Quando ela ergueu o rosto para Gina, a garota pôde enxergar novamente aquela dor no olhos de Hermione, mesmo que seu rosto estivesse quase totalmente imerso nas sombras. – Eu quero dizer... as cicatrizes que ele deixou em você.
Gina arregalou os olhos, lentamente, sem, no entanto, desviá-los do rosto de Hermione. Tantos sentimentos se confundiram em seu peito, que Gina quase não podia defini-los. Havia raiva, dor, ressentimento, mágoa, decepção... Mas havia também ternura, carinho, admiração, respeito e... amor. E tudo isso junto doía. Eram cicatrizes, como Hermione acabara de dizer. Elas estavam marcadas dentro de seu peito, junto com outras cicatrizes que Gina tinha adquirido naquela noite; porém, as marcas que Harry tinha deixado pareciam ser as mais fortes e dolorosas.
- Você conseguirá perdoá-lo, Gina?
Silêncio. Longo. Profundo. Implacável.
- Eu não sei. – Gina disse com sinceridade; havia uma tristeza enorme dentro de seu peito, que parecia mergulhada em um imenso abismo pungente de dor. Mas não havia lágrimas para chorar, lágrimas que pudessem amenizá-las, pois Gina se sentia amargamente seca. – Eu não sei o que devo fazer ou sentir, Hermione...
Gina abaixou o rosto por um momento, incapaz de continuar enfrentando os olhos doloridos e penalizados de Hermione. De repente, tudo aquilo que estava acumulado pareceu emergir, sufocando-a; tantas coisas que tinham acontecido naquela mesma noite, mas que até o momento pareciam pertencer à outra vida, remontando a longos anos anteriores... mas não. Tudo tinha acontecido naquela noite, e Gina não poderia esquecer. Havia ela e Harry discutindo em Hogwarts ainda... depois de dançarem juntos... abraçados... ela deveria ter percebido o que ele tentara dizer naquele momento, quando confessou que havia algo que precisava lhe contar. Havia o ataque dos comensais ao castelo, havia ela sendo derrotada por eles... havia ela acordando no Departamento de Mistérios, para ser humilhada, enojada e suja por Draco Malfoy. Havia Harry revelando sua grande e sórdida mentira – não para ela, mas para Malfoy, como se Gina estivesse em segundo plano, como se ela merecesse ser a última a saber. Havia Harry explicando tudo aquilo, que para ela era incompreensível, pois Gina não conseguia entender como ele pudera ser tão falso a ponto de fingir atitudes, palavras e... sentimentos...
E agora eles estavam mais uma vez separados. E mesmo que Gina estivesse ressentida, dilacerada, ferida e furiosa, ainda assim ela não podia deixar de sentir um medo agudo e monstruoso ao imaginar o que poderia estar acontecendo com Harry. Como se uma parte sua estivesse sendo arrancada. E ela tremia só de pensar em perder definitivamente essa parte. Porque, mesmo depois de tudo que Harry tinha feito, ela não conseguia deixar de amá-lo com a mesma intensidade. Havia um véu escuro e pesado cobrindo esse sentimento, mas ela sabia que ele estava lá; que bastaria um olhar, um sorriso, para que esse véu se descortinasse, revelando a verdade que estava dentro dela. Aquela verdade imutável, que ela jamais poderia modificar... que nada poderia diminuir...
Foi quando ela sentiu braços quentes, delicados e amorosos envolvendo-a. E mesmo que sentisse um arrepio e um tremor involuntário de início, temerosa que mãos a tocassem mais uma vez, Gina não pôde repelir esse gesto de amizade tão cheio de ternura de Hermione. Permitiu-se encostar a cabeça no ombro dela, escondendo o rosto entre os cabelos fofos da garota, sentindo um aroma suave invadindo suas narinas; um nó se instalara em sua garganta, impedindo-a de respirar como se deve. Sentiu as mãos carinhosas de Hermione alisando o topo de sua cabeça, quase maternalmente. Nenhuma delas disse palavra alguma, mas também não se fazia necessário; havia um entendimento perfeito entre as duas apenas por aquele gesto. E Gina para sempre se lembraria daquele abraço.
Silêncio. Silêncio que atordoa. Silêncio que corrói. Silêncio que mata. De tédio.
- Neville, você não acha que já podemos sair daqui?
- Shhh!
- Ah...
A testa suada e fria de Luna tocou a madeira áspera. Ela suspirou muito profundamente, revirando os olhos. Quanto tempo já poderia ter passado, desde que ela e Neville se esconderam naquele armário apertado e desconfortável para fugirem dos comensais? Cinco minutos? Meia hora? Duas horas? Uma semana? Vinte anos? Ela não tinha a mínima noção, mas parecia muito, muito tempo.
O cheiro doce e enjoativo de mofo penetrava em suas narinas. Luna estava começando a ficar impaciente. Não, ela estava impaciente, e não fazia pouco tempo. Suspirando mais uma vez, ela moveu lentamente a cabeça, procurando os olhos de Neville. Seu rosto redondo estava concentrado, seus ouvidos atentos a qualquer sussurro que pudesse significar a aproximação de algum comensal. Luna, a princípio, tivera que convencê-lo que era loucura enfrentar tantos comensais de uma só vez, mas agora estava um pouco arrependida, pois Neville levara a sério a sugestão dela de se esconderem, talvez sério demais, e estava irredutível: não queria sair dali enquanto não estivessem totalmente seguros, o que seria um pouco impossível de conseguir naquela situação. Mas Luna não deixava também de achar doce a atitude de Neville; ele estava empenhado em protegê-la, e aquilo era muito gentil, e algo a que a garota não estava suficientemente acostumada.
- Neville... – ela murmurou, próxima ao ouvido dele, e o garoto se virou para ela, seus narizes molhados de suor se batendo no escuro; o armário era tão minúsculo, que eles estavam praticamente grudados. – Está tudo bem, acho que já podemos sair...
- Você tem certeza? – ele sussurrou, preocupado, sobre ela, de maneira que Luna conseguia sentir seu hálito quente junto ao rosto. – E se eles...?
- Nós teremos que enfrentá-los. – ela retrucou determinada. – Vamos estar juntos, Neville. O que não podemos é nos esconder para sempre!
Ela quase pôde sentir quando ele sorriu.
- Você tem razão, Luna. Nós temos que fazer alguma coisa, e não vai ser dentro de um armário que vamos conseguir.
Ela sorriu de volta. Houve uma breve pausa entre os dois, então o ruge-ruge de roupas se movimentando, e Neville, ainda com cautela, abriu devagar a porta do armário. Eles saíram, espiando para os lados à procura de inimigos, mas não havia ninguém exceto os dois na sala. Mas aquela não era a sala que eles tinham entrado fugindo dos comensais.
- Mas... o quê?
Quando Luna encostou a porta negra atrás de si, os dois se viram naquela sala escura e redonda, com doze portas e tochas que azuis que giravam vertiginosamente à medida que também a sala rodopiava. Neville estava com o queixo caído de surpresa quando se virou para Luna, seu rosto parcialmente encoberto pelas sombras.
- Não era essa a sala que estávamos antes!
Também chocada, Luna se virou para um momento para trás, para onde estava a porta pela qual tinham acabado de passar. Eles tinham entrado no armário em uma sala e saído em outra. Ela se virou de volta a Neville, que não parecia compreender.
- Eu não sei, mas... – ela disse incerta, ainda pensativa. – Bem, esse lugar estuda coisas como o Tempo, o Universo, a Morte... – por um segundo, ela se lembrou dos pais, mas tentou não pensar na falta que sua mãe fazia naquele momento. – Talvez... talvez essa sala seja o Espaço...
Neville arregalou os olhos.
- Não é à toa que você está na Corvinal, não é? – ele elogiou. Luna conseguiu rir.
- Mas eu não sou nenhuma “Hermione Granger”, você sabe! – ela zombou, dando de ombros.
Ele apenas sorriu de volta. Porém, os dois voltaram a ficar tensos e atentos quando a sala parou de girar.
- E agora?
- Vamos escolher uma porta. – Neville disse, um pouco nervoso, adiantando-se para uma porta qualquer; porém, antes que pudesse ao menos encostar os dedos na maçaneta, Luna segurou seu braço. Ele se virou intrigado para ela.
- Neville, o que você sentiu quando ouviu o que o Harry disse?
Houve uma pausa longa entre os dois. Os olhos de Neville estavam focados em Luna, vidrados e opacos, quase vazios. Ele parecia paralisado; talvez pelo choque, surpresa ou, ainda, medo – Luna não sabia precisar. Mas ela sentiu muito bem quando a pele dele (Luna ainda apertava seu braço) tornou-se gradualmente mais fria, quase gelada, devido à tensão do momento e da pergunta. Neville, lenta e suavemente, desembaraçou-se do aperto da mão de Luna.
Ele desviou seus olhos dos dela por um instante, como se buscasse uma resposta, ou talvez para fugir da pergunta. Por um segundo, Luna desejou não ter sido tão inconveniente a ponto de perguntar algo tão pessoal e quase pediu desculpas, mas antes que as palavras pudessem sair de seus lábios, Neville voltou a encará-la, e o olhar machucado dele a desarmou por completo.
- Você me pergunta o que eu senti, Luna... – ele disse muito devagar, transpirando tranqüilidade, porém, no fundo – Luna tinha certeza – ele deveria estar se debatendo em dúvida e aflição. – O que você acha que eu deveria sentir?
Luna não sabia o que responder. A pergunta de Neville era quase uma súplica desesperada, como se ele implorasse por um conselho, uma opinião, uma palavra qualquer que pudesse serenar o mínimo que fosse sua angústia. E Luna não sabia se era a pessoa certa para dizer aquela palavra; aliás, ela não tinha a mínima idéia do que dizer numa situação daquelas. Ela não achava que pudesse compreender a transcendência das aflições de Neville.
O que Harry tinha revelado descortinava uma série de angústias e perguntas que Luna sabia que não poderia responder. Ela apenas podia imaginar o que Neville deveria estar sentindo depois de saber tudo aquilo; saber que ele estava em uma profecia, saber que ele poderia ter sido o escolhido para destruir o bruxo mais maligno de todos os tempos... mas Neville não tinha sido essa pessoa. Ele tinha sido somente Neville. Um garoto normal, atrapalhado, às vezes cruelmente ridicularizado pelos outros que se julgavam melhores ou mais capazes que ele. Somente Neville. Sem títulos. Mas como Luna poderia mostrar a ele que ser somente Neville era uma coisa boa?
- Eu não sou a pessoa certa para dizer isso, Neville. – ela disse finalmente. – Ninguém é, exceto você. Você é o único que pode dizer o que deveria sentir – e sentiu – ao descobrir tudo aquilo. E é você quem deve saber o que fazer a respeito, o que pensar, agora que sabe...
Neville abaixou os olhos e fez silêncio por longos e quase palpáveis minutos. Quando falou, sua voz era ainda mais distante, mais baixa que um sussurro:
- É difícil explicar, Luna... Eu pensei e senti tantas coisas... – ele respirou fundo, ainda sem fitá-la. – Eu pensei em como eu cresci e... e em como minha avó e todos na minha família pensavam que eu seria um aborto... e daí, depois, em como todos pensavam – e continuam pensando, mesmo que alguns digam, outros não – em que bruxo medíocre eu sou...
Luna quase o interrompeu nesse momento, mas acabou não o fazendo. Percebeu que era importante para Neville terminar o que estava dizendo, agora que tinha iniciado.
- As risadas de zombaria... – ele enumerou, ferido. – Os comentários maldosos... as piadas... as críticas... Tudo isso me passou pela cabeça. E então, eu pensei “por que eu não pude ser como Harry, que todos sempre admiraram e respeitaram? Por que ele foi escolhido para ser tão grande, enquanto eu sou tão pequeno, se nós dois um dia” – ele riu sem alegria. – “dividimos uma mesma profecia, algo que influía em tantos destinos?”
Nova pausa.
- Quer dizer... até parece absurdo, ridículo... incoerente... dizer que eu, o Neville, possa ter, algum dia, tido a mesma chance de ser como Harry Potter. – ele respirou fundo. – Bem, eu cresci ouvindo as histórias sobre ele, assim como qualquer garoto da minha idade... E tudo sempre pareceu tão distante...
Luna assentiu, mesmo que Neville não a estivesse olhando. Ela também tinha crescido ouvindo aquelas histórias. E se para ela já parecia absurdo que ela, Luna, participasse daqueles acontecimentos da guerra com tamanha intensidade, como quando ela servira de canal para que Harry soubesse o que Sirius Black queria dizer desesperadamente, ela ficava imaginando o quão atormentador seria pensar que, no caso de Neville, ele poderia ser a pessoa mais importante daquela história, a pessoa que mudaria todos aqueles destinos...
A voz de Neville, no entanto, voltou a soar, com uma serenidade incompreensível, interrompendo os pensamentos de Luna:
- Mas aí eu pensei, não em “Harry Potter”, mas no Harry. Isto é, no amigo que eu conheci ainda pequeno, que dividiu o quarto comigo por tantos anos, que estava sempre disposto a me ajudar se pudesse e... em tudo que ele teve passar, exatamente porque foi escolhido. E, sabe Luna, eu me senti muito egoísta. Porque, dentro de mim, eu fico remoendo o meu próprio sofrimento, as minhas frustrações, sem perceber que existem coisas maiores... – os olhos sinceros dele finalmente encontraram os de Luna, e ela percebeu que eles estavam marejados. – Eu me coloquei no lugar dele, e foi então que me dei conta... Poderia ter sido eu, Luna, que teria que passar por tudo isso. Mas não foi. Será que eu conseguiria suportar passar por isso? Será que eu iria até o fim, tendo que carregar um fardo tão imenso? Eu não sei, Luna. E foi então que eu percebi... não foi Harry que teve “sorte” de ser escolhido. Fui eu.
Silêncio. Novamente, Luna não soube o que dizer. Ela apenas ficou encarando Neville, fitando aqueles olhos ligeiramente marejados de emoção. Ela, então, se deu conta de que não havia o que dizer; não havia palavras suficientes, que traduzissem com fidelidade o que ela gostaria de falar, o que ela estava sentindo. Tudo o que ela pôde fazer foi se aproximar de Neville, erguer-se ligeiramente na ponta dos pés e aproximar-se dele, confortando-o como podia com um cálido beijo no rosto, para depois envolvê-lo com os braços em um terno abraço reconfortante.
Era a maneira que ela tinha para dizer que estava presente, ao seu lado.
- NÃO É POSSÍVEL!
Harry gritou, furioso, um palavrão. Ele parou de andar por um instante, seu rosto contraído em raiva e frustração; parecia pensar. Rony também parou, ao seu lado, observando o amigo em silêncio. Por sua cabeça passaram vários pensamentos nefastos. Ele fechou os olhos por um segundo, tentando afastá-los.
Já fazia vários minutos, talvez horas (Rony não sabia, tinha perdido a noção do tempo naquele lugar), que eles procuravam aquela maldita Sala da Morte. Harry estava obstinado a encontrá-la, como Rony jamais tinha visto igual; era uma idéia fixa, como se fosse algo que Harry tivesse começado e, agora, sentisse a necessidade de terminar. De certa maneira, era isso mesmo que acontecia.
- Esse maldito lugar! – Harry urrou, irritado, socando a parede para descarregar a frustração. – É pior que um labirinto! Onde está essa merda dessa sala?!
Houve uma breve pausa.
- Eu às vezes preferia que você não a encontrasse.
Harry se virou de súbito para Rony, seu semblante completamente desarmado. Seus olhos estavam paralisados, seu queixo ligeiramente caído. Rony pigarreou, desviando o olhar, sentindo-se muito envergonhado.
- Me desculpe... saiu sem querer. – ele se apressou em dizer, respirando muito fundo. – Eu não pensei antes de falar.
Nova pausa. Harry soltou um ruído abafado com a garganta.
- Rony... eu preciso fazer isso.
A voz dele era mais amena, até mesmo calma, quase resignada – Rony arriscaria dizer. Ele parecia constrangido. Porém, Rony ainda não tinha coragem suficiente a ponto de encará-lo. Era doloroso.
- Tudo bem. – disse vagamente, a voz teimando em sair entrecortada, mesmo que ele fizesse força para não transparecer. – Eu entendo. Mesmo.
Quando Rony ergueu os olhos, acabou surpreendendo o braço de Harry estendido; parecia que ele tivera a intenção de postar a mão no ombro do amigo, mas o olhar de Rony o fez desistir. Os olhos de Harry eram melancólicos. Ele parecia... vulnerável. Foram poucas as vezes em que Rony o vira dessa maneira; talvez naquela noite sinistra, quando Harry saiu do labirinto após Voldemort ressurgir – Rony nunca poderia esquecer o choque que sentiu ao ver seu amigo naquele estado – ou, ainda, quando Sirius morreu, e Harry, apesar de tentar não demonstrar, estava inegavelmente destroçado por dentro. Mesmo assim, era estranho, pois Rony sempre tivera a falsa sensação de que, não importava o que acontecesse, Harry sempre iria suportar o que viesse. Qualquer coisa. Sempre seria forte para vencer os obstáculos. Mas, afinal, não era assim. Harry não era diferente dos outros. Ele também tinha o direito de possuir suas próprias fraquezas. E, aquela fraqueza que ele possuía – Rony o sabia – não o desmerecia de maneira alguma. Não era sinônimo de covardia, pelo contrário; apenas um homem forte seria capaz de ser vulnerável por aquilo. Rony sabia que o ponto fraco de seu amigo não era ele próprio, mas sim os outros. As pessoas que ele amava.
- Obrigado, Rony. – Harry disse devagar, com sinceridade. – Obrigado por tudo.
O silêncio se abateu novamente sobre eles. Rony, mais uma vez, desviou os olhos do rosto do amigo, incapaz de continuar a fitá-lo. Harry tampouco parecia à vontade. Houve talvez quase um minuto de silêncio até que a voz de Harry soasse mais uma vez.
- Nós estamos perdendo tempo. – ele disse, novamente assumindo aquele senso prático. Rony limpou o rosto na manga, tomando cuidado para que Harry não o percebesse. – Dumbledore já deve ter chegado, e nós ainda não encontramos a sala. Eu não tenho certeza se aquele filho da mãe do Rabicho vai passar minha mensagem a Voldemort...
Rony se virou inesperadamente, intrigado.
- Mas você não tinha colocado um feitiço nele para ter certeza que ele faria isso?
Harry soltou uma risada debochada.
- Então você acreditou em mim, Rony?
- Mas... eu não entendo, Harry... você tinha dito...
Novamente, Harry riu, mas sem alegria.
- Eu estava mentindo. – Rony ergueu as sobrancelhas. – Pois é, quando você se acostuma, a coisa fica fácil. – Harry completou com desgosto. – Não existe nenhum feitiço para isso, eu estava blefando. Joguei com o pavor de Rabicho naquele momento, mas não estou completamente seguro de que vá realmente dar certo...
Rony ainda estava abobado pelo choque.
- Você é um patife, Harry! – ele disse sem raciocinar e não percebeu como seu tom pareceu cômico aos ouvidos. – Mas... não posso negar que foi uma boa jogada.
Harry riu.
- Eu sei, Rony. Eu sei que sou.
O tom de voz dele, no entanto, era dolorido, repleto de culpa. Rony desejou não ter dito aquilo, mas já era tarde. Suspirando, Harry voltou a caminhar à procura da sala, praguejando sozinho. Rony o seguiu. Eles caminharam por o que talvez tenha sido quase uns quinze longos minutos até que finalmente dessem de cara com duas portas no final de um longo corredor. Os dois amigos se entreolharam no escuro, tensos. O coração de Rony batia muito depressa. Harry se postou à frente da porta da esquerda e levou a mão à maçaneta velha, de madeira...
Mas ela não girou.
Num primeiro momento, o rosto de Harry revelava surpresa e confusão, porém, no minuto seguinte, uma estranha e enigmática compreensão surgiu em seus olhos...
- Trancada? – Rony perguntou.
- Sim. – Harry respondeu com a voz vazia, ainda fitando com os olhos desfocados a porta à sua frente. – Está trancada.
Rony se virou para a outra porta, seu coração ainda mais acelerado dentro do peito. Ele estendeu a mão à maçaneta e, com um clique, ela girou...
Ele sentiu a movimentação do ar atrás de si quando Harry se virou bruscamente ao ouvir os ruídos que vinham da sala posterior à porta. Gritos, maldições, feitiços, lamentos, pragas... os sons inconfundíveis de destruição.
A partir daí, tudo transcorreu em câmera lenta, como num filme em cinema mudo. Houve pelo menos um segundo no qual Rony conseguiu observar tudo o que acontecia. Um segundo que parecia interminável...
Ele podia ver uma sala grande, retangular, com o centro afundado, formando um grande poço de pedra muito profundo. Rony estava no nível mais alto de uma série de bancos de pedra que corriam a toda volta da sala, descendo em direção ao centro como em um anfiteatro. E, nesse centro, havia um velho arco de madeira, com um véu negro que ondulava suavemente...
Mas nada disso estava preocupando Rony naquele momento. Os olhos dele perscrutaram toda a sala, hipnotizados. Havia dezenas de pessoas ali, tantas que não era possível contá-las. Rapidamente, ele enxergou vários conhecidos da Ordem da Fênix, como Tonks, Moody, Quim Shacklebolt e – ele arregalou os olhos – seu pai, Arthur Weasley, alguns de seus irmãos, Gui, Fred e Jorge. Havia também professores de Hogwarts, como Minerva McGonnagall, Remo Lupin, Hagrid e... Severo Snape. Todos, sem exceção, lutavam brava e incessantemente contra incansáveis Comensais da Morte. O espetáculo mais atemorizador, porém fascinante, era, certamente, o que se realizava no centro da grande sala.
Rony sentiu, por um instante, a respiração rasa de Harry ao seu lado; lançando-lhe um breve olhar de soslaio, conseguiu ver nos olhos do amigo desesperança e – sim – temor. Harry observava, como ele, Rony, o centro da sala, onde duelavam ferozmente Alvo Dumbledore e Lord Voldemort.
A primeira reação de Rony foi choque; em seguida, a mais pura aversão. Diferente de Harry – e isso era óbvio – ele nunca tinha visto, pessoalmente, Lord Voldemort. A imagem que fazia em sua cabeça era uma mistura confusa das histórias que ouvira quando criança – que os adultos, ainda aterrorizados, mesmo depois da queda do lorde, contavam –, com as narrações e descrições que o próprio Harry fazia a ele e Hermione. Mas nada, absolutamente nada, corresponderia fielmente à sensação horrenda que era vê-lo com os próprios olhos. Faltavam as palavras para descrevê-lo com fidelidade. Ele não parecia uma pessoa. Seu aspecto era repugnante. Um corpo magro, alto e esguio, coberto por um manto negro como a própria escuridão; pele macilenta, excessivamente branca, quase transparente, recobrindo um rosto ofídio, no qual a boca e o nariz eram simplesmente fendas abertas na pele. E os olhos... frios, fundos, estreitos, malévolos e... da cor do próprio sangue.
No entanto, aquele segundo interminável... teve seu fim.
- Não... – Harry sussurrou ao lado de Rony, parecendo não acreditar no que via; seus olhos estavam ainda mais fundos, vazios de vida. – Por favor, não....
As costas de Rony foram de encontro à parede, e ele por pouco não tombou ao chão quando seu melhor amigo, desesperado, empurrou-o bruscamente, sem nem ao menos se dar conta do que estava fazendo, a fim de abrir caminho para passar. Harry parecia descontrolado. Rony apenas teve o vislumbre difuso do amigo passando por ele num segundo e, plenamente consciente de que seu coração batucava tão forte no peito que parecia que este iria explodir, com a voz fraca, o rapaz apenas teve o tempo de exclamar, num último pedido aflito:
- Harry, espere...!
Mas Harry não lhe deu ouvidos.
Ele pulou degraus na ânsia de chegar ao seu destino. Parecia não enxergar para onde estava indo. Por vezes foi Rony, correndo a fim de segui-lo, quem atirou feitiços por trás dele, atingindo comensais ao seu redor que, percebendo quem tinha acabado de chegar, descuidavam de seus oponentes e viravam-se contra o maior inimigo do Lorde das Trevas, esperançosos para atingi-lo e alcançar glórias junto ao seu mestre. Harry, porém, não os via; eles eram completamente insignificantes para ele. Tudo o que ele parecia enxergar à sua frente era apenas o centro da Sala de Morte, onde duelavam, alheios em meio à feitiços e maldições brilhantes e a tudo que acontecia ao redor, dois dos maiores bruxos que o mundo mágico já conheceu.
- PAAAAAAAREM! – Harry se esgoelava em desespero, vencendo os últimos degraus que o separavam do centro da sala. Os bruxos, fossem comensais ou membros da Ordem, como se obedecessem à ordem angustiada de Harry, paravam para assistir, chocados em contemplação... – PAREM!
Entretanto, Dumbledore e Voldemort continuavam a trocar feitiços...
Quando finalmente chegou ao centro do “anfiteatro”, Harry sacou a varinha, apontou-a para os dois bruxos que duelavam e, ao mesmo tempo em que ambos lançavam feitiços um contra o outro, uma luz dourada voou da varinha de Harry, chocando-se contra os feitiços brilhantes de Dumbledore e Voldemort.
Houve uma magnífica explosão de luz e cores que ofuscou os olhos dos espectadores quando os três feitiços se combinaram. A descarga de força foi tão imensa, que tanto Harry, quanto Dumbledore e Voldemort cambalearam fortemente ao receberem a volta do impacto dos feitiços em si próprios, enquanto choviam sobre eles flocos de pura luz.
O silêncio era total.
A atitude de Harry surtiu o efeito que ele desejava. O diretor de Hogwarts e o temido bruxo das Trevas pararam de lutar e, juntos, viraram-se para Harry. Num primeiro momento, ambos pareciam igualmente surpresos. No instante seguinte, suas expressões já eram completamente divergentes.
Harry, parado, suado e ofegante, ainda com a varinha apontada, fitou primeiramente Dumbledore. E, naquele instante interminável, os dois pareceram se entender perfeitamente apenas pela troca de olhares. Havia desolação estampada no verde dos olhos de Harry, e era como se eles quase brilhassem com tristeza, questionando “Por quê?”. Os olhos azuis de Alvo Dumbledore, no entanto, não cintilavam por detrás dos óculos de meia-lua; estavam mortalmente opacos e apenas devolviam a Harry um olhar melancolicamente devastado, porém – não havia como negar – cheio de uma especial ternura que ele dirigia apenas ao seu mais querido aluno.
A seguir, Harry se virou lentamente para o outro bruxo. E não havia mais aquela tristeza brilhante em seus olhos agora. Havia, sim, um ódio escuro, ardente, amargo e fumegante, implacável, que tornava o verde em suas orbes quase negros. O corpo de Harry enrijeceu, e ele pareceu apertar com mais força e firmeza a varinha que segurava entre os dedos.
Voldemort, por sua vez, sorria. Sorria com uma alegria vazia, um contentamento ácido e perverso. Sorria com aquela boca sem lábios. E esse contentamento febril, áspero e acre, chegava aos seus olhos rubros, que cintilavam de prazer. Como se ele tivesse, depois de longos e penosos anos, atingido finalmente seu objetivo máximo. Como se tivesse alcançado seu tom sonhado e desejado prêmio ao final da jornada.
- Harry... ora, ora, Harry... – ele sussurrou suavemente, com uma satisfação maliciosa. Sua voz congelava até as últimas células do corpo de qualquer um, enquanto os pêlos dessa malfadada pessoa eriçavam por completo. – Você não imagina como estou contente por vê-lo... Estava esperando-o ansiosamente...
A primeira resposta de Harry foi um olhar de mais puro ódio. A segunda, veio com a voz rouca e também gelada, que nem parecia pertencer a ele:
- Sei o quanto está satisfeito. – ele retrucou com extrema ironia, erguendo uma das sobrancelhas, seus olhos verdes fixos nos vermelhos de Voldemort. – Mas não estou certo de que estivesse realmente me esperando com tamanha ansiedade. Eu enviei um recado para que me esperasse para lutar, mas estou vendo que não foi isso que fez.
Dumbledore pareceu se remexer por um instante, mas quando Rony se voltou para olhá-lo, o bruxo estava imóvel, observando com atenção o diálogo entre Harry e Voldemort. Era inusitado, mas a sensação que Dumbledore passava – fitando aqueles dois bruxos à sua frente, em silêncio, sem, por enquanto, nada dizer – era de respeito. Respeito pelo ressentimento e ódio justificados que havia entre Harry e Voldemort. Aqueles dois tinham várias contas a acertar. E Dumbledore parecia respeitar isso.
- Eu recebi o recado. – Voldemort ainda sorria, seus olhos presos em Harry e sua voz carregada de um sarcasmo gélido. – Parece que você arrumou um jeito de iludir o patético Rabicho aqui... – ele apontou com a cabeça um trapo humano que era Pedro Pettigrew, alguns metros atrás dele, aterrorizado. – ...e forçá-lo a seguir suas ordens. Mas não vejo nenhum mérito nisso. – ele continuou, quase rindo. – Ambos sabemos que Rabicho é quase tão corajoso quanto um... – ele ergueu as sobrancelhas ao insinuar, sua boca se abrindo ainda mais em um sorriso malicioso. – ...ratinho.
“O que eu gostaria de entender... – Voldemort prosseguiu, antes que Harry pudesse dar qualquer resposta. – ...é como você, que mal deixou de ser apenas um maldito moleque atrevido, conseguiu me enganar por tanto tempo... a mim, Lorde Voldemort...”
Houve uma breve pausa. O silêncio era tamanho, que se poderia escutar um alfinete caindo. Ninguém tinha a ousadia de emitir um ruído sequer ou mover ao menos um único músculo, completamente imersos que estavam em contemplar a discussão entre os bruxos no centro da sala.
O silêncio foi quebrado novamente, não por Harry, mas sim por Dumbledore:
- Neste caso, parece-me... – ele disse lentamente, também com uma certa malícia e algo maior: a superioridade e o poder que o diretor naturalmente impunha a qualquer um, até mesmo ao Lorde das Trevas, que se voltou lentamente para o velho bruxo. – ...que você não é tão esperto quanto supunha, Tom.
Voldemort endureceu o olhar ao ouvir seu nome verdadeiro. Ele não mais sorria. Antes, porém, que conseguisse dizer qualquer coisa, Harry voltou a falar, e ele agora sorria:
- Você caiu tão direitinho na nossa cilada, Voldemort, que eu e Dumbledore quase não pudemos acreditar na sua estupidez. – ele disse calmamente, o que parecia irritar ainda mais o bruxo. – De tão ridículo, parecia inacreditável... mas era verdade! Por um momento, eu e Dumbledore chegamos a pensar que você estava nos enganando, fingindo que sabia... mas não! – Harry riu. – Você realmente caiu feito um patinho!
- ORA, SEU MOLEQUE...
Voldemort tinha se voltado para Harry, com a varinha erguida e os olhos pulsantes de fúria, mas ele não chegou a terminar a maldição. As palavras ficaram presas em sua garganta ao ouvir as frases seguintes de Dumbledore, com sua voz branda e irritantemente suave para o lorde:
- A sua fraqueza lhe envergonha, Tom? Enfurece-o? – Dumbledore, ao contrário de Harry, não sorria; parecia, estranhamente, transparecer o que ainda deveria ser pior do que a ironia e zombaria de Harry: Dumbledore dava a impressão de estar explicando, pacientemente, algo muito complicado a uma criança rebelde, com uma expressão quase penalizada. – Quantas vezes eu já lhe disse que a sua maior fraqueza é exatamente ignorar e desprezar as coisas que lhe são mais ameaçadoras e perigosas?
- Seu velho tolo, está querendo insinuar que foi culpa minha que...?
Harry gargalhou. Todos, exceto Dumbledore, fitaram-no chocados. O diretor observava Harry cauteloso, quase temeroso.
- O quê?! – ele exclamou ainda com o vestígio do riso na voz. – Me diga, Voldemort: se a culpa de ser burro não foi sua, foi de quem, então? Minha? De Dumbledore? – ele riu novamente, falando muito depressa. – Ah, claro, eu deveria tê-lo feito ouvir meus pensamentos: “Hey, Voldemort, se toca, eu estou aqui te fazendo de idiota e você nem notou!” ou ainda Dumbledore poderia ter lhe mandado uma coruja, dizendo “Caro Tom, acho que você é incapaz intelectualmente, ou já teria notado que estamos lhe passando para trás. Atenciosamente, Dumbledore.” – Harry tomou fôlego para continuar, enquanto se ouvia exclamações de indignação por parte dos comensais pelo atrevimento do rapaz para com seu mestre. – Você deve estar brincando, não?
Tudo aconteceu num milésimo de segundo depois das frases impensadas de Harry. Voldemort, com os olhos cintilantes de ódio, ergueu a varinha para o rapaz, num gesto rápido, e gritou “Crucio”, com uma fúria implacável. Harry não teve tempo de reagir ou se defender. Houve um sufocado “oh” que correu pela sala quando ele foi atingido em cheio pela maldição. Dumbledore deu um passo à frente, seus olhos arregalados em terror e preocupação. No entanto, Harry não gritou ou se contorceu de dor como seria esperado, o que foi o mais chocante de tudo, especialmente para Voldemort e seus servos. Harry cambaleou, aspirando o ar num único hausto com muita força por causa do impacto, seus olhos arregalados; ele recuou um passo pelo susto, levando instintivamente a mão direita à cicatriz – mas, então, após um curto espaço de tempo, sorriu com dificuldade, porém ainda zombeteiro:
- Raiva justificada não faz doer por muito tempo, Voldemort... – ele disse calmamente, mesmo que ofegante. – Vai dizer que esqueceu como se faz uma Maldição Imperdoável?
Voldemort urrou de fúria; porém, antes que continuasse a desfiar maldições contra Harry, Dumbledore exclamou com autoridade:
- BASTA!
E, então com aceno da varinha para o alto, ele conjurou um teia brilhante e dourada de luz ao redor dele e de Voldemort, na forma de uma cuba, a qual parecia emitir minúsculas faíscas de fogo. Os olhos vermelhos de Voldemort se arregalaram para Dumbledore, intrigados; Harry, por sua vez, parecia atemorizado – seu sorriso desvaneceu por completo ao fitar a teia de luz que envolvia os bruxos e, depois, o rosto do diretor. Dumbledore, contudo, não fitava Harry; a partir dali, ele não mais dirigiu um único olhar para Harry. O diretor encarava seriamente Voldemort à sua frente, a varinha em punho.
- Nós ainda não terminamos, Tom. – ele disse serenamente. – Eu ainda sou seu único oponente.
Voldemort sorriu perversamente.
- NÃO! – Harry gritou, e agora estava novamente aflito, como antes. – NÃO, PROFESSOR!
Dumbledore, no entanto, ignorou-o por completo, posicionando-se para o duelo. Voldemort ergueu também sua varinha, ainda sorrindo.
- NÃO! – Harry repetiu, virando-se para Voldemort. – Eu sou seu adversário, Voldemort!
O bruxo apenas lançou um olhar divertido para Harry, pelo canto dos olhos, para logo depois se voltar ao diretor, que estava sério e compenetrado, e, logo, ele e Dumbledore tinham recomeçado a duelar, para desespero de Harry, que correu impetuosamente até a teia de luz, tentando impedi-los. Contudo, foi em vão. Ao chocar-se contra a cuba brilhante, as faíscas tornaram-se maiores e mais brilhantes, e Harry foi lançado para trás, caindo longe, de costas, no chão, com um baque surdo. Dumbledore e Voldemort nem tinham se dado conta do que acontecia fora da teia, imersos em seu duelo...
Rony desceu depressa os últimos degraus que restavam, enquanto observava Remo Lupin, mais próximo de Harry, chegar-se a ele e ajudá-lo a se levantar. Do outro lado, Rony viu Severo Snape se aproximando, e sentiu um assomo de raiva pelo professor. Ele não tinha nada o que se intrometer, por mais que estivesse do lado de Dumbledore.
- Não há nada que você possa fazer, Harry... – Lupin falou com aquele seu característico tom de brandura e compreensão na voz. – Acalme-se, Dumbledore conseguirá vencê-lo...
Harry murmurava palavras incompreensíveis, transtornado, tentando se soltar dos braços de Lupin, seus olhos vidrados na batalha que acontecia sob a teia de luz...
- Não seja tolo, Potter! – Snape finalmente apareceu, utilizando aquele seu tom de desprezo que reservava apenas para Harry. – Dumbledore é o bruxo mais poderoso que existe! – ele continuou, seu tom tornando-se gradualmente mais duro. Harry ainda tentava se desvencilhar de Lupin, lançando a Snape um olhar de puro rancor e ressentimento acumulados por longos anos. Lupin, por sua vez, lutava para manter Harry parado, seus olhos correndo do rapaz para Snape. – Não seja arrogante a ponto de achar que é capaz de vencer o Lorde das Trevas, seu moleque idiota!
Os olhos de Harry faiscavam de fúria e mágoa quando fitaram Snape, e sua voz era rascante de cólera ao retrucar:
- Idiota? Idiota?! O único idiota aqui que eu estou vendo é você, Snape, que ainda não se deu conta do que está acontecendo!
Aquilo só serviu para atenuar aquele olhar de desprezo e raiva que Snape sempre dirigia especialmente a Harry.
- Ora, seu garoto petulan...
- SERÁ QUE VOCÊS NÃO COMPREENDEM? – Harry gritou, finalmente se desvencilhando de Lupin e fitando, ambos, Snape e Lupin com a mesma intensidade. – Dumbledore não pode vencer Voldemort!
Houve uma breve pausa.
- Harry, o que você está dizen...?
- Ah, e você acha que pode, Potter?! – Snape exclamou, com ar de desdém. – Você? Eu vou lhe dizer uma coisa, Potter, para que você se ponha no seu lugar e desça desse estúpido “pedestal” que tanto você quanto seu querido pai sempre teimaram em subir: você não tem nada de especial. Nada, entendeu? O bruxo que está lá... – ele apontou para a redoma de luz, sem tirar os olhos de Harry; os dois pareciam querer se matar somente pelos olhos. – ...é o único bruxo que o Lorde das Trevas já temeu na vida! Se existe uma pessoa que pode vencê-lo, é Dumbledore! – então, ele riu novamente com desprezo. – Um bruxo patético como você nunca seria capaz de vencer o Lorde das Trevas! Tudo o que você teve, Potter, até este maldito momento, foi sorte, pura sorte!
Os olhos de Harry cintilavam. Ele deu um passo à frente, com a cabeça erguida, encarando Snape frente a frente, no mesmo patamar. Harry, com pouco menos de dezoito anos, já era alguns poucos centímetros mais alto que o professor:
- Se você fosse um pouco mais inteligente, Snape, perceberia que existem certas coisas que você simplesmente desconhece. --– ele disse pausadamente, frisando cada palavra com um quê de sarcasmo e ironia. – Mas não, você fica aí, todo “senhor de si”, achando que sabe de tudo a respeito de Dumbledore, de mim e de Voldemort... Acontece, Snape, que você não sabe, não sabe nem um terço de tudo o que há para saber. Se fosse ao menos um pouquinho perspicaz, teria se dado conta de que há muito mais naquela maldita profecia do que o pequeno trecho que você ouviu há muitos anos, no Cabeça de Javali...
Foi como se Snape tivesse acabado de levar um tapa no rosto.
- Você... sabia? – ele perguntou chocado, a voz rouca, seu rosto tornando-se ainda mais pálido que o habitual, seus olhos negros arregalando-se. – Desde... desde quando?
- Não faz muito tempo. – Harry disse com rancor. – Eu bem que gostaria de ter sabido desde sempre, mas não foi possível; Dumbledore até o fim insistiu em protegê-lo, escondendo isso de mim. Mas eu descobri sozinho, eu deduzi... não foi muito difícil encaixar as peças, na verdade. – ele prosseguiu, seus olhos verdes cada vez mais estreitos de raiva. Snape, por sua vez, parecia paralisado, quase hipnotizado ao fitar Harry. – Como Dumbledore poderia saber que alguém – um servo de Voldemort – tinha ouvido apenas parte da profecia – e Dumbledore sabia exatamente até que parte o servo tinha ouvido –, e contado isso ao seu mestre, se não fosse o próprio servo que revelasse isso a Dumbledore? – Harry fez uma breve pausa, a fim de que suas palavras surtissem o efeito desejado em Snape: choque. – E qual foi o único servo de Voldemort que se bandeou para o lado de Dumbledore?
Harry fez uma nova pausa, olhando interrogativa e ironicamente para Snape. As palavras dele pairaram no ar, quase palpáveis. O professor, por sua vez, parecia atônito, quase desconcertado, o que era extremamente incomum. Ele ensaiou dizer algumas palavras, mas Harry o cortou bruscamente:
- Parece que eu não sou tão idiota quanto você pensa, não, Professor Snape? – Harry prosseguiu, sua voz extremamente sarcástica agora. – Eu deduzi tudo isso, e quando pressionei Dumbledore, ele não teve como negar. Ele jurou para mim que não me esconderia mais nada depois que me revelou a profecia. Mas, mesmo assim, ele insistiu que você, Snape, tinha se arrependido do que fez... que não imaginava que Voldemort, depois de ouvir sua informação, não descansasse até verem mortos a mim e aos meus pais! – Harry bufou de raiva e frustração, seus olhos cintilando de mágoa. Quando voltou a falar, o tom de Harry foi-se elevando mais e mais. – Arrependimento, Snape? Pode engolir o seu maldito arrependimento, muito obrigado! O seu estúpido arrependimento não vai trazer meus pais de volta, nem todos os anos da minha vida que eu perdi!
Ele respirou fundo, tentando retomar o fôlego. Snape ouvia tudo surpreendentemente calado, como se absorvesse aquelas palavras. Ele parecia não saber o quê dizer, nem o quê fazer.
– Agora, Dumbledore pode ter acreditado no seu arrependimento... pode tê-lo perdoado. E você pode até estar do lado dele, Snape... Mas, quanto a mim, eu nunca o perdoarei. Nunca. Em parte, você foi sim culpado pela morte de Sirius, e ninguém vai me convencer do contrário! Mas, espere, tem mais, muito mais! Você foi talvez quase tão baixo quanto Rabicho; porque você também entregou a minha família a Voldemort. Foi porque você contou a profecia a ele, que agora meus pais estão mortos. E é por isso, Snape, que agora eu tenho que lutar contra Voldemort. Porque quando você contou aquela maldita profecia a ele, e ele por sua vez tentou me matar, ela se tornou real. E agora ela tem que ser cumprida. E, segundo ela – e essa parte, Snape, você não sabe –, somente eu posso cumpri-la. Dumbledore não pode vencer Voldemort; ele está se matando, é isso que está fazendo! Ele está fazendo isso por mim, para me poupar do meu destino... – Harry finalizou, sua voz agora reduzida a um sussurro quase inaudível. – Porque somente eu posso matar Voldemort. E ser um assassino, Snape, não é motivo de orgulho para ninguém, muito menos para mim.
As últimas palavras de Harry foram pontuadas pelo grito arrepiante de uma maldição e, em seguida, por um silêncio monstruoso e aterrador. Todos se viraram para assistir, pasmos com o que viam.
Aquilo não estava acontecendo... Não podia estar acontecendo...
Neville sentiu o calor de Luna diminuir gradualmente à medida que o corpo dela se afastava, e então ele percebeu que ela estava se separando do abraço. Houve um ruído do atrito entre as roupas dos dois rompendo o silêncio, até que ele se viu novamente de frente à garota. Luna sorria para ele, seus olhos azuis protuberantes com um brilho incomum, que faziam Neville se sentir inexplicavelmente fortalecido. Talvez fosse por causa do abraço dela. Ou talvez pela confiança que Luna depositava nele. Era algo diferente, quase estranho, sentir que alguém confiava tão imensamente nele; Neville nunca tinha sentido isso, não que se lembrasse. Mas agora sentia, e era como se isso o enchesse de força e esperança.
- Vamos? – Luna perguntou, com um meneio de cabeça.
Como Neville assentisse, Luna se desvencilhou dele e levou a mão até a maçaneta que o rapaz iria tocar antes da pergunta dela. A mão pequena e magra dela envolveu-a.
Mas ela não girou.
Uma expressão de incompreensão se formou no rosto claro de Luna. Ela forçou novamente a maçaneta, empurrando a porta com a outra mão livre, mordendo os lábios, mas a porta ainda assim não cedeu.
- O que foi?
Houve um breve espaço de tempo antes que Luna respondesse.
- Está trancada! – ela exclamou, intrigada, virando seu rosto para fitar Neville, os cabelos louros bagunçados caindo sobre seus olhos azuis. – Como pode ser...?
- Trancada? – Neville repetiu, precipitando-se sobre Luna, que se afastou para lhe abrir espaço. – Deixe-me tentar...
- Da outra vez que viemos aqui... – Luna disse vagamente, às costas de Neville. – ...essa porta também estava trancada, lembra-se? Harry tentou abri-la com uma espécie de canivete, eu acho...
Neville se lembrava. Porém, não compreendia como aquela sala ainda poderia estar trancada, se fazia pelo menos dois anos desde aquele episódio em que eles tinham visitado o Departamento de Mistérios pela primeira vez. Não fazia sentido... o que aquela sala poderia esconder de tão importante?
Ele decidiu tentar abri-la. Seus dedos estavam a centímetros da maçaneta...
- AVADA KEDRAVA!
Esse foi o grito que Hermione e Gina ouviram assim que a primeira abriu mais uma porta. E a voz que exclamara a maldição era gelada, desprovida de humanidade... Havia, sim, naquela voz, uma fria crueldade implacável.
Hermione percebeu logo de cara que estavam na Sala da Morte; ela nunca poderia esquecer a sensação que aquele lugar lhe proporcionava: um terror inexplicável, um sentimento de completo pavor diante do desconhecido, a perturbação por não entender o que significava o fim de tudo. Era assim que ela se sentia em relação à morte. E aquela sala a fizera se sentir dessa maneira desde a primeira vez que a penetrara.
- Meu Deus! – Gina sufocou um grito assim que seus olhos se chocaram contra o que acontecia no centro da grande sala. Hermione sentia-se da mesma maneira: paralisada.
Um raio de luz verde brilhante saiu da varinha do dono daquela voz gélida. E Hermione o reconheceu, mesmo que nunca o tivesse visto pessoalmente. Mas Lord Voldemort era exatamente como Harry o descrevia. Não. Era muito, muito pior, mil vezes mais horrendo. Era repulsivo. Simplesmente olhá-lo era asqueroso.
Voldemort, ao que parecia, estava duelando com Dumbledore. E o que Hermione viu a seguir foi mais chocante do que ver o próprio Lorde das Trevas.
Aquele raio de luz verde, a Maldição Imperdoável da Morte, atingiu o diretor de Hogwarts em cheio. Hermione não conseguia acreditar no que seus olhos enxergavam. Era irreal. Não, não poderia estar acontecendo! Mas, como em um filme em câmera lenta, ela acompanhou os olhos de Dumbledore se arregalarem em surpresa quando atingido pelo feitiço; então, o azul cintilante deles se tornou subitamente vazio, como se a vida tivesse sido sugada deles, num único sopro brutal. O corpo do bruxo descreveu um belo arco para trás e, lentamente, ele tombou ao chão.
Um silêncio monstruoso e aterrador caiu sobre a sala.
E esse mesmo silêncio foi rompido por um grito de agonia. E Hermione reconheceu aquela voz inconfundível para ela. Era Harry.
- NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO! PROFESSOOOOOOOOOOOORRRR!
Ela e Gina, assim como todos os inúmeros presentes na sala, acompanharam-no correr desesperadamente até o corpo inerte de seu mestre, enquanto o que parecia ser uma redoma de luz, que envolvia Dumbledore e Voldemort antes do feitiço final, se desfazia em cintilantes flocos dourados, que caíam lenta e suavemente ao redor de Harry à medida que ele corria. A boca sem lábios de Voldemort se abriu no esgar de um sorriso ao observar com um mórbido prazer a angústia de Harry.
Os joelhos dele produziram um ruído seco ao se chocarem contra o chão quando Harry se ajoelhou ao lado do corpo de Dumbledore. O garoto levou a mão direita à nuca do bruxo, suspendendo suavemente sua cabeça alva devido aos cabelos cor de neve, até que estivesse ao nível das pernas de Harry, onde repousou, em seu colo, o agora antigo diretor de Hogwarts. Quase se podia tocar o silêncio com os dedos. Hermione não conseguia enxergar os olhos de Harry, cobertos por sua franja de cabelos negros, mas ela sabia que, naquele momento, seu amigo deveria estar se sentindo destruído.
Harry estendeu seus dedos da mão esquerda, sujos e manchados de sangue, e, com brandura, ligeiramente trêmulo, fechou os olhos azuis e enrugados – agora sem vida – de Alvo Dumbledore. Ele voltou a deitar sua cabeça lentamente no chão de pedra, com extremo cuidado e suavidade, acariciando, por fim, seus cabelos de algodão com ternura. A face do velho diretor de Hogwarts demonstrava serenidade.
- Por que o senhor fez isso...? – Harry sussurrava tão baixinho, que era difícil compreender. Ele fitava o semblante sereno do diretor com tristeza. – Por quê? O senhor sabia... sabia que não devia... que não adiantava...
Uma gargalhada cruel e gelada o interrompeu.
- Tocante... – Voldemort disse em tom de deboche, batendo palmas com suas mãos pálidas como a morte. O eco solitário delas ressoava sinistramente pela sala. – Estou sinceramente emocionado, Harry...
Harry se levantou. Sua face não revelava aquele desespero de antes. O verde de seus olhos era vazio, sem emoção alguma, como se tivessem acabado de arrancar o pouco de vida que restava nele.
Ele não olhou para Voldemort. Ele tampouco olhou para lugar algum. Parecia ver dentro de si mesmo, e ninguém ali representava a mínima importância.
- Você não precisava ter feito isso... – ele murmurou, ainda sem olhar para lugar ou pessoa alguma, e sua voz soava tão baixo, que era difícil escutá-la. – Não precisava, Voldemort, não precisava...
Voldemort parecia divertidamente intrigado.
- Não precisava, Harry? – ele repetiu com sarcasmo, quase rindo. – Oh, então o pequeno Harry está triste e zangado porque o Lorde das Trevas matou o seu querido e amado “professor-velho-e-caduco”?
- VOCÊ NÃO PRECISAVA TER FEITO ISSO! – Harry gritou com fúria, voltando seus olhos faiscantes de ódio para Voldemort, seu semblante retorcido de indignação. A voz dele soava dura, grossa, rascante. – VOCÊ É UM FILHO DA PUTA SUJO, VOLDEMORT!
Voldemort estreitou os olhos, seu sorriso se alargando. No entanto, ele não respondeu. Harry meneou a cabeça de um lado para outro, fechando os olhos por um segundo, mordendo os lábios com tamanha raiva, que eles estavam a ponto de romper.
- Você sabia, não sabia? – ele perguntou depois de um breve instante, novamente fitando Voldemort com uma cólera gigantesca. – Você sabia que ele não podia derrotá-lo, não é?
Houve uma longa pausa, na qual os dois se encararam profundamente, como se conversassem apenas pelo olhar, então a voz gelada de Voldemort voltou a soar:
- Eu desconfiava... mas não tinha certeza. – ele admitiu, torcendo o nariz ao fazê-lo. – Eu sabia que a profecia dizia algo mais, mas não pude comprová-lo, já que você se deu ao trabalho de destruí-la. No entanto, eu sempre desconfiei, cada vez mais, que de todas as pessoas... de todos os meus inimigos... tinha que ser você, Harry... você que... você...
Harry não respondeu. Ele apenas levou a mão aos cabelos, bagunçando-os ainda mais por um instante, num gesto de nervosismo e impaciência, seus olhos fugidios, sem fitar coisa alguma ao certo. Ele mordia o lábio inferior novamente, bufando. Então, fechando os olhos por um segundo, ele levou os dedos até a cicatriz, massageando-a de leve. E após um longo suspiro, ele reabriu os olhos, e eles estavam, agora, opacos, vazios e cheios de uma apática melancolia.
- Eu só queria saber... o por quê...
Voldemort riu, aquela sua risada fria e sem alegria.
- Por que eu te escolhi?
- Não. – respondeu Harry, surpreendendo a todos e, até mesmo, Voldemort, ao que parecia. – Eu quero saber por que você começou tudo isso, Tom.
A face de Voldemort endureceu ao ouvir seu primeiro nome. Ele fitou Harry com os olhos fulminantes de raiva.
- Não me chame desse jeito. – Voldemort sussurrou entredentes. – Você não tem o direito de me chamar assim...
- E por que não? – Harry retrucou atrevido, voltando a encarar os olhos vermelhos do bruxo à sua frente de igual para igual. – Você me chama de Harry, por que não chamá-lo Tom? Afinal, é o seu nome, Tom.
Voldemort ergueu apenas alguns centímetros sua varinha; Harry fez o mesmo e, por um minuto tenso, os dois apenas se encararam, novamente parecendo discutir pelos olhos. Porém, nenhum dos dois conjurou feitiço algum.
- Por que você começou tudo isso? – Harry repetiu, sua voz desconsolada, desviando mais uma vez seus olhos, fitando um ponto vago, como se estivesse imerso em seu próprio abismo dentro de si. – Por quê?
- Por quê? – o bruxo repetiu a pergunta, confuso, fitando Harry como se não o compreendesse. – Ora, Harry, não é óbvio? Eu tenho todo o poder que sempre sonhei! Eu tive a oportunidade de me vingar dos meus inimigos e de todas as pessoas que se colocaram no meu caminho, as pessoas tremem à simples menção do meu nome, eu posso fazer tudo que desejo...
- E...?
- Você precisaria de mais, Harry? – ele perguntou ironicamente. – Você parece mais ambicioso que eu, então. Não há nada maior que poder. Você deveria estar na Sonserina e não naquela reunião de babacas que chama de “casa”.
- Você está enganado. – Harry retrucou ainda com aquela mesma apatia de antes, sem olhar para lugar algum. – Eu não sou como você. Eu tenho... – ele estreitou os olhos, como se aquilo lhe causasse extrema dor. – ...algo que você não tem.
Voldemort riu novamente.
- Algo que eu não tenho? – ele fez uma breve pausa. – Eu tenho tudo, Harry! Será que você não reconhece um bruxo poderoso quando o vê? Seu querido mestre Dumbledore não o ensinou isso?
Nova pausa. Harry ergueu a cabeça para o teto alto da sala, seus olhos distantes. Era quase como se ele esperasse que algo fosse acontecer...
- E o que você ganhou com isso? – havia um quê de zombaria na voz de Harry. – Com todo esse... poder?
- Tudo que eu sempre quis... – Voldemort prosseguiu, parecendo não compreender aonde Harry queria chegar, assim como todos ali presentes. – Todos me respeitam, temem apenas o meu nome... Você sabe o que é isso, não? Todos sabem o seu nome, Harry Potter.
- Isso é uma desgraça...
- É uma bênção! O que eu mais poderia quere -
- Você viveu? – Harry abaixou os olhos finalmente, voltando a encará-lo. – Hein, Voldemort? Não, não esse nome... você viveu, Tom?
Voldemort não respondeu, mas sua expressão não era mais de divertimento.
Harry sorriu.
- Eu também não. – seus olhos não desviavam dos de Voldemort. – “Um não poderá viver enquanto o outro sobreviver.” Estava certa... nenhum de nós jamais viveu... nós sempre sobrevivemos.
Voldemort continuou em silêncio. A voz de Harry ecoava sombriamente.
Ele largou sua varinha.
O ruído seco dela chocando-se contra o chão reboava nas paredes.
Voldemort arregalou seus olhos.
- O que diabos você está fazendo?
- Largue a sua varinha também, Voldemort. – Harry disse calmamente. – Não irá precisar dela.
Voldemort riu. De nervoso.
- Seu tolo! Finalmente se entregará à morte? – e riu novamente. – Eu gostaria de duelar com você, Harry, mas...
- Você sabe que não podemos duelar. Nossas varinhas não se entendem. – Harry abriu os braços. – Mate-me, Voldemort. Não é o que você sempre desejou? Faça!
Voldemort apontou a varinha, com um sorriso vitorioso.
E com a varinha apontada permaneceu muito tempo.
Até seu sorriso se desfazer.
Harry riu.
- Você não vai me matar?
Um breve silêncio. Voldemort parecia medir suas palavras.
- Não tem graça... Eu pensei que tivesse fibra, Harry, não que fosse um covarde.
- Mentira! – Harry retrucou duramente. – Você está com medo.
Fúria passou pelos olhos de cobra de Voldemort.
- Medo de um pirralho como você?
- Medo porque eu estou indefeso... como quando era apenas um bebê, quase dezessete anos atrás...
Voldemort respirou fundo, tenso.
- Você está com medo... – Harry prosseguiu. - ...que a maldição se reverta novamente, não é?
Voldemort gritou.
- AVADA KED
Um vento, surgido de um lugar que ninguém saberia dizer, começou a agitar as capas e os cabelos de todos, sussurrando, como se chamasse alguém.
Voldemort arregalou os olhos. Sem nenhuma explicação, a varinha dele saiu voando de sua mão...
- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?
- Nada. – Harry disse tranqüilamente, como se soubesse que a hora tinha chegado.
Clique.
A maçaneta girou. Facilmente. Suavemente.
Neville empurrou a porta. Ele não conseguiu ver nada lá dentro; era tudo tão brilhante que seus olhos, acostumados à escuridão da outra sala em que se encontrava, estavam ofuscados.
Luna estava bem atrás dele, quase prendendo a respiração.
E então, um vento forte os atingiu, não sabiam se vinha da sala ou não, mas ele sussurrava muito baixinho, como se chamasse alguém.
- O que está acontecendo? – era a voz de Luna, assustada.
Neville não conseguia falar. Era como se alguma mão pesada apertasse seu coração e sufocasse sua garganta. Os olhos dele se arregalaram. Era aterrorizante. Parecia que todos os seus sentidos estavam paralisados, e que seu sangue tinha momentaneamente parado de correr nas veias. Por um momento, ele achou que estivesse surdo.
Então, sentiu seus pés levantando...
Luna gritou e um barulho seco foi ouvido. Neville olhou para trás e viu que ela tinha sido arremessada na parede oposta, mas não estava desacordada. Ela arregalou ainda mais seus olhos já arregalados.
- Neville... – murmurou, surpresa.
Ele não soube dizer o que aconteceu, não viu mais nada, não sentiu mais nada. Tinha perdido a noção do tempo, do espaço e da realidade. Só soube que o vento o envolveu e ele entrou na sala...
- O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO SEU IDIOTA?
Harry não se deu ao trabalho de responder.
Todos assistiam, chocados, àquele espetáculo assustador. Harry e Voldemort tinham sido elevados do chão, por aquilo que parecia um furacão, que afastava todos ao redor.
- HARRY! – Gina gritou, correndo, desesperada. Ela sentiu o pânico invadi-la, correndo seus sentidos. Era como se aquela sua parte estivesse sendo arrancada. Ela tinha que impedir, tinha que fazer alguma coisa, qualquer coisa...
Entretanto, algo grande a deteve. Braços fortes a envolveram, impedindo-a de prosseguir.
Era Hagrid.
Ele tinha os olhos cheios de grossas lágrimas peroladas. Seu corpo por inteiro tremia intensamente, tomado por um indescritível sofrimento. Aquele gigante parecia ter desmoronado, chorando feito uma criança.
- Não, menina... Não...
Estranhamente, ele parecia saber o que dizia, apesar da tristeza no olhar. McGonagall abaixou os olhos e soluçou. Lupin não tirava os olhos do rodamoinho, perdido. Hermione terminou de descer os degraus, e sentia seu coração sufocado; ela olhou para seu lado e viu que Rony chorava silenciosamente, observando Harry no alto.
E os dois, Harry e Voldemort, sumiram envoltos naquele rodamoinho de cores. Quando ele serenou, finalmente, todos puderam apreciar, apenas, a imagem das duas varinhas, quase idênticas, cruzadas no centro do lugar.
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