Taça, espada e semente
A passagem era estreita, apenas uma fenda na pedra, escondida por uma profusão de hera e arbustos. Mas Zibby não teve dificuldade em encontrar. Sonhara com a abertura e o caminho até ela na noite horrível que antecedera, e que lhe deixara os olhos inchados e o coração pesado e vazio, pela perda que acreditava, naquele momento, irreparável. Haviam cavalgado toda a manhã sem interrupções ou qualquer acontecimento inesperado. Pareceu-lhe durante o caminho que havia mais silêncio do que o usual. Na primeira parte da viagem foram acompanhados por viajantes ocasionais, puderam ver ao longe trabalhadores nos campos e pássaros cantavam nas árvores. Agora, talvez por que seu espírito estivesse atormentado ou por outro motivo que não identificava, não percebera ninguém nem ouvira som algum; a não ser pelo farfalhar das copas das árvores, os bosques que rodeavam o lago estavam imersos em quietude. Richard também notara o silêncio mas não dissera palavra sobre isso a Zibby.
Desmontaram dos cavalos e Richard os amarrou a um tronco próximo. A moça afastou a vegetação e ficou durante algum tempo diante da fenda escura, parecendo meditar. Voltou-se lentamente e encarou Richard.
– Está seguro de que quer fazer isso?
Richard estendeu o braço indicando a passagem com a mão.
– A não ser que prefira que eu entre primeiro.
Zibby sorriu e virou-se. Retirou a varinha de sob as vestes e, suspirando fundo, adentrou a rocha.
Teve dificuldade em entender para onde estava indo. Já chegara? Havia uma viagem, um destino mas não conseguia se lembrar. Imagens surgiam e dasapareciam na sua frente, ou talvez fosse na sua cabeça, e logo que dava um passo adiante recomeçava a questionar seu propósito. Sentia-se leve e feliz e isso a intranquilizou profundamente. Queria querer mas mal sentia necessidade de respirar. Onde estava? E quem era ela? E aquela figura que estava ao seu lado, envolvido em lírios, com os pés enredados em hera, cujas mãos tinham aquela cor terrosa de árvore velha, cheia de musgo e líquens? Seria parte do sonho? Zibby olhou para seus pés e pernas, verdes com as trepadeiras que se enroscavam e estendeu as mãos para olhá-las. A mesma cor e líquens cinzentos cresciam na superfície de sua pele. Zibby voltou o rosto novamente para a figura ao seu lado, uma estátua acinzentada, e estremeceu quando piscou. O horror percorreu todo seu corpo, fazendo as plantas murcharem instantaneamente. Sentiu-se pesada e amortecida enquanto estendia a varinha na direção do homem -pois agora sabia ser uma criatura viva aquela miragem que tinha ali - e, num esforço de memória, como se puxasse um corpo muito pesado do fundo de um poço, sussurrou as palavras. As plantas que camuflavam o homem começaram a murchar e ele piscou novamente e tossiu. Zibby tocou-lhe o braço e o movimento pareceu levar muitos dias, mas assim que seus dedos apertaram-lhe a carne, ele olhou para ela e a cor voltou ao seu rosto. Tinha olhos profundos e sofridos, como se tivessem visto toda a dor do mundo, e Zibby teve certeza de que se ele não a amasse da forma como ela o amava, não teriam tido forças para romper o encantamento da terra das fadas. Foi a falta um do outro, a ausência que seria eterna do toque e das palavras sussuradas, da possibilidade do encontro que impedira o esquecimento de vencê-los e encobrí-los. Zibby juntou suas forças e gritou, lentamente, como se sua voz irrompesse através da água: "Corra!" Arrancando os caules que o seguravam e agarrando com força o braço da moça ele começou a correr, tropeçando e erguendo-se, lutando para vencer o oceano de lassidão e desalento que inundava ao redor. Quanto mais avançava mais fácil ficava desenredar-se e logo estavam correndo entre as árvores velhíssimas que formavam muralhas ao enroscarem seus galhos, e arrastavam-se sob as sebes do tamanho de montes, e contornavam as flores, enormes e multicoloridas, que pareciam emanar uma melodia sonolenta. Então, repentinamente, cairam na água escura. Richard bateu os braços vigorosamente para se manter na superfície da água gelada e remexeu a sua volta em busca de Zibby. Buscou-a logo abaixo das borbulhas a sua frente e a puxou para junto de si. Ela envolveu seu pescoço com os braços e ele começou a levá-los para a margem.
– Obrigada – tossiu Zibby, água e gratidão –, salvou minha vida.
– Você salvou a minha. – discordou Richard, tremendo de frio. – Começava a sentir-me um velho carvalho com desejo de produzir bolotas.
Zibby riu de alívio mas seus olhos mostravam que acreditara na mesma coisa.
– Estivemos muito perto disso, creio eu. – disse olhando para Richard com ternura. – Tivemos muita sorte. Muitos jamais romperam o encantamento e tornaram-se parte da floresta.
– Imagino que sim. Não é um destino que desejaria aos meus inimigos.
Zibby revolveu as roupas com os braços e procurou a varinha.
– Devemos procurar um abrigo, fazer uma fogueira e nos secar antes de prosseguirmos, penso eu.– decidiu Richard.
– Não será necessário.– disse Zibby, erguendo a varinha e secando as roupas de Richard com uma luz morna e alaranjada que saiu da ponta da varinha.
Richard tocou-se e, sentindo-se seco e aquecido, riu-se: – Porque já não me surpreendo?
Zibby secou-se logo após e guardou a varinha nas saias.
– Devemos procurar a Senhora do Lago, se ela ainda estiver aqui. Isto é, isso se tivermos mesmo chegado à Terra do Verão.
Tomaram o caminho de seixos que subia serpenteante pelo monte, dirigindo-se ao pomar cujas copas carregadas de frutas viam logo acima. Havia uma luz vinda daquele lado e assim que chegaram ao topo avistaram uma fogueira diante de uma cabana de pedras com telhado de sapê, onde uma mulher estava sentada diante do fogo. Imóvel, trajava um manto negro longo que lhe chegava aos pés e esparramava-se à sua volta. Um crescente azul brilhava em sua testa e ela mantinha as mãos no colo, parecendo muito tranquila.
– Bem-vinda, Filha da Terra das Fadas.– Nós a esperávamos. – disse, com voz rouca, quando Zibby e Richard se aproximaram. – Sentem-se, comandou, indicando bancos baixos que estavam dispostos ao redor do fogo.
– Temo que tenham esperado muito tempo por nós.– disse Zibby, assim que recuperou o controle da voz.
– Sim... e não. O tempo não age da mesma forma nos mundos que nos rodeiam, você deve saber. Mas temi que já não houvesse passagem para cá. – A mulher baixou os olhos antes de prosseguir. – A Senhora se foi há muitos anos e, no entanto, parece que foi ontem. Já não temos certeza se o dia se passa em horas ou meses e não recebemos nenhum visitante desde que o vínculo foi rompido. Estamos curiosas: vocês terias visto a Senhora na terra das fadas, de onde vêm?
– Não, não vimos ninguém – respondeu Zibby.
A mulher suspirou ao ouvir o que achou seria a resposta, embora nutrisse alguma esperança de que a realidade não se confirmasse.
– Sei. – continuou a mulher. – Estamos felizes que tenha conseguido vencer a terra das fadas, jovem Hepzibah, e tenha ultrapassado as barreiras do tempo com sucesso. Estamos felizes também pelo jovem Fortescue que nos veio fazer este grande favor. Embora seja uma honra guardar as relíquias da deusa este é também um terrível fardo. Sabemos disso. Mas agora que a Senhora se foi e a terra do verão está a apenas um fio de separar-se do mundo definitivamente, não podemos permitir que as relíquias desapareçam. Se elas seguirem conosco para o esquecimento, a magia desaparecerá da terra. Se elas caírem em mãos erradas também isso acontecerá. Elas precisam existir refletidas no mundo dos homens e na terra da deusa para que o equilíbrio seja mantido. Vocês foram incumbidos de guardar duas das relíquias no mundo dos homens e o reflexo de outras duas que permanecerão aqui. Isso garantirá que nossos mundos continuem a existir embora estejam separados para sempre. Apenas esses reflexos farão a ligação muito remota entre as terras perdidas, serão como uma recordação tênue, nada mais. Ainda assim, inestimável. Vocês estão dispostos a guardar com a vida, suas próprias e de quem for necessário, esses tesouros?
Zibby baixou os olhos e queria dizer que não. Sua vida ela a daria pelo bem dos bruxos mas as vidas de outros... ela não estava segura de que seria capaz de condenar a morte qualquer criatura viva, fosse pela manutenção da magia fosse por qualquer outro motivo. Ia falar essas coisas à sacerdotisa quando Richard interveio.
– Sim, nós o faremos.
Zibby ergueu o rosto para ele, espantada com sua segurança e decepcionada que ele não mostrasse dúvidas em tirar as vidas de possíveis usurpadores. Observou, então, que seu rosto estava tenso e seus olhos pareciam opacos e entendeu que não era a dúvida que ele rejeitava mas o fracasso de sua tarefa. Era um soldado afinal de contas, e Zibby entendeu que, enquanto ela ofereceria a própria existência, ele sacrificaria muito mais do que isso. Sua alma imortal era a oferenda. Um soldado cristão era uma contradição em termos, pensou Zibby, e admirou ainda mais aquele jovem guerreiro destinado a feitos tão grandes e dores tão profundas. Cuidaria dele para que não sofresse mais do que o estritamente inevitável, jurou ela, diante da velha sacerdotisa louca, que ainda falava em "nós" quando não restara mais ninguém.
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