Lança, prato e serpente
Richard e Zibby chegavam à beira do lago quando sentiram o intenso tremor. O guerreiro apressou-se em segurar as rédeas do baio que carregava Zibby para que não a lançasse ao chão, enquanto tentava acalmar sua própria montaria. Desmontaram rapidamente e correram até a água tentando ver o que poderia ter provocado tamanha perturbação. Nada de extraordinário havia lá. O ar sobre o lago, que agora acalmava suas águas, mostrava-se límpido e claro, deixando ver ao longe o monte e a igreja com seu campanário. Podiam divisar alguns vultos que saiam apressadamente ao pátio defronte o monastério provavelmente em busca de uma origem para o abalo. Richard estava alerta e olhava para os lados, Zibby estava aterrorizada. Mantinha as mãos sobre a boca como a conter um grito e seus olhos estavam arregalados. Richard aproximou-se dela e a envolveu-a com o braço para acalmá-la.
– Chegamos tarde demais - disse ela, num sussurro entrecortado. – Tarde demais, ela se foi.
– Quem se foi? – quis saber Richard.
– Lundy, a Terra do Verão.
Zibby deixou-se cair na relva e chorou copiosamente. Os esforços haviam sido em vão. A Terra do Verão não mais existia. A igreja ainda estava lá, seu campanário ereto, o sino que reverberava suavemente com a sacudida que recebera, seus monges atônitos e nada mais. Ergueu a mão numa tentativa tímida de restaurar a antiga entrada para Lundy, mas nada aconteceu. Deitou-se na grama alta e se deixou ficar, sem pensamentos ou desejos, até que a noite desceu sobre Glastonbury.
Richard armou a tenda de campanha que trazia consigo e convenceu Zibby a levantar de onde estava e proteger-se do sereno noturno. Não entendia o que estava acontecendo mas podia perceber que era muito grave e que sua missão havia fracassado. Amarrou os cavalos num pasto próximo, ascendeu uma fogueira e aqueceu uma mínima parcela da assombrosa quantidade de comida que Helga havia preparado para a viagem. Seria mais que suficiente para que os dois recuperassem suas forças.
Zibby recusou o alimento mas Richard não desistiu até que ela bebesse um pouco de caldo e comesse um pedaço de pão. Depois deixou que dormisse, enquanto montava guarda e pensava sobre tão estranhos acontecimentos.
Observou a moça que dormia, placidamente e parecendo jovem demais para ter arcado com tamanha responsabilidade. Richard vira muitos jovens lutando, alguns pouco mais que meninos, empunhando espadas que não conseguiam erguer, pedaços de pau com que pretendiam expulsar os inimigos de suas terras e salvar suas famílias. Cada vez que viu um deles tombar no campo de batalha sobrevinha aquela sensação de inutilidade, uma onda de desgosto pelo mundo, pelos homens, pela guerra incessante. Lamentava aquelas crianças como lamentava por esta. Não pareceu importante que a moça afirmasse um poder mágico incomum, suprahumano. Naquele momento era outra criança abatida pela crueldade e pela ambição.
Lorde Le Fort caminhava à beira do lago quando Zibby acordou. Era ainda cedo mas o sol já despontava pela ilha, surgindo atrás do monastério. Caminhou até onde se encontrava o soldado enquanto arrumava as roupas. Ao chegar no lago, Le Fort virou seu rosto e a encarou.
– Dormiu bem? - perguntou ele, solícito.
– Bem, obrigada - aquieceu ela. - Veja, conheço um outro caminho.
– Um caminho? Para onde?
– Conheço uma passagem para a Terra do Verão. Fica não muito longe, podemos estar lá no princípio da tarde.
Richard coçou o queixo, enquanto a observava, detendo-se nas linhas suaves de seu rosto e reconhecendo nelas a determinação de não dar o assunto por encerrado.
– Você acredita que ainda pode fazer alguma coisa?
– Não sei. - Zibby suspirou profundamente antes de continuar. – Mas preciso me assegurar que tentei todo o possível, mesmo que improvável. Zibby deu alguns passos enquanto olhava o monastério, perfeitamente visível na distância. – Esta será uma alternativa perigosa – começou, cautelosa. – Esse lugar não pertence a este mundo e passar por ali encerra perigos imensos.
– Como o quê? – perguntou Richard, sem demonstrar grande interesse na resposta, escolhendo observar-lhe os traços, o rubor nas faces, a curva da testa de onde caiam os cabelos escuros.
– Como não ser capaz de se libertar do estado de sonho que passa a envolvê-lo, de não encontrar a saída e permanecer lá para sempre, de não conhecer a morte mas tampouco recuperar a vida.
Richard achou que conhecia um lugar assim, meio sonho, parte pesadelo, do qual pode-se nunca retornar. Conhecia-o bem demais até. Cavalgava para ele a cada soar de trombeta, sob o clangor de tambores e desfraldar de bandeiras. Mas nada disso disse a Zibby, limitando-se a concordar com a cabeça.
– Vamos, disse ele, se você quer correr o risco.
Zibby concordou com o olhar. Não se sentia mais disposta para palavras. Precisava concentrar-se para vencer, ou tentar suplantar, a atração irresistível da terra das fadas. Seriam seus conhecimentos das artes das trevas suficientes para evitar o desastre? – ponderou, sentindo-se desarmada e inútil.
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