capítulo um



capítulo um

03 de janeiro de 1965

Uma criança corria de um lado para o outro da sala, um sorriso firmado sobre os lábios, os olhos escuros brilhando, comemorativos, à sua felicidade. Risos divertidos, soltos sem razão nenhuma, obtusos à pretensão de motivos. Rias porque ria, na sua graça infantil, simples e pura. Ria porque estava vivo, porque não estava só, porque a vida era nova, curiosa e bela aos seus olhos. Demorei a perceber que a criança era eu...

Parei então, a euforia a abandonar-me. Observei Tobias sentado ao sofá, apenas por observar, notando como ele apertava os botões do controle remoto assim que a imagem se punha em frente aos seus olhos na tela da televisão, desinteressado. Sorrateiro como um elefante, pulei para cima do sofá e aconcheguei-me à lateral do seu corpo, agarrando sua camisa com uma das mãos. Senti-o contornar-me com um dos seus braços e acariciar-me os cabelos, sem desviar os olhos do aparelho. Naquela época, Tobias era meu pai. Depois, foi só Tobias.

Ouvi um barulho vindo de trás do sofá, mas não dei atenção. Tobias esquecera o canal num desenho qualquer, em que o mocinho tinha de salvar a mocinha em apuros. Eu achei bastante bobo. Por que elas nunca conseguiam se salvar sozinhas? Tobias devia tê-lo achado também porque levantou-se de um salto e contornou o sofá, rumando lá para trás. E então, eu o vi: o controle. Tobias nunca me deixara usá-lo, alegando que eu era demasiado jovem para lidar com a grandiosa tarefa de escolher o canal. É claro que toda vez que ele não estava olhando, eu o socava. Socava o controle remoto. Por quê? Bem, sempre achara muito interessante esbarrar em números aleatórios e ver aonde daria. Surpreendia-me quase todas as vezes que caía em um canal diferente. Coisa de criança. Passado um tempo, porém, o jogo torna-se ligeiramente tedioso. Além de consumir muito dos meus esforços para tão poucos canais que tínhamos. Então, resolvi ver onde Tobias fora e espiei por cima do sofá. Lá estava ele, junto de mamãe. Essa segurava uma carta em mãos e Tobias a envolvia num abraço, afagando-lhe os longos cabelos castanhos e murmurando palavras ao seu ouvido.

Ela soluçava.

Intrigou-me ver mamãe daquela forma. Eu nunca a vira tão frágil. É claro que já havia visto lágrimas rolarem pelos seus olhos, mas eram sempre acompanhadas de suaves risos e brandos olhares. Daquela maneira ela parecia... Atormentada.

De um salto, pulei para o chão e corri até os dois. Não podia conter-me: mamãe chorava! Ao me verem, se separaram, mirando a pequena figura a sua frente. Tobias e seus olhos azuis eram pouquíssimos, mas em mamãe pude ver algo que me marcaria para sempre: medo. Seus olhos escuros e manchados já não mostravam-me mais a mulher forte que fora, mas uma vulnerável. Era como se fosse outra.

“Mamãe?”, eu comecei, confuso. De fato, não sabia o que era aquilo, e não teria como saber mesmo. Eu era uma criança. Mas mesmo não entendendo, aquilo me envolvia. Era como se algo se interpusesse entre nós, frio e forte, como a neve que caía lá fora. Ela levou as duas mãos aos cabelos ondulados, os olhos negros deslizando de um lado para o outro do lugar, como se buscasse uma porta, uma saída qualquer, para onde pudesse fugir ou se esconder. Dei um passo adiante. Queria que ela quebrasse o frio, que me tomasse em seus braços e dissesse que chorava porque se machucara enquanto fazia a limpeza ou qualquer coisa assim. No entanto...

“Afaste-se!” A sua voz suave tomou um tom agudo e imperativo e eu estanquei no lugar. Parecia que ela tinha medo de mim, mas era eu quem estava ficando com medo dela. “Afaste-se... Afas-te-se...” Balbuciava. Tobias tentou tocá-la num dos braços, mas ela puxou o corpo para longe dele e, virando um rosto ainda molhado e inchado, as expressões feridas, deu-nos as costas e saiu pela porta do quintal. Seus passos ecoaram dentro de minha mente por algum tempo, mesmo depois dela ter fechado estrondosamente a maldita porta. Vez em quando, ainda os ouço, se afastando.

Virei-me para Tobias. Lembro-me que naquela hora, os olhos marejados eram os meus.

“Papai, desculpa...” Solucei. Acho que foi a última vez que o fiz. “Eu só tava brincando, e-eu não queria deixar a mamãe brava.”

Tobias ajoelhou-se até mim. Foi a sua última vez como pai.

“Não seja bobo, Severus, você não fez nada.” Ele me ergueu em seus braços e subiu as escadas comigo, até o fim do corredor do segundo andar, onde ficava o meu quarto. Entrou e sentou-se à cama, deitando-me sobre a mesma. “A mamãe está triste...”, ele dizia enquanto tirava-me os sapatos e cobria-me, “Então nós teremos que fazê-la sorrir.”

“Como?” Eu queria vê-la feliz, eu queria vê-la sorrindo, porque ela me fazia sorrir.

“Nós vamos cuidar melhor dela.” Murmurou e acariciou meus cabelos. Eu era muito parecido com ele. Não acho que ainda seja. “Promete?”

“Sim!”, respondi com convicção. “E você pode fazer aquela viagem que mamãe queria no verão, não é, papai?”

Tobias riu, mas não disse nada. Seus olhos, entretanto, não o acompanharam e, por um instante, pude ver em seus olhos uma grande tristeza, mas então sumiu de repente. Presumi que fosse o momento. Ele levantou-se e andou até a porta.

“Durma bem, Severus.” Apagou as luzes. Sorriu e desapareceu no corredor, deixando em seu lugar um filete de luz riscar a escuridão do meu quarto. Entretanto, ouvi-o descer as escadas. Descobri-me e me arrastei até a janela, desajeitadamente. Lá fora estava mamãe, a sua figura recortando o mar de neve, branca e pura. Então, Tobias juntou-se a ela, abraçando os seus ombros. Trocaram algumas palavras, que não pude ouvir, mas se pudesse, duvido que teria entendido. Supus que pela calma de meus pais, a situação em que de repente nos encontrávamos melhoraria.

Eu não poderia estar mais enganado...

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