A Marca Negra
Passaram-se dois meses como se fossem dois minutos. E todos os dias nós nos encontrávamos para conversar ou só para ter uma companhia em nosso silêncio. Caminhávamos, líamos e dávamos risada juntos. Lógico que Severo ainda me brindava pouco com um daqueles risos nota dez, mas eles se tornavam cada vez mais constantes. As horas passavam sem que notássemos. E quando nos separávamos, era somente após dizermos "boa noite". Pela primeira vez em dois anos eu me vi acordando de manhã com vontade sincera de viver mais um dia. Eu nunca pensei que me sentiria assim novamente. Ele livrava a minha mente das más lembranças e me fazia sentir segura.
O pior de tudo é que nem sempre eu me achava no direito de me sentir daquela maneira. Às vezes a realidade batia à minha porta e eu me sentia desconfortável, cheia de remorso como se eu fosse uma...uma traidora! Era exatamente essa a palavra! Eu não deveria ter me fechado completamente para todo tipo de sentimento em relação a outro homem que não fosse Remo? Eu não deveria ter morrido com ele, deixando no mundo dos vivos apenas o meu corpo e mais nada? Eu não deveria estar esperando por ele? Sempre achei que me tornaria apenas uma expectadora, assistindo os anos passarem por mim até que fosse a hora dele vir me buscar. Mas não era assim que estava acontecendo. Meus planos foram por água abaixo no momento em que enxerguei quem Severo realmente era. Não sei bem quando foi isso, mas eu não podia mais voltar atrás. Eu tentava, mas não podia... E enquanto isso, a culpa me consumia.
Nunca mais comentamos o ocorrido na sala de jogos, mas eu devo admitir que a partir daquele dia, apenas a sombra de Severo já me fazia suar frio. Precisavam alguns minutos junto dele para que eu me acalmasse. Eu tinha que parar decididamente com aquilo, tinha que aprender a me controlar. Se ele percebesse os zilhões de borboletas que estava despertando no meu estômago só por me dirigir a palavra, eu ficaria muito constrangida.
Certa vez, nós dois estávamos sentados em frente à lareira da suíte dele. Um em cada canto de um enorme sofá cor de vinho. Apesar de achar que aquela distância era o modo mais seguro de resistir aos ímpetos de me jogar nos braços dele, eu não conseguia parar de fitá-lo a cada 2 minutos. Severo estava concentrado na leitura de um de seus livros gigantescos, pré-históricos e certamente muito chatos. De quando em quando, ele levava a mão à testa, massageando-a em alguns pontos como se uma forte enxaqueca estivesse pronta para explodir.
Eu deveria estar lendo a carta de Hermione que acabara de receber, mas admito que na quinta página em que ela me descrevia seu entusiasmo por estar se saindo maravilhosamente bem no preparo das poções para Harry, perdi a paciência. Desisti de fingir que não estava com uma vontade enorme de conversar e me sentei em posição de lótus, encarando Severo abertamente agora. Percebi que ele me olhou com o canto do olho, mas na esperança de que eu continuasse calada, ele voltou à leitura sem me dar atenção. Isso não me impediu, é claro. "Severo?".
Ele bufou algo em resposta, derrotado, mais ainda sem tirar os olhos do livro. Porém, já que eu havia começado, iria até o fim. "Sabe, eu estou me sentindo tão perdida! Não sei mais como viver naquele mundo que nós deixamos. Você já pensou no seu futuro, em como vai ser sua vida depois que sairmos daqui?".
Ele não respondeu de imediato, mas pelo menos fechou o livro e o colocou sobre a mesa de centro, concluindo, para seu desânimo, que a conversa seria longa devido à minha crise existencial recém descoberta. Os olhos dele se fixaram no fogo por algum tempo antes dele resolver olhar para mim e me responder. "Eu não estou certo se terei realmente um futuro, uma fase menos...sombria, Ninfadora. Não depois de tudo o que eu fiz...".
De repente, ele parecia cansado demais. Notei que sua mão descansou inconscientemente em um ponto de seu antebraço onde, por baixo de todo aquele tecido, deveria estar a Marca Negra. Como eu poderia ter me esquecido dela? A memória que ele nunca poderia tentar apagar, a prova mais palpável do que ele já fora capaz de fazer. Quando eu pensava que ele não poderia guardar mais feridas, eu descobria uma nova. Aquele homem era tão calejado, tão atormentado e, ao mesmo tempo, tão forte. E a cada dia eu o admirava mais.
Aproximei-me dele, sentando ao seu lado. Não que aquela fosse a melhor das idéias, porque o perfume dele (o motivo dele começar a usar perfume de uma hora para a outra eu não sabia dizer) invadiu as minhas narinas e as minhas queridas colegas borboletas começaram a se manifestar. Esforcei-me para ignorá-las. "Nós somos amigos, não somos?". Ele olhou para o teto e estreitou os olhos, simulando dúvida para me provocar, como se uma resposta para aquela pergunta fosse bem complicada. Resolvi continuar, impaciente. "Foi uma pergunta retórica! Você não precisa responder! Somos amigos e ponto!".
Severo riu. Ah, Merlin! Por que ele tinha que fazer aquilo finalmente com tanta perfeição e tão perto de mim? "Se você está dizendo... Não serei eu o responsável por abalar tamanha convicção".
"Severo, eu estou falando sério! Bom, mas vamos direto ao ponto. Se nós somos amigos, você não vai me negar um pedido, não é?".
A expressão dele era intrigada. "Há esse tipo de regra entre amigos?". Dessa vez quem lançou o olhar fuzilante fui eu. E funcionou, porque ele se rendeu. "Certo, Ninfadora. Você venceu. Mas pense bem no que vai pedir. Não me tome como um dos gênios da lâmpada dos contos trouxas. Só realizo um desejo e não vou te oferecer outra chance".
Segurei o riso. Na verdade, o que eu ia pedir era muito sério e não era hora para brincadeiras. Inspirei fortemente. Dependendo da reação dele, aqueles poderiam ser os meus últimos minutos de vida. "Eu posso ver a sua Marca?".
O rosto de Severo mudou de expressão umas três vezes depois que eu falei. Surpresa, desprezo, ódio. Ele desviou o olhar, incomodado. "Eu não acho que seria uma boa idéia. Já tenho problemas demais sem ficar lembrando aos outros da existência dela...".
Aproximei-me ainda mais e, num impulso corajoso ou de pura inconseqüência, busquei seus olhos, que fugiam dos meus. "Por favor, Severo...".
A tensão reinou por um tempo, e então ele suspirou, estendendo o braço. Mesmo usando a minha voz mais meiga, não pensei que seria tão fácil convencê-lo e fiquei surpresa. Imaginava o quanto era duro para ele se deixar tocar dessa maneira. Quando consegui raciocinar novamente, segurei seu braço com cautela. Afastei aquela armadura de panos lentamente, com medo de machucá-lo de alguma forma. E então, lá estava ela. Escura, forte e permanente. Maculando sua pele alva. Cobri-a com a palma da minha mão. Era fria e parecia morta. Meus olhos já marejavam quando eu mais uma vez olhei para ele. "Ela...ela te causa dor?".
Então, num gesto que eu nunca esperaria, a mão livre dele cobriu a minha. Quente e suave, contrastando com a sensação gélida que eu tinha em minha palma. Seus olhos estavam mais uma vez opacos e, para meu espanto, eu percebi que também estavam úmidos. "Não dói mais exatamente nesse ponto desde que vencemos a guerra...". Segurando minha mão com cuidado, como se eu fosse uma boneca de porcelana muito pequena e delicada, ele a pousou em sua testa. "Mas dói aqui...". Com mais cuidado ainda, ele levou minha mão até seu peito, acima de onde fica o coração, e a envolveu com a sua. "E aqui...".
Dominada pela emoção, eu não conseguia me mover. As lágrimas umideciam meus lábios. Todo aquele sofrimento escondido durante anos me comovia tanto quanto a maneira como ele estava agora se abrindo para mim. Nunca vi Snape tão vulnerável, tão abandonado perante outra pessoa. Os olhos dele não me deixavam, ainda opacos. "Ela te assusta?". Foi a primeira vez que notei uma certa hesitação no tom de voz de Severo, como se ele tivesse medo da resposta.
"Não! Nunca! Você não se resume aos seus erros, Severo! Você é muito mais que isso! Você tem um passado. Isso é fato. Mas quem não tem?".
Sorri para ele e ele me retribuiu antes de se manifestar. "Eu não acho que você tenha algo tão...grotesco...em seu passado".
"Tenho, Severo. Eu sou uma Black e isso não pode ser mudado. Mas te garanto que esse sangue que corre em minhas veias só não me enoja mais por causa de minha mãe e de Sirius, pessoas maravilhosas...".
Sorrimos mais uma vez. Essa era uma das maneiras que nós dois encontramos para haver comunicação até mesmo no silêncio. E então, me dei conta de que minha mão ainda estava sobre o peito dele. Seu coração batia tão rápido quanto o meu. As minhas borboletas, que já estavam descontroladas, se multiplicaram. Arrebatada mais uma vez pelo magnetismo dos olhos dele, aproximei-me e senti que seus braços me envolviam lentamente. Merlin! A respiração dele estava tão próxima que queimava a minha pele. Todo o meu juízo se esvaiu. Ou quase todo, porque a única coisa que eu podia pensar além da enorme vontade de beijá-lo, era que aquilo estava errado. Remo! "Eu...eu acho melhor eu ir. É tarde...muito tarde...e nós precisamos descansar" murmurei, ainda nos braços dele. Eu disse aquilo, mas minhas atitudes não me ajudavam. Eu não conseguia me levantar dali, não conseguia deixar Severo. Porém, acho que ele entendeu (ou leu em meus olhos) que o fantasma de Remo estava ali entre nós. Seus braços se afrouxaram relutantemente, mas ele me soltou. E sorriu. Nota onze...talvez doze...
Antes que eu pudesse me arrepender, segui aflita para a porta. Minhas pernas estavam bambas e minha respiração ainda não tinha voltado ao normal. "Boa noite, Severo" eu disse, com a voz fraca.
Ele se ajeitou no sofá, ainda sorrindo. Eu realmente precisava sair dali o mais rápido possível. "Boa noite, Ninfadora. E obrigado".
"Como?". Mais uma vez eu não entendia nada.
"Obrigado por estar aqui e por suportar meu mau humor, meus desabafos...".
Sorri. Suportar? Como se estivesse sendo ruim ficar ao lado dele! E antes que eu abrisse minha enorme boca e falasse alguma grande besteira romântica da qual eu me arrependeria muito, fechei a porta e me abriguei em meu quarto.
*****************************************************
Olá!!!
Capítulo tristinho, mas é o elo para o próximo! Espero que não tenha ficado muito brega, mas às vezes é meio inevitável...rs...
Obrigada, Cris, Morgana, Stardust, Hannah e Krika por comentarem! Sempre fico muito feliz!!! Por isso, comentem sempre, meninas!
Até mais!
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!