Porque Não
Ele murmurou o nome dela e não reconheceu a própria voz. Rouca, soando como se fosse a de um afogado precisando desesperadamente respirar. Tocou os lábios com as pontas dos dedos, tentando simular as sensações daquela tarde. Mas os dedos eram substitutos muito pobres. Frios, finos, secos. Faltavam-lhe a maciez, a consistência carnuda, o gosto... aquele jeito de se mover, decididos mas cobertos com uma calda de suavidade... Ele praguejou baixinho e lutou contra as lembranças perturbadoras. Tinha dado mais um passo em direção à loucura; sentia-se mais dividido do que nunca. Aquela tênue amarra que mantinha unidos o ex-comensal implacável e o garotinho sedento por amor se esgarçara e se rompera; e agora Snape não tinha a menor pista de qual deles venceria. E ficar se revirando sob as cobertas de nada lhe serviria. Ele praguejou outra vez. Porque, exatamente, havia demorado tanto a lhe contar? O que estivera esperando? As coisas se complicarem como agora? A propósito... se ela já não soubesse, agora não teria mais dúvida alguma a respeito do que ele sentia. Quando aquele beijo maldito terminou, ele vergonhosamente fugira... *fugira* para dentro do castelo, deixando para trás um punhado de palavras sem sentido, as folhas de beladona jazendo na neve e uma Tonks atônita. Também se sentia sujo mais uma vez; sensação, aliás, que estava se tornando rotineira. Traidor, sim.
_ Por quê, em nome de Merlin... por quê?
Por que ele inevitavelmente acabava traindo e arruinando os poucos que se arriscavam a confiar nele? Snape queria, sim, ser capaz de aceitar tal confiança como uma pessoa normal; queria ser capaz de esquecer seu passado tão manchado ou, ainda, se purificar. Por brevíssimos momentos, naquelas semanas infindáveis escondido na Sala Precisa, ele chegou a acreditar que seu passado não teria mais tanta importância quando a Guerra estivesse terminada.
Mas, agora, constatava que aquilo jamais seria permitido a ele.
A sensação de impotência e frustração eram sufocantes. Por que sua vida *tinha* de ser aquela sucessão de ironias, como se o Universo brincasse de gato e rato com ele? De repente ele admitia para si mesmo que aquele beijo era algo que desejava desde a noite em que Tonks o havia confrontado na imunda cozinha do Largo Grimmauld. Às vezes com maior intensidade, às vezes com menor, muitas vezes disfarçado de desdém e indiferença. Às vezes esquecendo por completo e no instante seguinte, o desejo de sentir os lábios dela contra os seus o consumia por trás da armadura de gelo.
Mas agora era tarde.
*
A mesma cena se repetia alguns andares acima: Tonks se revirava na cama, inquieta e insone.
A expressão de choque no rosto dele não lhe saía da memória. Mas ela não conseguia esquecer, também, que ele havia retribuído o beijo... a princípio timidamente, depois com avidez. E em questão de segundos, fugira. Por que a beijara de volta? Se a queria, por que fugir em seguida? Por que não ficar? Ela estava perfeitamente solteira, Snape sabia disso; sabia que Lupin tinha ficado para trás há muito tempo... Tais pensamentos foram como uma faca se cravando impiedosamente em seu coração. Ela não pensava... "nele" fazia meses. Tonks engoliu um soluço e sentiu lágrimas quentes lhe escorrendo pela face. A necessidade de chamar por ele a rasgava por dentro. Ouvir a voz dele, a voz da razão; sentir seu toque calmo e carinhoso e... Ela respirou fundo e enterrou outra vez os pensamentos dolorosos ao mesmo tempo em que enxugava as lágrimas com as costas da mão. Ainda não pensaria (talvez nunca pensasse). Admitir o fim de tudo encerraria definitivamente o melhor relacionamento de sua vida. Não haveria mais chances de volta. Negar era, então, fugir da realidade; e ela inconscientemente sabia disso. Errado? Talvez, mas ela dava de ombros. Pelo menos estava sendo forte, não estava? Não havia desmoronado como da outra vez em que Remus a deixara, quando (o horror) perdera até mesmo a capacidade de se metamorfosear.
Aquela seria, então, mais uma noite de negação. E ela tinha problemas mais próximos agora. Snape. Quanto mais pensava no seu modo de agir ultimamente, mais certeza Tonks tinha de que ele estava apaixonado por ela outra vez. Eram os pequenos detalhes, o jeito como os olhos dele a procuravam; e olhavam para ela com as pupilas dilatadas. Um sorriso quase invisível lhe perpassando os lábios quando se encontravam. Gentilezas, vindas de alguém tão insensível... e até mesmo aquela inexplicável fuga depois do beijo.
_ Talvez...
Algo que ele nunca admitia, mas ela conhecia muito bem, era aquela tendência que Snape tinha de remoer suas frustrações durante anos. E se ele ainda não a houvesse perdoado por ter escolhido outro? Até que fazia algum sentido, sim... Pois bem. Snape estava apaixonado. Mas... e ela? Estaria, também? Estaria pronta para outro relacionamento?
_ Não.
A palavra lhe saltou dos lábios assim que os pensamentos cruzaram sua mente. Não estava, não queria estar. Não queria acrescentar novas memórias de beijos, de momentos perfeitos. Ela já as tinha em quantidade suficiente. Não haveria mais momento perfeito algum... não sem "ele". E então... a voz da razão estava lá. Tão claramente como se Lupin estivesse deitado a seu lado, Tonks o ouvia falando que queria que ela fosse feliz. Num doloroso flashback de quando fora abandonada pela primeira vez, ela o ouviu insistindo que a coisa mais importante pra ele, Lupin, era que ela fosse "feliz, não importa como, não importa com quem". E então tudo se distorcia; e ela ouvia Lupin lhe dizendo que Snape a *tinha* feito feliz nos últimos meses, se preocupando com ela como ninguém havia feito; a trazendo de volta quando parecia irremediavelmente perdida... e havia mais: ela, Tonks, admitia o quanto Severus era especial. Então...
Por que não?
Mas ela lutou e lutou contra tais pensamentos até cair, exausta, num sono inquieto.
*
12 de Fevereiro de 2000.
Pela primeira vez de que era capaz de se recordar, Severus chegou atrasado para o café da manhã. Havia passado a noite se revirando sob as cobertas e só conseguira dormir um pouco, um sono agitado, quando o dia já amanhecia. Acordou atrasado e com o pior dos humores... e com uma decisão irreversível na cabeça. Cruzou com Tonks quando ela saía pela porta do Salão Principal e antes que ela dissesse qualquer coisa, a puxou pelo braço até um canto deserto, na escada que descia para as masmorras.
_ Precisamos conversar.
Seu rosto estava muito sério, mas era como se, por trás, alguma coisa queimasse. Era como um presságio de algo ruim, mas Tonks nem imaginava o que a esperava quando combinou de se encontrarem na sala dele às nove horas daquela noite. Preocupada e ainda confusa com seus próprios pensamentos a respeito dele, ela se despediu de Snape com um beijo no rosto... um beijo que seria o último durante um bom tempo. Ele a assistiu se misturando à multidão, pensando com amargura o quanto precisava cada vez mais dela, *realmente* precisava... mas jamais poderiam estar juntos. Porque o maldito lobisomem estava morto. E havia sido ele, Severus Snape, quem o matara.
*
29 de Março de 1999.
Às três horas daquela tarde Snape ouviu alguém forçando o trinco da porta de seu esconderijo. Um horário adiantado demais para ser o dela. Franzindo a testa, ele se pôs de pé, a varinha erguida e pronta. Porém, antes que conseguisse se ocultar nas sombras, uma figura alta e magra adentrou o quarto.
McGonagall.
Seu rosto estava completamente inexpressivo e ela estava desarmada. Quando os olhos dela o encontraram, ela não gritou de susto ou raiva. Mas se aproximou, uma das mãos apertando o pescoço, nervosa; e sussurrou:
_ Acabou. Está terminado _ como se tivesse medo de despertar de um sonho. Ou de um pesadelo.
_ O que terminou? _ ele perguntou num jato, impaciente, se aproximando com a varinha ainda segura na mão.
_ A guerra _ ela sussurrou outra vez, agora mais próxima. Snape conseguia notar, agora, que por baixo da expressão de choque McGonagall fervilhava.
_ E nós...
Ela meneou a cabeça e sorriu lentamente, incrédula; e então sua voz se tornou firme.
_ Ganhamos. Voldemort foi derrotado.
Foi como se aquelas palavras tirassem um peso de toneladas de cima de seus ombros; um peso que ele nem sabia que existia. Pela primeira vez em anos Snape soube o que era respirar com calma. Ele fechou os olhos e apalpou a testa, tentando compreender o alcance total daqueles acontecimentos. Mas não se sentia capaz.
_ Venha. Tenho ordens de levá-lo até minha sala. Precisamos cuidar do seu futuro _ e a voz dela agora soava mais próxima da severidade habitual; mas conservava ainda os toques de incredulidade.
Era um dia muito claro e a luz que entrava pelas janelas o cegava, depois de tantos meses vivendo numa quase escuridão. Ele se sentia anormalmente falante e perguntador, andando rápido pelos corredores. Mas então...
_ Perdemos muita gente _ e Minerva o olhou com o canto do olho, de uma forma tão incisiva que ele não pôde ignorar. Parou; e as vestes continuaram o caminho, se enfurnando à sua frente. De repente seu futuro não parecia mais tão claro e brilhante; uma tempestade negra o ameaçava. Seu coração se encolheu dentro do peito.
_ Tonks.
Os lábios de McGonagall se apertaram, transformando-se em uma linha muito fina.
_ Onde... onde ela está? O que aconteceu? Está...
_ Está viva, Severo. Mas... tenho certeza de que preferia estar morta. Tivemos que levá-la para a casa dos pais, talvez...
Ele a interrompeu rispidamente:
_ O que aconteceu?
_ Nós... perdemos Remus Lupin.
_ Não _ ele sussurrou, os olhos se arregalando.
Snape não era nobre. Podia até agir muito egoisticamente na maior parte das vezes. Mas naquele momento desejou que aquilo fosse uma mentira. Não podia, não queria que fosse verdade. Não suportava nem imaginar Tonks de outra forma que não a esfuziante, espalhafatosa, curiosa, mandona, cheia de vida. Não queria nunca mais aquela Tonks cinzenta, deprimida... mesmo que tivesse que dividi-la, disputá-la com o lobisomem, e agora...
_ Como... como ela está? _ ele perguntou tão rápido e ansioso, atropelando as palavras, nem se importando o quão distante estava de seu jeito insensível de sempre.
_ Péssima. Lamentável. Em estado de choque _ disse Minerva baixando a cabeça _ Fiquei comovida como em muito não ficava.
Pelo menos metade do alívio dele tinha se esvaído quando chegaram à sala da diretora. Não era justo, não era certo... não com Tonks. Ele ainda tentava compreender quando foi que ela se transformara de ex-aluna irritante em alguém... bem, alguém importante na sua vida quando a porta se abriu. O próprio Ministro, Rufus Scrimgeour, se encontrava ali, bem como três aurores e uma juíza. Os aurores o cercaram e Snape ouviu a voz calma e sorridente de Dumbledore pedindo calma lá atrás; e isso foi mais um golpe.
Quando se sentou para o julgamento extraordinariamente realizado em Hogwarts (já que o quadro de Dumbledore era a única testemunha de sua inocência e não podia ser removido), ele se sentia como se estivesse sonhando um sonho muito ruim. Não olhou Dumbledore nos olhos um único instante. Ainda não havia se conformado, ainda se sentia repugnado com o que fizera... e Tonks...oh, Merlin. Durante o tempo em que a juíza mergulhou na penseira para analisar seus pensamentos, ele permaneceu alheio, a testa franzida, sentindo o conhecido ódio cozinhando lentamente dentro de si. Nem quando sua sentença fora dada ele se manifestou. Sim, pois ele tinha uma sentença. Por mais que houvesse matado Dumbledore a pedido desse, por mais que Albus fosse realmente morrer, Snape havia adiantado aquela morte... com uma maldição imperdoável. Ainda era assassinato; e não se podia abrir precedentes. Snape, porém, havia contribuído em muito para o fim da Guerra; havia sido espião, correndo muitos riscos, durante anos.
Snape foi condenado à prisão domiciliar em Hogwarts por um período de três anos; e não poderia se afastar do distrito de Hogsmeade sem o acompanhamento de um auror.
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não odeiem o snape, please. nem fiquem com raiva da fic e deixem de ler ;D ele vai se explicar, juro. e, affe. ô capitulozinho difícil de sair... foi meio complicado trabalhar com tantas emoções.
obrigada maria claudia, mayana e morgana por comentarem =)
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