A Morte Seria Um Alívio
Borboletas no estômago.
Ela meneou a cabeça. Não, claro que não. Era só ansiedade. Snape andava estranho e ela, muito confusa. Fosse o que fosse, seu estômago se revirava, e ela se sentia grata por ter pulado o jantar naquela noite, enquanto descia as escadas estreitas e sombrias que levavam à masmorras, as mãos geladas erguendo a gola do casaco, cabelos negros e curtos se agitando com o vento.
_ Entre _ ele disse quando ela bateu à porta. Seu tom de voz era outra vez frio e distante, com uma pontinha, talvez, de sarcasmo. Parecia outra vez o velho Snape, e não aquele que ficava quase descontraído na presença dela, não aquele que a levara, num impulso súbito de ternura, a beijá-lo... há quanto tempo mesmo? Pouco mais de um dia. Parecia fazer séculos.
_ Sente-se _ ele ordenou secamente.
Ela obedeceu e se sentou em uma poltrona, a perna balançando de um lado para o outro, mordendo o lábio, muito atenta e quieta. Ele se sentou de frente para ela e a encarou por breves segundos, ainda estranho e impenetrável; depois desviou os olhos, como se o contato o queimasse. Ainda assim, Tonks lhe sorriu quase timidamente.
_ Então?
Snape se aquietou ainda por mais alguns segundos, como se medisse as palavras, e então começou:
_ É algo que devia ter lhe contado há algum tempo.
Se o clima na sala fosse outro, ela até poderia apostar que o que se seguiria seria uma declaração de amor. Mas pelo jeito dele, era bem mais provável que fosse um fora... e ela não tinha muita certeza de qual das duas hipóteses seria mais dolorosa para eles dois.
Seu lábio se crispou, ele entrelaçou os dedos na frente do corpo e continuou:
_ Você sabe quem teve a brilhante idéia de utilizar Lupin como espião entre os lobisomens? _ ele perguntou naquele tom muito suave que ela conhecia há séculos das aulas de Poções.
Ela franziu a testa, de repente ainda mais confusa. Porque trazer aquela assunto à tona assim sem mais nem menos? E ouvir o nome "dele" era agora sempre como uma faca se enterrando em seu peito; e ela se sentia pouco capaz de raciocinar com aquele ataque frontal. Snape aguardava a resposta, silencioso.
_ Dumbledore, não foi? _ ela disse por fim num fiapo de voz, erguendo os olhos para ele, afundando-se na poltrona.
Ele sorriu irônico; e fez um sonzinho de impaciência com os lábios enquanto negava com a cabeça.
_ Não, não foi Dumbledore.
_ Quem...?
Ele se calou por mais alguns segundos, como se saboreasse lentamente a posse daquele segredo. Então, encarou-a brevemente mais uma vez e disse, erguendo a sobrancelha:
_ Eu.
_ Você? _ ela franziu a testa outra vez, tentando compreender aquela nova informação, tentando adaptá-la ao que já sabia e tentando entender o que aquilo mudaria. Até então, o autor da "maravilhosa" idéia havia sido Dumbledore; o ex-diretor chegou até mesmo a consolá-la e ela, a ficar ressentida com ele, mas agora... não era mais Dumbeldore? Mas Snape _ Como assim? Por quê? _ ela perguntou vacilante, ainda sem saber se acreditava ou não.
_ Bem... porque eu quis _ ele respondeu um pouco impaciente como se aquilo fosse muito óbvio; e o sorrisinho irônico aumentou mais alguns milímetros.
_ Porque você quis? _ a voz dela se tornara mais segura e cortante. Porque Snape quisera? Como assim? Enviar um homem inocente e já injustiçado o bastante para a desgraça... porque quisera? Por capricho? Por maldade?
A verdade começou a tomar forma; e a faca de dor agora começava a dilacerar lentamente.
_ Mas, Snape... Dumbledore me disse... que era necessário... esforço de guerra...
_ Ora, claro que não. Os lobisomens sempre foram considerado um caso perdido. Depois de séculos de perseguições e humilhações, ninguém seria tolo o bastante para acreditar que eles fossem realmente lutar do nosso lado, enquanto o Lord lhes oferecia uma chance de vingança.
A surpresa crescia cada vez mais.
_ Então... Remus... Remus se sacrificou...
_ Por nada.
O silêncio dominou a sala, pesado e negro como uma mortalha. A mente de Tonks trabalhava velozmente, tentando encaixar as novas peças naquele quebra-cabeça que ela havia remoído por noites sem fim.
_ Não, não por nada _ ela disse finalmente, estreitando os olhos, a voz agora fria _ Esse plano estúpido serviu direitinho pra acabar com o nosso namoro, estávamos nos recuperando da morte do Sirius e então, ele teve que ir... e aí tudo virou um inferno. Não sei se você sabia disso.
_ Claro que eu sabia _ ele respondeu numa voz muito macia e arrogante, parecendo agora um pouco entediado.
Ela apertou com força o braço da poltrona, a verdade agora a atingira plenamente.
_ E sabia também que se não fosse... você _ ela frisou a palavra _ ele ainda estaria...
_ Vivo _ ele completou num tom casual.
Ela fechou os olhos, sentindo um bolo se formando em sua garganta.
*
28 de Março de 1999.
Uma mescla de sentimentos confusos a preenchia naquele momento. Primeiro, alívio. Ela nem tinha parado ainda para pensar em quais seriam as consequências práticas do final da guerra em sua vida; mas sabia que era maravilhosa a sensação de um árduo trabalho de anos finalmente recompensado, de não ter mais o mal espreitando em cada esquina e uma morte no jornal a cada manhã. Em seguida vinha o pesar. Moody ainda estava desaparecido; ela havia acabado de completar seu turno de busca nas ruínas do local onde se escondia o horcrux de Ravenclaw; e ainda nem sinal dele. Gina Weasley estava no St. Mungus em coma profundo. Ela suspirou. Por último, vinha a saudade. Remus não havia ainda retornado de sua guarda no Ministério da Magia. Mas isso seria solucionado em breve; ele deveria estar de volta dali a alguns minutos. Então ela sorriu. O futuro se estendia brilhante à sua frente. Livres! Estavam livres! Teriam tempo livre de sobra e preocupações de menos; o que significava que poderiam passar horas juntos, fazendo todo tipo de coisa deliciosa. Uma espécie de lua-de-mel, já que, desde que se conheceram, mal tiveram tempo um para o outro.
Ela ainda sorria e fazia planos e mais planos, antecipando os dias e noites ao lado dele, quando chegou à sala em que ocorreria dali a minutos uma última reunião da Ordem da Fênix.
_ E aí, pessoas!
No mesmo instante, o burburinho morreu. Algumas pessoas desviaram o olhar, outras murmuraram palavras incompreensíveis. Ela franziu a testa.
_ Oi? Aconteceu alguma coisa?
Naquele instante Shacklebolt se destacou do grupo, seguido de perto por Minerva. Tonks se adiantou.
_ O que é que está acontecendo?
Kingsley e Minerva trocaram um olhar preocupado e Tonks começou a se alarmar, o sorriso se desfazendo e os planos para a lua-de-mel virando fumaça.
_ Tonks... _ começou McGonagall em tom de tragédia.
_ Você precisa ser forte _ disse o auror, sua voz profunda e lenta longe de acalmá-la como sempre fazia.
Foi como um soco no estômago, o ar lhe faltou. Tudo virou um confuso borrão de cores e movimentos; ela sentiu apenas uma cadeira sendo colocada debaixo de si e desabou. Como se prevesse as más notícias, ela temia o que viria em seguida; e não queria ouvir, queria voltar no tempo, nunca ter entrado naquela sala, não fazendo aqueles planos... Kingsley se ajoelhou e tomou as pequenas mãos pálidas entre as suas enormes; e engoliu em seco antes de começar, como se estivesse se preparando para a missão mais difícil de toda a sua vida.
_ Remus... ele...
_ Não _ ela sussurrou, uma lágrima começando a cair, e em seguida outra e mais outra e por fim, um rio delas, deixando a cena ainda mais turva _ Não.
_ ... emboscada. Os lobisomens...
_ Não quero ouvir. Não quero saber!
_ ... traição.
_ Não. Remus não.
Em algum momento ela se jogara sobre o auror e agora ensopava as vestes dele com as lágrimas, sentindo o gosto salgado delas em seus lábios. Tonks balbuciava coisas sem sentido enquanto Minerva acariciava suas costas.
_ Sinto tanto, Tonks, tanto... Chegamos tade demais, ele já estava...
_ ... não, não, não, não...
E ela agora mordia as vestes dele em seu desespero, fazendo força para não imaginar a cena, não imaginar Remus morto, perdido, de forma tão cruel... Remus, tão maravilhoso, tão essencial... ador a rasgava e ela sentia a centelha de vida se esvaindo com as lágrimas.
*
12 de Fevereiro de 2000.
Remus fora morto acusado de traição pelos lobisomens. Se ele jamais tivesse se prontificado a aceitar aquele plano estúpido... e, agora ela sabia, inútil... Remus, tão bom que sempre pensava nos outros antes de si... Era óbvio que ele jamais recusaria aquela missão se fosse convencido de que era essencial. A raiva agora borbulhava dentro dela. Tonks ergueu os olhos. Snape continuava sentado em sua poltrona, encarando a parede com aquele sorrisinho cínico nos lábios. Aquilo era o pior!
_ Mas o que é que você tem na cabeça?
_ Pensei que você soubesse _ ele respondeu debochado.
Como ele ousava... zombar da dor e do sofrimento dela?
_ Ora seu... idiota! Cretino!
_ Exato.
E a calma imperturbável, o ar insensível, sem coragem de olhá-la nos olhos...
_ Fala alguma coisa! Se defende! _ ela ficou de pé, agora completamente tomada pela raiva.
_ Já disse o que tinha a dizer.
_ Eu não acredito! Você... me enganou esse tempo todo! Ah, Merlin, como eu fui burra _ ela fechou os olhos, os punhos cerrados contra o peito; e então o encarou, sussurrando perigosamente _ Você me usou. Se aproveitou...
Se aproveitara da confiança, das boas intenções dela... Snape sorria vitorioso. Quando Tonks deu por si, sua mão espalmada já atingia o rosto dele, marcando de vermelho a pele muito pálida.
_ Seu filho...
Snape continuou impassível e cínico, quase como se estivesse muito satisfeito com tudo aquilo.
_ Eu te odeio, Snape. Odeio, ouviu bem? Nunca se esqueça disso!
A faca de dor agora se rvirava dentro dela e o desespero começava a se fazer notar. Ela correu para fora da sala, batendo a porta ao sair e pensou tê-lo visto enterrando o rosto nas mãos. Correu pelos corredores desertos, tentando fugir da escuridão que ameaçava engolfá-la.
_ Odeio! _ a voz ecoou pelo castelo vazio.
Seus ombros de repente ficaram muito pesados como se estivessem se transformando em chumbo. Oh, ela havia rompido a barreira proibida. Pensara nele... em sua morte horrível, injusta... tudo culpa do grande idiota que o havia assassinado de forma tão fria e calculista... Uma risada amarga irrompeu de seus lábios quando ela se deu conta. "Cuidando dela". Pois sim! O maldito bastardo estava era se sentindo culpado e tentando se redimir... era puro remorso e não carinho. Remorso por haver arruinado a vida dela... e depois ele ainda vinha com aquele sorrisinho cínico revelando que ela não significava nada para ele... e então...
As primeiras lágrimas começaram a escorrer antes mesmo dela chegar ao quarto. Arruinada. Morta. Mais que morta. Aquilo não era Tonks, nunca fora! Aquele ser mecânico, oco... e tudo culpa do idiotacretinoassassino. Ela arrancou as roupas com fúria como se ao mesmo tempo quisesse se livrar da Tonks morta.
_ Odeio _ e dessa vez sua voz soou embargada enquanto seus ombros se sacudiam com os soluços.
A escuridão a alcançara. Tonks se jogou na cama, os gritos de dor abafados pelo travesseiro. Então todo o peso da dor e da perda desabou sobre ela. A morte seria um alívio.
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