Porque Sim
Outubro de 1995.
Na segunda vez (e em todas as seguintes) ela o corrigiu.
_ E aí, Snape. Boa noite!
_ Boa noite, Ny...
_ Tonks!
_ ...dora.
Então, ela apenas sorriu de um jeito misterioso, como se guardasse um grande segredo, e sumiu num piscar de olhos. A cena voltou a se repetir por muitas e muitas reuniões: ela interrompia o que quer que estivesse fazendo para lhe cumprimentar e então, sumir sem dizer mais nada. Snape começou a ficar intrigado; e, em uma certa noite, a segurou pelo braço antes que ela tivesse tempo de desaparecer nas sombras outra vez.
_ Mas aonde é que a senhorita pretende chegar com isso, afinal?
_ Ah, a lugar algum. Eu só acho que a gente devia agir como pessoas civilizadas, sabe? _ ela ergueu a sobrancelha _ E um "boa noite" é um ótimo começo, você não acha?
_ Pessoas civilizadas... _ ele ainda se sentia fervendo por dentro quando lembrava do "showzinho" dela _ Quem sabe se a srta. tivesse uma *aparência* civilizada... _ ele estreitou os olhos, mirando os cabelos alaranjados.
_ Ora, não seja por isso _ fechando os olhos e se concentrando, ela fez escorrer pelos ombros uma cascata de fios castanhos claros; e olhava para ele agora com olhos verdes e brilhantes. Estava encantadora, ela tinha certeza; e tinha feito de propósito _ Melhor assim?
_ Hm.
E ela sorriu. Na verdade, nem sabia o porquê daquilo tudo. Não tinha porquê. Porque sim. Porque ela queria quebrar aquela casca de rabugice. Ela não resistia a um bom desafio. Já tinha dado os primeiros passos chamando a atenção dele com todos aqueles "boa noite". Havia percebido uma centelha mínima de aprovação no olhar que acompanhara aquele "hm" seco. Mas ela ainda queria mais. Tinha certeza de que, se apertasse os botõezinhos certos, descobriria um Snape que ninguém conhecia.
*
Dois de Setembro de 1999.
Quando o despertador tocou, às 7:30 da manhã, ela já estava se revirando na cama havia pelo menos duas horas. Ainda assim, conseguiu chegar ao Salão Pincipal para o café da manhã quando faltavam apenas quinze minutos para começar sua primeira aula. Tudo culpa dos cabelos; naquilo, ao menos, ela não havia mudado absolutamente nada. Tonks gastou quase uma hora e meia em frente ao espelho fazendo caretas e testando a cor dos fios. Ruivos! Negros! Loiros! Por fim, se resolveu por um tom castanho escuro que não comprometia nem um pouco.
Assim que colocou os pés na sala e viu os alunos do primeiro ano olhando para o teto alto, as escuras paredes de pedras, todos caladinhos e com enormes olhos arregalados, ela os achou as coisas mais adoráveis e inofensivas do mundo.
Nada poderia dar errado.
Nove de Setembro de 1999.
_ Olha, será que vocês poderiam ficar quietos...
A sala do quinto ano estava um pandemônio. A sua maravilhosa idéia de trazer corvos para os alunos treinarem feitiços silenciadores tinha se revelado péssima. Os corvos haviam escapado da gaiola, os alunos, escapado de seus lugares para caçar ou derrubar ou as aves; e estas contra-atacavam com vôos rasantes e bicadas e, completando a cena de caos, penas negras choviam do teto.
_ Alunos, atenção! Vamos voltar para seus lugares...
A gritaria continuou.
_ Quietos, por fav...
Tonks se interrompeu quando um aluno da Grifinória subiu na mesa dela para mirar um corvo. Certo, *aquilo* tinha sido demais. Fechando os olhos, ela ergueu a varinha, que já soltava faícas alaranjadas, e mirou-a para o alto enquanto berrava:
_ CALEM A BOCA!!!!
Quando a sala entrou em seu campo de visão novamente, os alunos estavam mudos e de olhos arregalados: o feitiço tinha derrubado duas cortinas, um corvo e um lampião, que tinha iniciado um pequeno incêndio numa pilha de pergaminho em branco. Bom, pelo menos, eles tinham fechado as matracas, ela pensou, suspirando.
_ Recolham cada um o seu corvo, por favor. Em silêncio! _ ela disse, enquanto apagava o fogo com um aceno de varinha.
Isso resumiu bem a semana. À exceção dos alunos do primeiro ano, todas as outras classes foram um pesadelo. E não era só ela, Tonks, quem tinha essa opinião. Ainda no terceiro dia de aula a diretora convocou uma reunião extraordinária com todos os professores, para pegarem ainda mais duro. Os alunos, principalmente os do sétimo ano, que deveriam ter se formado há dois, queriam estar em qualquer outro lugar, fosse pela idade ("com vinte anos e ainda na escola! eu devia era estar trabalhando..."), fosse pelo longo período de inatividade... ou porque haviam visto demais.
Mas hoje... hoje finalmente era sexta-feira. Quando a sineta tocou, às quatro horas, ela queria ser a primeira a sair da sala, de preferência correndo e deixando os livros pra trás. Mas não; tinha que ficar e recolher todos os pergaminhos, redações e restos não-desaparecidos do material daquela aula; e quando terminou já devia quase ser hora do chá.
_ E então? Já foi devorada viva pelas "criancinhas inofensivas"? _ perguntou uma voz macia e irônica que se aproximava.
_ Oh _ e ela estendeu a mão, rápida, para agarrar um vaso que ia escorregando quando se virou para receber Snape_ Tudo bem, confesso, eu estava um pouco errada. Mas só um pouco, hein! Me deram uma canseira, esses alunos. Tô pregada! Só quero subir pro meu quarto, tirar essas botas e...
Ele a interrompeu com um movimento de cabeça.
_ Ainda não. Vim levá-la para um passeio lá fora. Você precisa de um pouco de ar puro.
Ela o encarou boquiaberta.
_ Você? Desde quando você *sabe* o que é ar puro?
_ Não discuta _ ele estreitou os olhos e se fez ameaçador, enquanto lhe oferecia o braço _ Vamos.
Ela revirou os olhos e enganchou-se no braço dele. Snape lhe lançou alguns olhares de esguelha enquanto caminharam até o jardim. Na verdade, havia sido assim durante toda a semana. Ele a vinha estudando disfarçadamente. Analisando todas as mínimas variações de expressão, seu tom de voz, os olhares. E sempre se certificando, sem que ela soubesse, que tudo estava correndo bem, que ela estava se adaptando e se sentindo confortável no castelo. Hoje ela parecia realmente bastante cansada, mas, de alguma forma, quase imperceptível, menos vazia do que naquela tarde no Três Vassouras. E aquilo era bom.
_ Soube dos seus métodos pouco ortodoxos para colocar ordem na sala _ ele disse num tom muito casual, como se comentasse sobre o tempo.
Ela riu.
_ Se eu não fui expulsa dessa vez, não vou ser mais.
Ele meneou a cabeça; e ela podia jurar ter visto o vestígio de um sorriso em seus lábios, quando os olhos dele se estreitaram de repente alguns milímetros. Um garoto magricela de cabelos negros desgrenhados havia cortado seu caminho, descendo até a cabana que havia sido de Hagrid, hoje lacrada. Mais um marco da Guerra... Tonks franziu a testa. Canino, que havia sobrevivido, fazia festinhas em volta do garoto.
_ Ah, pobre Harry _ ela disse por fim.
Snape não respondeu. Ela ergueu os olhos e viu uma pontinha de desagrado inconfundível na expressão dele.
_ Você não muda nunca, não é?
Não era de todo verdade, mas Snape guardou tais pensamentos para si. A moça a seu lado, que agora lhe dava um beijo na bochecha e se afastava em direção ao garoto e ao cachorro, era a prova viva disso. Que ele podia, sim, mudar sua opinião a respeito de alguém; e mudar radicalmente, até. Mas ela era... especial. Um caso que não podia ser comparado com quase nenhum outro.
*
Outubro de 1995.
_ Estou muito desapontado com você, priminha _ Sirius disse entre um gole e outro de cerveja amanteigada.
_ Ué. Por quê?
_ Que história é essa de ficar de conversinha com o Ranhoso pelos cantos?
Os "boa noites" haviam evoluído para mais algumas frases.
_ Ah. Isso. O que é que tem?
_ Estamos trabalhando todos juntos agora, Sirius _ interpôs Lupin _ Eu particularmente não vejo nada de mais em dois membros da Ordem conversarem...
_ É, oras _ E Tonks deu de ombros _ Além do quê, ele não é tão ranzinza quanto parece. E eu ainda vou provar: ele só precisa _ e ela ergueu um dedo no ar e disse em tom professoral aos dois amigos que a encaravam atentos _ é de um bom abraço.
Sirius engasgou com a cerveja.
_ Acredite. Você não vai querer abraçar o Ranhoso. Não mesmo. Traiçoeiro feito cobra. Além disso... _ ele estreitou os olhos _ ... essas conversinhas estão me parecendo muito íntimas, sabe? _ havia um leve mas inconfundível tom de malícia em sua voz.
Tonks gargalhou.
_ E o que é que você tem com isso?
_ Tenho muita coisa. Não quero minha prima envolvida com gente desse tipo.
_ Ah, bancando o irmão mais velho, agora? Mas e daí se eu quiser? E daí?
_ E daí... que eu tenho outra pessoa em mente pra você, priminha. Muito, mas muito melhor mesmo que o Ranhoso. O melhor pretendente que você poderia querer!
_ Ah, é? Quem?
_ O Aluado aqui _ Sirius concluiu, dando um tapão nas costas de Remus, que colocou a xícara com estrondo sobre o pires; ele e Tonks aliviados porque a cozinha escura não deixava ninguém notar o quanto haviam corado só com uma simples brincadeira a respeito de ficarem juntos.
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