Uma Chance Mais



20 de Fevereiro de 2000.


Era um mistério como ele conseguia sentir tanto desprezo e ódio por si mesmo. Sempre que pensava haver chegado a um ponto intransponível, ele o superava. Primeiro, Lily. O remorso o consumia havia anos. Depois, Dumbledore. E logo em seguida... Tonks.

O ódio emanava dele de forma quase visível, como pequenas ondas de eletricidade; e criava uma atmosfera pesada a seu redor, perceptível para todos, embora ninguém desconfiasse de suas origens. Ele odiava o quanto havia sido insensível naquela noite. Odiava o quanto era incapaz de demonstrar seus sentimentos mesmo quando o queria. Odiava ter conseguido parecer apenas incrivelmente sarcástico, enquanto por dentro se consumia em culpa e desejo de envolvê-la em seus braços e abrandar a sua dor. Odiava não ter mais Tonks a seu lado, derrubando coisas e falando sem parar. Odiava igualmente a professora substituta de feitiços, da mesma forma que não suportava os olharezinhos enviesados que McGonagall lhe direcionava, como se dissessem que sabia de tudo. E ainda havia os murmúrios dos alunos, se perguntando o que teria acontecido a ela. E Snape sabia que era paranóia mas pensava receber, vez ou outra, olhares acusadores por parte dos estudantes.

Pelo menos ela havia reagido. Havia aceitado a morte de Lupin e parado de fingir, de se fazer de forte. Era uma compensação. Mas ele não suportava a idéia de Tonks sofrendo por sua culpa, não ela. Ele ainda sentia... tudo aquilo que sentia antes, não conseguia se desfazer muito facilmente do que morava em suas profundezas. E seus pensamentos sempre se voltavam para a necessidade urgente de saber como ela estava, amainar sua dor... mas ele sabia que nem esse direito possuía mais. Tonks estava absolutamente certa em odiá-lo. E ele, delirando quando algum dia pensou possível qualquer sentimento diferente... oposto do ódio. Que patético ele era. Já devia ter se resignado, há muito tempo, de que jamais mudaria. Seria sempre o velho morcego que vivia nas masmorras, estranho e solitário, cruel e insensível.

Uma coruja de penas avermelhadas pousou a sua frente naquela manhã, tirando-o de seus devaneios e fazendo seu coração bater um pouquinho mais forte. Em um momento louco e impulsivo, ele escrever a Tonks... uma carta breve mas extremamente desesperada e passional para seus padrões, se desculpando, pedindo perdão, confessando que a morte de Lupin não havia sido intencional. E escrevera também que, por mais razões que ela tivesse para odiá-lo, Tonks sempre poderia contar com ele, para qualquer coisa, e principalmente se recuperar. Ele queria muito ajudá-la.

Seus dedos não eram mais tão ágeis quando ele retirou um envelope das pernas da ave... um envelope trouxa. Ele o abriu e franziu a testa, não era uma carta que havia ali. Snape então o virou com a boca para baixo; e ali estava a carta que ele escrevera, devolvida com o lacre ainda intacto, ele percebia, mas rasgada em mil pedacinhos...

Ele fechou os olhos sentindo a culpa o queimando por dentro. Se tivesse mais uma chance... apenas uma única chance...

*

25 de Fevereiro de 2000.


Ela flutuava há dias num estado de semi-consciência, tendo pouca ou quase nenhuma noção do que acontecia à sua volta. Às vezes sentia a mãe lhe forçando alguma sopa ou chá através dos lábios inertes, às vezes alguma poção. Às vezes sentia as mãos de Andrômeda acariciando sua testa e cantando baixinho como quando fazia quando ela, Tonks, era criança; e ela perdia ainda mais a noção de tempo. Mas eram raros esses momentos. Tonks se esforçava para mergulhar na escuridão abençoada, no esquecimento, no fim da dor que a dilacerava absurdamente. Então ela encontrava paz. E tentava encontrar paz agora, quando seus olhos esgazeados se perdiam na penumbra do quarto, fitando o passado; que a atraía como o canto da sereia.

Mesmo sabendo o quanto doía, ela se esforçava para lembrar a primeira vez em que ouvira o nome dele, provavelmente dito pelo "tio Sirius", em uma de suas raras aparições, quando ela ainda era uma criança. A primeira vez que o vira, entretanto, estava bem fresca em sua mente, assim como o coração que havia batido um tantinho mais rápido e ela havia se tornado ainda mais atrapalhada enquanto colocava em ordem os pensamentos bagunçados por aquele homem alto, um pouco sério demais e um tanto gasto pela vida, mas que sorria tão facilmente; e sempre tinha uma palavra bondosa e compreensiva para qualquer um que precisasse. Estavam frescas também as noites em que passara tentando convencê-lo de que a licantropia não era nada, não era o que o definia, era uma parte bem pequena, das menores, da pessoa maravilhosa que Remus era. E ele era cabeça-dura e sempre se esquivava. Mas, aos poucos, ela foi penetrando nas defesas dele... e ao mesmo tempo, Remus ia demonstrando que não a achava apenas um alívio cômico ou alguém que não se podia levar a sério. Não. Ele sempre a ouvia com atenção, como se o que ela tivesse a dizer fosse a coisa mais importante do mundo. A primeira vez em que se dera conta de que estava apaixonada. O frio na barriga, os pensamentos turbilhonando loucamente na cabeça... contava? Se escondia? Subia no telhado e gritava para o mundo que o amava? Depois veio a sensação maravilhosa de descobrir que era correspondida; e o primeiro beijo, ironicamente trocado sob a luz da lua que entava pelas sórdidas janelas do número 12 de Grimmauld Place. Os lábios dele roçaram so seus leves como borboletas, suaves, doces...

Oh, dor.

Tonks fechou os olhos com força para apagar aquelas imagens. Concentrou-se em estudar seu antigo quarto. Ainda com as enormes almofadas coloridas esparramadas pelo chão, o teto rosa-chiclete e um pôster desbotado das Esquisitonas esquecido atrás da porta. Doía lembrar a Tonks que vivera ali, compará-la com o que havia se tornado. Uma sombra. Doía não ser capaz de fazer mais nada e ter seus pais sempre em volta impedindo-a de afundar.

Ela queria afundar.

E Andrômeda não a compreendia. Nunca a deixava sozinha tempo demais, queria abrir as cortinas e deixar o fraco sol de inverno entrar, forçá-la a sair do quarto. Tonks, porém, permanecia quase que o tempo todo deitada, oscilando entre delírio, dor e esquecimento.

*

27 de Fevereiro de 2000.


Nunca lhe ocorrera que as coisas pudessem terminar daquela maneira. Snape não desejava, apesar de tudo, que Lupin morresse. Ele apenas queria... queria afastá-lo... de seu caminho. Mas não para morrer, absolutamente. Fora um erro de cálculo, um tremendo erro de cálculo... se pudesse dizer isso a Tonks... A necessidade de vê-la se tornava cada dia mais urgente. Dizer-lhe que não era o monstro que ela imaginava, mesmo que não fosse uma pessoa muito boa. Dizer-lhe que ela, Tonks, o havia mudado, fazia-lhe tão bem... e agora até isso lhe escorria pelos dedos.

Uma segunda carta não adiantaria muito. Mas o que, então, ele faria?

Snape massageava a têmpora com os dedos finos enquanto seus olhos percorriam um pergaminho sem absorver uma palavra do que fora escrito ali. Seus olhos sequer registravam os alunos da sétima série que iam enchendo a sala. Ele apenas acordou quanto a sineta tocou, anunciando o começo das aulas daquela tarde. Passou os olhos ainda mais frios e cheios de desdém pela sala; e um sorriso de cruel satisfação lhe aflorou aos lábios quando notou que faltava um aluno... Potter. Agora ele teria uma excelente desculpa para extravasar um pouco a sua ira. Não que o garoto não merecesse punição. Por mais que houvessem lutado do mesmo lado, e até apertado as mãos a contragosto ao fim da guerra, o estado das coisas entre eles parecia exatamente o mesmo de sempre. Havia ressentimentos demais de ambos os lados; mas ele não estava se lamentando.

Após fazer sugir no quadro as explicações exatas para a poção a ser feita naquela tarde, Snape se preparava para percorrer a sala quando ouviu um murmúrio do outro lado da porta. Em passos largos, a alcançou e abriu-a de repente; e lá estavam Potter e a garota Weasley, de mãos dadas. Snape estreitou os olhos.

_ Menos oitenta pontos para a Grifinória, dez para cada minuto de atraso. Entre e sente-se, Potter, sem uma palavra _ e sua voz tornou-se macia _ Sei que não dará conta da poção de hoje mas ainda assim, deve comportar-se como qualquer outro aluno. Nada de privilégios aqui.

Harry simplesmente riu na cara de Snape.

_ Nada de privilégios? Ah sim, nada de privilégios para alunos que não forem da Sonserina, você quer dizer. Sabe, Gina _ e ele se virou para a namorada _ pensei melhor e resolvi que não vou assistir aula alguma hoje à tarde.

O professor sentiu o ódio subindo em ondas cada vez maiores.

_ Pois tente, Potter _ Snape sibilou de forma ameaçadora.

Gina tentou intervir mas Harry foi irredutível. Simplesmente virou-se e começou a subir as escadas, em direção à luz, ao campo de quadribol, ouvindo Snape vociferar às suas costas.

_ Potter! Três semanas de detenção a partir de hoje. Quero você às sete na minha sala. E nem ouse faltar!

Severus lutou arduamente contra a vontade de correr atrás do garoto, sacudi-lo, esganá-lo. Quanto atrevimento! Quanta petulância! Mas tudo o que ele fez foi ficar parado ali na porta, as chamas da raiva encobrindo a sensação incômoda que lhe oprimia implacavelmente o peito enquanto ele se dava conta mais uma vez de que eram, Potter e Weasley, uma cópia perfeita de James e Lily.

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