O coelho e a raposa



Capítulo 2- O coelho e a raposa


Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu
Se ninguém resiste a uma análise profunda
Quanto mais eu
Ciumento, exigente, inseguro, indecente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor
Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr
Não me corte em fatias
Ninguém consegue um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei perfeito amor.

***
Levaram apenas sete dias para que Sirius aprendesse a ler Tiago Potter, sete meses para aprender a ler Pedro Pettigrew e sete anos para aprender a ler Remo Lupin.
Remo era complicado porque ele raramente dizia o que estava pensando.Quando Tiago estava com fome, ele normalmente anunciava em altos brados que estava com fome. Quando Pedro estava com fome, ele costumava aguardar o anúncio de Tiago para só então concordar e dizer que também estava com fome. Remo nunca dizia que estava com fome; mesmo faminto você tinha que ler os resmungos de seu estômago, e então confrontá-lo perguntando quando tinha sido a última vez que ele havia comido.Em seguida você traria ao rapaz um sandwich feito pelos elfos domésticos e isso era tudo. Não que Remo não pudesse pegar o seu próprio sandwich: ele apenas não gostava de ser inconveniente.Ele nunca dizia quando algo estava o incomodando; você meio que tinha que ler os sinais de desconforto que ele não sabia que estava demonstrando para concertar o que estava errado.
Foi apenas depois do feriado de Natal que Sirius começou a captar alguns sinais estranhos de Remo. Coisas sutis, mas não tão sutis para passarem despercebidas.Sirius notou a maneira que Remo desviava o olhar quando seus olhares se cruzavam, ou o jeito com que ele se aproximava para assisti-lo praticar Quadribol com Tiago, o que o lobisomem não costumava fazer. Para não ficar sozinho num recinto com Sirius, Remo citava suas obrigações como monitor...ou, ainda, disfarçando o desconforto que trazia a presença de Angie, ele se retirava alegando que Sirius e sua namorada precisavam de “maior privacidade” quando estavam juntos.
Foi então que a ficha de Sirius caiu.
De início aquilo o divertiu. Divertia ele o jeito que Remo iria olhá-lo por cima do livro com seus grandes olhos avelã e então recuar rapidamente quando Sirius o notasse, como se ele realmente estivesse lendo. Divertia ele como Remo iria corar quando Sirius, num gesto acidentalmente proposital, resvalasse suas mãos quando estava tentando alcançar o sal durante o jantar. Divertia ele como Remo iria sentar ao lado dele para que pudessem passar bilhetes durante a aula de História da Magia; divertia ele o tamanho do sorriso que Remo iria dar quando ele fizesse um belo gol nos jogos de Quadribol ou, ainda, quando demonstrasse de alguma outra forma os milhares de talentos que tinha.
Em seguida o assustou, um pouco.O assustou a maneira que ele iria aguardar ansiosamente pelo treino de Quadribol por saber que os olhos de Remo estariam o seguindo a cada movimento. O assustou constatar que ele apreciava os seus toques discretos e apreciava importunar Remo com saídas do banheiro acompanhadas de apenas uma toalha na cintura. O assustou constatar que a presença de Remo era-lhe mais agradável do que a da própria e apaixonada namorada. Essas coisas apenas o assustavam um pouco, mas o deixou apavorado relembrar, ao acaso, que fora de Remo que ele ouvira as palavras “eu te amo” pela primeira vez...
E por fim isso o irritou. Ele queria que Remo pelo menos dissesse alguma coisa. Bem, alguma coisa significativa. Remo falava bastante sem realmente dizer nada.O modo como casualmente ele perguntava para Sirius se ele estava bem depois de um berrador da Sra. Black realmente dizia que Remo se importava com ele. A maneira como observava “Essa é uma blusa nova?” realmente dizia que ele havia notado que Sirius estava com uma boa aparência. Ou então, quando ele não desviava o olhar depois de ser captado por Sirius, ele claramente queria dizer “Eu quero você”.
Foi quando, finalmente, chegou a noite ideal para Sirius aproveitar-se de sua mais fascinante, divertida, medonha e bizarra descoberta.
Era uma noite aparentemente comum. Remo encostou a porta do dormitório masculino com um suspiro, largou a mochila sobre a cama e ali se sentou resignado. Tiago, Sirius e Pedro ergueram as cabeças para ele com sorrisos assustadoramente perversos:
-Como foi a aula particular, professor Lupin?! –indagou Tiago com fingida educação.
-Sua aluna aprendeu bastante com você?!- perguntou Pedro sem alguma piada realmente mirabolante para soltar.
- A Annabele ficou... satisfeita?! –finalizou Sirius tomado por uma de suas mais diabólicas expressões. Com a careta de desprezo que Remo lhes lançou, os três não puderam mais conter sua até então reprimida gargalhada.
-Vocês três possuem as mentes mais poluídas que eu conheço!- repreendeu, só então notando o Mapa do Maroto estendido diante dos amigos, estes debruçados sobre ele, sem sapatos, alojados na cama extremamente bagunçada de Tiago.
-Meu pequeno e inocente Aluado...- fez Sirius, meneando a cabeça.- Ninguém precisa ter a mente poluída para agarrar uma menina.
-Bem, ela não era uma menina. Ela era a minha aluna. –concertou Lupin, estreitando os olhos para o amigo. Tiago retrucou aquilo prontamente:
-Isso teoricamente, meu caro. Na prática, você é apenas um ano mais velho que ela, estava largado no meio da noite numa biblioteca completamente vazia, não estava sendo vigiado, é homem, tem desejos, tem sorte, e com toda a certeza possui um certo grau de superioridade e respeito perante ela.Você sabe como as meninas são bobas. Aquela ali estava caidinha por você, atraída principalmente pela sua inteligência, simpatia, sei lá! Qualquer idiota percebe isso. Até mesmo o Rabicho notou o jeito com que ela treme quando olha diretamente para você...
Remo ficou estupefato com a capacidade que Tiago tinha de farejar esse tipo de coisa. Parecendo agora meio encurralado, começou a amaldiçoar mentalmente este novo dom que acabara de descobrir que o amigo possuía. Já devia ter se prevenido antes, afinal de contas. Se com doze anos de idade os marotos conseguiam encontrar um lobisomem por detrás de sua máscara de garotinho gentil e bondoso, o que esperar então de bem formados rapazes de dezessete anos?!
E a pressão continuou.
-Então não rolou nada mesmo?- Sirius parecia, inexplicavelmente, muito interessado no assunto.Talvez o mais interessado.
-Não.
-Mas nós vimos vocês dois quase grudados aqui no Mapa do Maroto!- ressaltou Pedro, apontando o dedo gorducho para o pergaminho deitado sobre o colchão. A indignação de Remo cresceu consideravelmente neste ponto.
-Muito bem.- ele bufou, sem realmente conseguir engolir e aceitar o fato de que seus amigos andavam o espionando por intermédio daquele mapa infeliz que, agora mais do que nunca, Remo se culpava por ter ajudado a fazer.- Eu não quis, não quero e nem nunca vou querer ficar com aquela garota.-e após uma pausa, rosnou.-E não Rabicho, não adianta me perguntar o porquê.
E não se tocou mais no assunto durante a maior parte da noite. Foram algumas horas depois, quando Tiago saltou da cama alegando estar com fome (sim, Sirius concluiu, ele realmente não hesitava em divulgar as necessidades de seu estômago) e Pedro Pettigrew, tropeçando, apressou-se a dizer que também estava é que Sirius arranjou o seu momento. Foi-lhe um pouco duro, no entanto, negar ao melhor amigo mais um de seus mirabolantes passeios noturnos e mais uma clandestina visita a cozinha, mas ele conteve-se. Acuar Remo era a sua primeira meta da noite.
Assim que a porta do dormitório se fechou expulsando dois garotos famintos escondidos por uma Capa da Invisibilidade, Lupin puxou um livro qualquer para se distrair. Sirius sabia, no entanto, que o que causava ansiedade no amigo não era ter de esperar o retorno dos outros para poder pegar no sono, mas sim ter de esperar o retorno dos outros na companhia única e exclusivamente de SIRIUS- o que nunca o sossegaria para dormir.
-Então você não beijou a Annabele hoje a noite, não é? –comentou Sirius distraidamente, erguendo-se para ir de encontro á janela. Permanecia de costas para Remo, que ergueu os olhos para ele como sempre fazia: de maneira cautelosa e fugidia.
Silêncio.
-Porque não, Aluado?-continuou Sirius, monologando como se constatasse a resposta do outro sem precisar ouvi-la.- Todos acham que vocês dois dariam um belo par...até a Angie já comentou isso.
Ao ouvir o nome repulsivo de sua rival, Lupin teve que se esforçar febrilmente para manter o auto controle que lhe escapulia lentamente. Apertou o livro contra as mãos, de olhos fechados, ainda sem dizer nada. No entanto, apesar das manobras para recuar, Sirius podia ver seu reflexo angustiado no vidro diante de si, o que apenas o mostrava que suas palavras estavam atingindo o alvo como ele pretendia.
-Eu acho...eu acho que sei porque você não a beijou.
O coração de Remo ficou descompassado- “Ele sabe?! Como assim ele sabe?!”.
Sirius, que até aquele momento estivera de costas para ele, virou-se. Para total pânico de Remo sua expressão não demonstrava nenhum resquício de zombaria ou brincadeira: os olhos acinzentados de Almofadinhas fulguravam, perfurando sua alma insensivelmente:
-Não tenha medo.- disse o moreno, mordaz.- Eu sei porque você não quer a garota...calma, isso é normal...
Aquele, sem a menor sombra de dúvida, era o momento mais penoso da vida do lobisomem. As palavras de Sirius eram corrosivas, cáusticas, satíricas. Seu olhar penetrante, por sua vez, era picante e pungente. Remo engoliu em seco, recuando ao perceber que a tortura se prolongava a cada passo cada vez mais próximo de Sirius... “Porque você está fazendo isso comigo?!”.
O animago sentou-se ao pé da cama de Lupin, que agora se espremia contra a própria cabeceira. Os dois se encaravam de maneira inquietante. Então, a conclusão final saiu da boca de Sirius como uma flecha que finalmente é lançada por um arqueiro após uma boa meia hora de hesitação.
-Você não sabe beijar.
Por um momento, Remo imaginou o chão abrindo-se por debaixo de seus pés com um estrondo catastrófico e aniquilante de desespero. E então, no momento seguinte, sentia que a terra não desejava o tragar tão imediatamente assim. Respirava com dificuldade: seu peito subia e descia descompassado, como se ele fosse um coelho que, por um triz (ou por um rabo), acabara de escapar das patas de uma raposa.
-Eu posso te ensinar. –continuou Sirius, agora quase animadamente. O momentâneo sentimento de vitória escapuliu de Remo tão rápido quanto surgiu. A raposa ainda estava á espreita, sedenta pelo resto de coelho que deixara escapar. –Se esse é o problema que tanto te aflige, eu posso acabar com ele agora mesmo!
Remo ainda estava estático, incapacitado de fazer qualquer coisa que não fosse respirar. Oxigenar seus pulmões era a meta do momento. Isso. O resto vinha depois.
Sirius engatinhou pela cama e depois parou. Seus olhos de raposa ainda miravam Lupin cheios de malícia e reflexão.
- Você tem medo, não é? Medo e insegurança, tudo isso misturado à timidez...ah, mas eu não vou deixar você ficar aí,assim, apenas observando a sua vida passar. Venha. Eu vou te ensinar como é que se faz.
Foi apenas quando Sirius aproximou-se mais alguns centímetros que o cérebro de Lupin deu um estalo, mandando a mensagem num impulso frenético para todos os membros do seu corpo, obrigando-o a agir rapidamente:
-Não!
Sirius parou, ainda o assistindo com atenção.
- Eu...eu não preciso que você...eu não quero que você...
-Não seja idiota, isso não vai doer nada.- cortou o outro quase rispidamente para, logo depois, voltar a sorrir.- Confie em mim.
O coração de Remo voltou a descontrolar-se. Ele odiava aquela frase. Odiava porque sabia que não podia ignora-la. Odiava porque sabia que ela o atormentava profundamente, mais do que qualquer outro pedido de seus amigos.
-Almofadinhas, o que...o que pretende fazer?


Um frêmito trespassou todo o corpo de Remo quando a resposta de Sirius traduziu-se apenas num ligeiro sorriso. Ele avançou mais um pouco, agora acuando sua presa até que todos os seus ossos entrassem em atrito contra a parede de uma maneira desconfortável.
- Eu já disse.- costurou o jovem Black, inacreditavelmente calmo.- Nós somos amigos.
“Sim, apenas amigos...” - amargurou-se Lupin.
- E amigos se ajudam.- continuou o outro inabalável.- Deixe...deixe eu te ensinar.
“Ensinar?!”.
-Relaxe.
“Está brincando!”.
Sirius ergueu uma de suas mãos. Seus dedos longos triscaram a pele do outro maroto, fazendo-o estremecer. O coelho estava acuado. Não tinha mais para onde ir. Não tinha mais o que fazer.


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