Um cadáver de poeta

Um cadáver de poeta



Capítulo 3- Um cadáver de poeta


Perdoa-me, visão dos meus amores,
Se a ti ergui meus olhos suspirando!...
Se eu pensava num beijo desmaiando
Gozar contigo uma estação de flores!

De minhas faces os mortais palores,
Minha febre noturna delirando,
Meus ais, meus tristes ais vão revelando
Que peno e morro de amorosas dores...

Morro, morro por ti! Na minha aurora
A dor do coração, a dor mais forte,
A dor de um desengano me devora...

Sem que última esperança me conforte,
Eu-que outrora vivia!- eu sinto agora
Morte no coração, nos olhos morte!

(Álvares de Azevedo).
***

Fechou os olhos. A respiração quente de Sirius chegava a balançar seus cabelos tamanho a proximidade. A cada fração de segundo ficava mais desgraçadamente torturante esperar... “Acabe logo com isso, por favor!”.
Pôde sentir o colchão afundar-se com alguém que se arrastava para cada vez mais perto... a respiração de Remo vinha agora em pequenas baforadas de curto intervalo entre si:
-Sirius?-ele chamou, indeciso.
-Espere. - respondeu distante, paciente, calculista.
Remo era todos nervos; seu sangue energia líquida.Estava tão estupidamente aterrorizado que ou iria acabar se esquecendo de respirar ou poderia terminar respirando demais.Seu palpitante coração poderia assassiná-lo naquele exato momento, poderia...- e foi então que todas as frenéticas reações de seu corpo sumiram, traduzindo-se em apenas uma:
Ele encurvou o corpo num arco doloroso quando os braços de Sirius fixaram-se um em cada lado, jogando todo o seu peso para baixo; para Remo. Agora ele estava preso e fatalmente próximo à sua bomba de terrorismo sentimental...E era enquanto se dava conta disso, enquanto tentava trabalhar sua capacidade de abstração, que algo úmido e quente trespassou pelos seus lábios languidamente, surgindo tão de repente quanto se foi. Uma lambida. Uma lambida foi o suficiente para congelá-lo por fora e queimá-lo por dentro, causando então uma embaralhada confusão de sensações que se traduziram num gemido fraco e, em seguida, em olhos arregalados. Agora Remo procurava a prova viva do que acabara de sentir-talvez o pânico avassalador tivesse arquitetado esta breve ilusão para ele, aniquilando alguns de seus neurônios, quem sabe?- Mas não.
Sirius recolhia sua língua lentamente, esboçando um sorriso em seus lábios. Parecia estar concluindo alguma coisa, pois ficou visivelmente claro-Remo notou com certa inquietação-que Sirius sentia-se extremamente satisfeito diante do espasmo de Remo, como fica um cientista depois de ver comprovada sua mais brilhante teoria:
“Te peguei, Aluado”.

Feliz aquele que no livro d’alma
Não tem folhas escritas,
E nem saudade amarga, arrependida,
Nem lágrimas malditas!

Num impulso destemido de coragem, ele lambeu os lábios de Remo uma segunda vez. Remo ofegou para em seguida entreabrir ligeiramente a boca. Desta vez, Sirius não perdeu a oportunidade: sem receios, ele inclinou-se para frente e segurou seus lábios contra os de Remo até sentir uma reação... até sentir Remo produzir um pequeno som lamurioso que imediatamente impeliu Sirius para trás.
Agora eram os dois que arquejavam. Um, encostado na cabeceira da cama, tentava retomar o controle sob o próprio corpo para tentar compreender o que acabara de acontecer; o outro se mantinha afastado como se tivesse levado um choque agudo de ponderado raciocínio.
-Sirius?
Mas ele continuava calado. Com o silêncio constrangedor Remo sentiu os olhos arderem, e como se temesse o que provavelmente viria a seguir, se apressou em tentar concertar o erro:
-Eu disse que não precisava...eu não queria...me desculpe!
Os olhos nublados de Sirius cintilavam de maneira enigmática, perfurando Remo sem na verdade focá-lo com atenção.Atravessando-o como se ele fosse invisível.

E não sentiu a mão cheirosa e branda
Perdida em seus cabelos,
Nem resvalou do sonho deleitoso
A reais pesadelos!

Após um estremecimento, Lupin deixou os olhos caírem tristemente, desviando a atenção do raios-X de Sirius. De alguma maneira, sentia que tudo aquilo era culpa sua...
Sirius retomou sua fala:
-Eu ainda não terminei de te mostrar como se faz.
Remo ergueu sua atenção para ele tomado por incredulidade. O coração voltou a palpitar loucamente:
-Não...terminou?
Sirius engatinhou até ele como um leão; aproximava-se lentamente, quase como se estivesse dominado por uma maliciosa preguiça. O corpo de Remo deu mais uma guinada para trás na esperança de se salvar daquela insensível e desgastante brincadeira.
-Você tem que relaxar.-explicou o moreno, segurando o maxilar de Remo com uma das mãos. O rosto imóvel do rapaz de pele clara mostrava-se desalentado e, ao mesmo tempo, arisco.Pronto para escapar por entre seus dedos.-Agora abra a boca, como fez da outra vez.
Com mais um tremor servil, Lupin entreabriu seus lábios metodicamente. Estava entregando seus pontos; abrindo a arca do tesouro; fornecendo a chave da cidade ao bandido desconhecido que, no derradeiro momento, se inclinaria para ele...

Mas, nesse doloroso sofrimento
Do pobre peito meu,
Sentir no coração que à dor da vida
A esperança morreu!...

Habilmente, Sirius invadiu a boca do amigo com a própria língua cálida, provocando uma deliciosa vertigem em Aluado. Eles fecharam os lábios juntos, no mesmo instante em que fecharam os olhos, perdendo-se um no outro.
Remo gemeu tristemente, provocando vibrações em Sirius, que ergueu ambos os braços para prende-lo contra si e impedi-lo de fugir. Encostaram-se um no outro, ajoelhados sobre a cama...um dos corpos estava rígido, o outro quase desfalecido. Ainda assim, o abraço acabou com qualquer chance de recuo ou, ainda, de pesar. Remo sequer raciocinava naquele momento, o que foi-definitivamente-seu erro derradeiro...
Um murmúrio bastou. O beijo foi quebrado imediatamente.
-O que?-Sirius recuou mais atento do que surpreso, erguendo-se. Afastando-se dele.
E novamente a sensação de suplício, o desejo de morrer.Tudo o que sempre temera acabara de ser executado. Até mesmo já podia ouvir os ecos demoníacos que anunciavam sua sentença final; isolamento eterno! Ele acabara de jogar a confiança de Sirius ás traças, acabara de destruir anos de recolha e dedicação, anos tortuosos de culpa e aceitação, anos de uma forçada amizade...tudo isso graças á sua maldita fraqueza!
E agora, ver Sirius se afastado dele não podia se traduzir em outra coisa que não fosse medo. Caso seu maior pesadelo tivesse acabado de se concretizar, caso Sirius estivesse tomado por um nauseante repúdio, caso o animago nunca mais conseguisse sentir-se seguro perto de Remo, toda a sua vida não teria mais sentido – o que, Remo constatou imediatamente, ela nunca tivera. Afinal, existe sentido numa vida atormentada por uma angústia velada, por uma solidez que pouco a pouco se mostra mais mirrada? Existe sentido em viver dentro de si mesmo, dentro de uma alma doente e definhada?
-E-eu não quis dizer...não é o que você está pensando! – sufocou-se, desesperadamente. Sirius ergueu uma sobrancelha. Sua capacidade de auto controle naquele momento mostrava-se impressionante.
Como Remo Lupin se odiava! Como se ter caído na besteira de se apaixonar pelo seu melhor amigo – que acontecia de ser outro homem-não fosse o suficiente, a besta agora acabara de selar seu túmulo ao se declarar abertamente. Não. Pior: ele acabara de entregar-se ingenuamente a um beijo possuído por escárnio, acabara de falhar em seu primeiro teste, acabara de cruzar a tênue linha que o separava do real e o desejado. Sua sensibilidade exacerbada de fato só fazia as coisas perfeitamente piores! Seu amor por Sirius não era correspondido e nem em seus sonhos seria de outro modo – e, no mínimo, era certo de ser assim. Sirius era homem também. Sirius era decente, nunca iria errar como ele, maldito pecador infeliz destinado ao eterno sofrimento!
“Mas porque ele fez isso? Estava me testando? Será que... ele desconfiava?!Meu Merlim, não!”.

Que me resta, meu Deus?! Aos meus suspiros
Nem geme a viração,
E dentro-no deserto de meu peito
Não dorme o coração!

Remo já devia saber que suas ações escorregadias levantavam óbvias suspeitas, assim como tinha plena consciência de que o controle da sua razão sobre suas emoções estava se balançando na beira de um abismo sem fim. Ele sempre estava prestes a fazer uma apocalíptica besteira perto de Sirius, e esse era seu terror maior. Ou pelo menos ele achava que era- achava, até o próprio Sirius subir em sua cama para passar a língua em seus lábios! Deus, ele sabia!
-Que diabos está acontecendo com você?- Sirius exclamou numa voz de trovão. Aparentemente, aqueles dez segundos de silêncio foram demais para ele. Remo, por sua vez, se engasgou com a respiração trancada:
- Por favor, não me faça dizer...
Uma mão elegante e gentil foi pousada em seu ombro. Remo se encolheu diante da amizade e devoção que aqueles dedos lhe transmitiam-sob a forma de facas perfurando cada centímetro de sua alma! Ele então apertou os olhos para segurar uma gota teimosa, contendo o fôlego novamente para não arfar de agonia.
- Eu já disse, estou preocupado com você, Aluado. Você precisa dizer o que quer que esteja te perturbando. – Sirius falou numa voz branda, cavalheira, compreensiva... que o machucou ferozmente.
- Talvez eu precise falar... – Remo gaguejou, torcendo os dedos nos lençóis de sua cama. -mas você não precisa, e não quer ouvir o que eu tenho pra contar. Pode acreditar em mim.
Ele então sentiu a mão em seu ombro ganhar um aperto mortal... e de repente estava olhando fixo para Sirius, dois olhos cinza-nublados o perfurando até a alma com uma mágoa e uma preocupação sem tamanho.
-O problema não é você não saber beijar, hã?- recomeçou Sirius, tentando resgatar o raciocínio fugidio. Remo ergueu os olhos mel para ele coberto por uma espécie de resignação:
-Não, Almofadinhas.- murmurou. As lágrimas ardiam, como fel, acumulando-se dentro dele mais amargas do que nunca. Sirius sentou-se junto a ele novamente. Remo afastou-se o quanto seu corpo sólido o permitiu se afastar-ou seja, até chocar-se com a parede.
-E também...presumo que não tenha muito haver com a Annabele? –continuou o moreno, serenamente. Remo conteve um soluço engasgado:
-N-não. Eu não gosto dela...
-Nem da Angie?- acrescentou o outro, fingindo desconfiança. Agora o peito de Remo não passava de uma pura chama ardente. Ele negou.
-Então fale, Aluado.- sentenciou Sirius, os olhos fulgurando, como véus de mistério. – Fale!
Foi o brilho alucinante daqueles olhos cinzentos, tão claros, tão sinceros, tão dolorosamente devotados que prendeu a respiração do licantropo, o fazendo sentir aquela sua fenda amarga abrir-se com novos ferimentos, descosturando os antigos. Os olhos de Sirius o apunhalavam mais uma vez.
-Não posso...você vai me deixar...vai, vai me abandonar...
-Nunca.- rebateu Sirius, para quase com indignação completar -Você pode ser o que for, pode ter o que for, pode até pensar e sentir qualquer maluquice...eu juro; nunca vou me afastar de você, Aluado. Você é quem equilibra a balança, entende? Você é meu pólo oposto, não...não é como Tiago,que...
-Não diga isso Almofadinhas, você adora o Tiago...-costurou Remo, fraquejando até mesmo nas palavras. Sirius se voltou para ele mais ofendido do que nunca:
-Mas é claro, assim como gosto de você.
-E não de outra forma...- Remo comentou baixinho, como se falasse consigo mesmo. Esgueirou-se das mãos em seus ombros. Sirius ficou confuso. Ele já reparara no comportamento estranho do amigo muito antes de acuá-lo aquela noite, no entanto, de repente, tudo ficara tão óbvio, tão marcante e tão dolorido que nada no mundo parecia tê-lo preparado para aquilo. Partia-lhe o coração ver Aluado se desfazendo dia após dia num amor ao qual ele não sabia como reagir ou, ainda, de que maneira retribuir.
-Fale, Remo.- decretou de repente. Lupin empalideceu:
-Falar?Falar o que?
-Você sabe.- disse Sirius, frio, quase insensível. Estava farto!
Doentio, apático, mirrado e fraco. Era esta a aparência que um sorrisinho definhado de Remo escondeu, atordoando Sirius, que desejava palavras. Que desejava verdades.

Pela treva do espírito lancei-me,
Das esperanças suicidei-me rindo...
Sufoquei-as sem dó.
No vale dos cadáveres sentei-me
E minhas flores semeei sorrindo
Dos túmulos no pó.

-Se você sabe, Almofadinhas...-começou o lobisomem tristemente, pedindo com um gesto para que Sirius se afastasse.- então não preciso dizer nada.
O outro quis protestar, quando se deu conta de que Remo erguia-se da cama, deixando-o ali, estático, sentado com sua crescente impaciência a carcomer-lhe os neurônios.
-Aonde pensa que vai?!- gritou diante das passadas que Remo dava pelo quarto, indo em direção á porta. Ali ele hesitou. Sirius se ergueu: -Não se atreva...
Remo suspirou. Sirius ouviu claramente; foi o suspiro mais trêmulo que se lembrava ter ouvido. Ele girou a maçaneta, fazendo Sirius avançar com dois passos largos em sua direção...tarde demais.
Quando Lupin deixou o quarto, Sirius pôde jurar que chegara a ouvir algo próximo a um choramingo, a um soluço ou a um tremor embargado por lágrimas trotar atrás de seus calcanhares. Era a milésima vez que o amigo escapava dele aos prantos, e Sirius jurou para si mesmo, imediatamente, que seria também a última.

Oh!Se eu pudesse amar!...-É impossível-
Mão fatal escreveu na minha vida;
A dor me envelheceu.
O desespero pálido, impassível
Agoirou minha aurora entristecida,
De meu astro descreu.

Oh! Se eu pudesse amar!Mas não: agora
Que a dor emurcheceu meus breves dias,
Quero na cruz sangrenta
Derrama-los na lágrima que implora,
Que mendiga perdão pela agonia
Da noite lutulenta!

Quero na solidão-nas ermas grutas
A tua sombra procurar chorando
Com meu olhar incerto:
As pálpebras doloridas nunca enxutas
Queimarei...teus fantasmas invocando
No vento do deserto.




N/A: Muito bem; capítulo curtinho, recheado de poemas. Era exatamente isto que eu planejava!-me desculpem!!! O próximo certamente será o último, e eu também espero que seja bem maior que esse!Agora, vamos lá: os maiores créditos devem ser dados ao livro Antologia poética de Álvares de Azevedo, meu autor Ultra-romântico predileto! Muitas estrofes soltas surgiram de sonetos e poemas que eu picotei-já que o troço ou era gigante ou não se encaixava ao que eu queria passar. Mesmo assim, espero sinceramente não ter desapontado ninguém. Eu pretendia passar mais tempo escrevendo, só que assim não cumpriria minha promessa de atualizar no feriado. There you are! XD

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