Mudança



Eu soube que meu pai tinha ido embora de casa quando, um dia, vindo da escola com a Gina, encontrei a mamãe chorando na sala. Eu já a tinha visto chorar. As vezes, eles discutiam e meu pai dava uma dura nela. Quando viam a gente disfarçavam. Mas nesse dia mamãe não procurou disfarçar. A Gina chegou nela e a abraçou, mas eu só perguntei:
_ Que foi mãe?
_ O seu pai... - ela respondeu, assoando  o nariz sem parar de chorar.
_ O que tem o papai? - perguntou a Gina.
Mas mamãe não conseguia dizer nada, a não ser balançar a cabeça e dizer: "O seu pai", ‘‘o seu pai". A primeira coisa que me veio a cabeça foi que ele tivesse morrido num desastre. Meu coração disparou e, não suportando mais o suspense, insisti:
 _ Fala logo mãe. O que aconteceu com o papai?
Ela voltou-se pra mim, os olhos vermelhos cheios de lágrimas, e gritou:
_ Ele foi embora! Ele deixou a gente...
_ Como assim mãe? - perguntou a Gina, já começando a chorar.
Como se não ouvisse a Gina, ela disse com raiva:
_ ... me trocar por aquela vagabunda!
Nossa casa ficou parecendo um velorio. Por quase uma semana, mamãe não parou de chorar. Ficava trancada no quarto, não queria comer, não queria falar com ninguém. Se não fosse pela Gina, acho que ela teria morrido.
A Gina é mesmo fora de série. Já disse que era grudada com meu pai, que sentiu a ida dele, coisa e tal, mas quem segurou as pontas em casa foi ela. Eu, que sempre fui meio desligado, fiz de conta que não era comigo. É  claro que sentia pena da minha mãe e raiva de meu pai, mas adiantava chorar?
Hoje acho que esse meu jeito de ser desligado não foi nada bom pra mim. As vezes é preferível chorar, gritar, botar pra quebrar, do que ficar na sua, como se nada tivesse acontecido. Também me arrependo de não ter dado uma força em casa naquela época. Sei lá o que poderia ter feito, só sei que a Gina fez muita coisa: ficou do lado de mamãe, foi falar com os empregados, saiu com o chofer pra fazer compras. E eu? Queria mais era continuar saíndo com o Harry e o Dino, pra andar de skate pelas ladeiras do Morumbi.
Acho que não me tocar era aforma que encontrava pra fugir da zoeira. Tanto era assim, que nem dei a mínima, quando um dia, mamãe falou que a gente ia ter que mmudar do Morumbi.
_ Sinto muito. Não dá mais pra continuar mantendo  a casa.
Ela disse isso com tanta mágoa, que parecia que era a culpada por tudo que havia acontecido.
_ Não tem problema mãe, - disse a Gina. -a gente se ajeita...
Gina olhou pra mim, como eu nada disse ela completou: _ ... eu pelo menos, me ajeito. 
_ Vou procurar mantê-los no Pio XI. Acho um crime trasnferir vocês de escola no fim do ano. Mas no ano que vem não sei não...
E ela começou a chorar de novo, mas com tanto desespero, que até me assustou um pouco. A Gina se levantou de onde estava e correu para abraçá-la. Fiquei ouvindo os soluços da mamãe e  voz da Gina que a consolava.
_ A senhora vai ver, mãe. Vai dar tudo cetro.
Foi então que senti uma tontura muito grande. Pensei até que fosse desmaiar. Os soluços da minha mãe, em vez de me comover, me deixava enjoado. Senti vontade de estar a quilômetros de distância, sem ter que me lembrar das pilantrices do meu pai, do desespero da mminha mãe. Longe de toda aquela zoeira.
Levatei então da mesa, passei por elas sem dizer nada e fui pro meu quarto. A Gina sempre abraçada á mamãe, ainda me lançou um olhar de silenciosa censura que me incomodou um pouco. Mas fiz que não era comigo, fui em frente, saí da sala, subí as escadas e me tranquei no quarto. Sentado na cama, abri a gaveta do criado-mudo e peguei um baseado. Depois de várias tentativas, consegui acendê-lo. Naquela época, eu não passava de um pivete que nem sabia direito com acender um pacau de maconha. Tanto era assim que o deixei cair no tapete, queimei os dedos, os labios, até que consegui acendê-lo. Isso tudo me deixou doido, xinguei, chutei a cama. Mas quando dei a primeira tragada, me senti bem a beça. Pus um travesseiro contra a parede, e recostei-me nele, entrava um ventinho bom pela janela, e o céu estava tão azul. Dei outra tragada e logo me esqueci da mamãe chorando, do olhar que a Gina tinha me lançado, das sacanagens do meu pai, de que íamos nos mudar e o escambau.
Queria  era ficar alí, sentado na cama, sentindo a fumaça da maconha enrando dentro de mim, enchendo meu peito de calor e minha cabeça de euforia, o que me ajudava a pensar só em coisas da hora: numa mina que tinha conhecido numa vez que fui pra Ubatuba, que era a Mione. Num rolé que tinha combinado com o Harry e o Dino, num skate maneiro que tinha visto numa loja da Faria Lima. Tudo isso que me deixava numa boa, de bem com a vida.

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