INDEPENDÊNCIA E MORTE
CAPÍTULO 5
INDEPENDÊNCIA E MORTE
Rio de Janeiro, manhã do dia sete de setembro.
Sete de setembro, um dia especial, um tempo maravilhoso. O sol brilhava naquela manhã e não havia uma nuvem sequer no céu. Exatamente o tempo que os Paraquedistas pediram a Deus. Junto ao Monumento em Honra aos Mortos na II Guerra, carinhosamente chamado “Monumento dos Pracinhas”, uma multidão se aglomerava nas arquibancadas, pronta para apreciar o show aéreo da Esquadrilha da Fumaça e os saltos dos Paraquedistas Militares.
Dentro do C-130 “Hércules”, que decolara da Base Aérea de Santa Cruz, três oficiais conversavam, antes dos saltos que executariam.
_É bom tê-lo de volta depois de tanto tempo, Coronel. Como foram as missões no Exterior? _ perguntou um dos jovens Tenentes _ Ficamos muito felizes em saber que será promovido a General em novembro e assumirá o comando da Brigada.
_Sim. Até lá, ficarei adido à Brigada, em uma merecida folga. As missões foram muito boas, Tenente Daniel. Dois anos nos EUA, dois na Austrália e mais dois na Inglaterra. Fiquei contente por ter desempenhado as missões de aditância naqueles países. E a família também gostou muito.
_Sem contar os dois Budokai, não é, Coronel? _ perguntou o outro Tenente.
_Pois é. Esse foi um bônus bem-vindo, Tenente Marino.
_Eu sempre pensei que o Budokai fosse uma lenda. O “Torneio do Mais Forte Abaixo do Céu”. _ comentou Daniel _ sentimo-nos honrados pelos ingressos que o senhor conseguiu para nós, não é, Marino?
_Paraquedista usa coturno marrom? _ redargüiu Marino, enquanto eles riam e lembravam-se do torneio ocorrido há quatro dias, para o qual o Coronel Adriano Sandoval conseguira os ingressos para os dois Tenentes que, na AMAN, haviam sido destaques no curso de Cavalaria.
O Tenkai Chi Budokai, o “Torneio do Mais Forte Abaixo do Céu”, era considerado uma lenda e os ingressos eram distribuídos somente a pessoas selecionadíssimas, bem como eram muito selecionados os convites para inscrição dos participantes. A cada dois anos, era realizado em um país diferente e reunia a nata dos praticantes de artes marciais de todo o mundo e não só artes marciais orientais, mas também outras formas de Pugilismo e Defesa Pessoal, tais como o Boxe, a Savate, o Krav-Magá, o Keysi e outras mais. O resultado era um torneio de altíssima qualidade, no qual os lutadores pareciam estar acima do nível humano normal.
Só existiam duas categorias no Budokai: acima de dezoito anos e abaixo de dezoito anos. Dentro de cada uma delas, o que fazia a diferença era a habilidade individual do participante. Então era comum ver alguém com dez ou onze anos ser oponente de outro participante com dezesseis ou dezessete anos, o que não significava um favoritismo do mais velho, pois por diversas vezes o mais novo mostrava-se mais hábil e vencia.
Mas qual a relação entre o Coronel Sandoval e o Budokai?
A resposta era uma só: sua filha única.
Desde criança, Adriano Sandoval sempre havia praticado artes marciais e esportes radicais, tipo montanhismo, paraquedismo, surf, mergulho, etc, além de Yoga e meditação. A continuidade de tal prática favoreceu seu ingresso na carreira militar, desde os tempos do CMPA, o velho “Casarão da Várzea” e da EsPCEx, em Campinas, de onde saíra para a AMAN, tendo sido o primeiro colocado no curso de Cavalaria e primeiro colocado geral da Academia Militar das Agulhas Negras naquele ano. O primeiro lugar na EsAO lhe havia garantido a segunda coroa na Medalha Marechal Hermes, a condecoração por aplicação aos estudos. Nem tudo havia sido felicidade, pois perdera sua esposa em um acidente de trânsito em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, durante o período em que servira no 11º RCMec. Pensava que jamais seria feliz novamente, até que, aos vinte e oito anos, foi transferido para São Borja, depois de concluir a EsAO, a fim de comandar um Esquadrão no 2º RCMec, aquartelado naquela cidade gaúcha, na fronteira com a Argentina.
Foi lá que ele recuperou a alegria de viver, ao travar amizade com a família Vargas, proprietária da “Estância Paraíso”, sendo alvo da atenção da jovem filha do estancieiro, apesar da diferença de idade. Passado o seu período naquela Guarnição, foi novamente transferido mas voltou, algum tempo depois, para pedir em casamento a jovem Marilise, que estava com vinte e um anos. Casaram-se e, dois anos depois, tiveram uma filha.
As idas e vindas de Adriano Sandoval durante a carreira militar levaram a família a vários lugares. Brasília, onde Adriano serviu na Segurança Presidencial, Rio de Janeiro, para a EsCEME (onde sua Medalha Marechal Hermes ganhou a terceira coroa), Porto Alegre e depois missões no exterior, como Adido Militar nas Embaixadas do Brasil nos EUA, na Austrália e depois na Inglaterra.
Durante todo aquele tempo, sua filha demonstrava a habilidade para idiomas herdada da mãe e o gosto pelos esportes radicais, herdado do pai. O próprio Hélio Gracie, amigo da família, já dissera a Adriano que ela teria um grande futuro nas artes marciais, pois aprendia rápido e desenvolvia grande habilidade, parecendo até mesmo possuir capacidades paranormais. A verdade era que a garota via e ouvia coisas diferentes, embora pensasse ser alguma manifestação de mediunidade e mantivesse aquela capacidade em segredo para que não pensassem que era louca ou coisa do tipo. Previa os movimentos dos adversários e vencia-os com relativa facilidade, o que lhe valeu a vitória em vários torneios municipais e regionais. Aquilo chamou a atenção de mestres de artes marciais de vários países e, através de Hélio Gracie, recebeu o convite de Masaaki Hatsumi, o Mestre Ninja, para ser treinada por ele e participar do Budokai que, coincidentemente, naquele ano seria realizado na Austrália.
Sem a menor hesitação, aceitaram que a garota participasse daquele torneio lendário. E não é que a estreante, com quase dez anos, sagrou-se campeã na categoria Sub-18? Mesmo o Kickboxer tailandês de dezesseis anos, Duai Watsang, campeão nacional, oriundo da cidade portuária de Roanapur, que havia sido derrotado por ela nas finais, reconheceu sua superioridade, tornando-se seu grande amigo.
Dois anos mais tarde, o Coronel Sandoval estava na Inglaterra, com sua família. Um novo Budokai foi realizado, daquela vez em Londres. Sua filha defendeu o título novamente, sagrando-se bicampeã. O filipino de dezessete anos, Roberto Chamorro, expert em Escrimo, fora derrotado por pouco. Mais um para o rol de amigos da garota.
Agora estavam no Rio de Janeiro, onde seria realizada aquela edição do Budokai. A garota, agora com treze anos, avançara facilmente pelas eliminatórias, oitavas, quartas e semifinais, agora defendendo seu título contra uma verdadeira fera de Savate, um jovem de quinze anos, chamado André D’Estreés. A luta final estava para começar e os dois se cumprimentaram, antes dos árbitros darem as instruções. Ele vestia o macacão e calçava os sapatos regulamentares de sua modalidade. Ela usava um traje Ninja cinza completo, inclusive com o capuz, o que destacava seus cintilantes olhos azuis, iguais aos de seu pai. A parte que cobria o rosto estava baixada.
_Enfin, j'ai le privilège de l'avoir comme une adversaire (Enfim, tenho o privilégio de tê-la como adversária) _ disse ele, em Francês.
_Vous êtes très bon ou pas venu ici (Você é muito bom ou não chegaria até aqui). _ respondeu ela, no mesmo idioma.
_Na Austrália, não passei das quartas e na Inglaterra fiquei nas semifinais, contra aquele capoeirista. _ disse André, agora em Português.
_Fala muito bem nossa língua. _ disse ela, admirada.
_Obrigado. Tive uma professora brasileira.
_Eles já vão anunciar a luta. _ disse ela.
Os árbitros chamaram os lutadores finalistas e, como de praxe, repetiram as regras.
_Lembrem-se, não há limite de tempo. A luta termina por nocaute, desistência, lançamento para fora da arena ou conduta desleal que desclassifique o competidor, tipo matar o oponente, uso de armas ou outros acessórios que dêem vantagem injusta ao participante. Entenderam?
_Sim. _ disseram os dois.
_Então, fiquem em suas marcas e aguardem o gongo.
_Pega leve comigo, sou só uma garotinha. _ brincou ela, fazendo uma cara dengosa.
_Está brincando, chérie? Se eu pegar leve, você me mastiga e me cospe na arena em menos de dez segundos. _respondeu ele, rindo.
_Bem, eu tentei. _ disse ela, rindo junto com ele e levantando a cobertura do rosto, deixando somente os olhos à vista. Apertaram as mãos e foram para suas marcas.
_Senhoras e senhores, sejam muito bem-vindos à final de mais uma edição do Tenkai Chi Budokai. _ anunciou o árbitro _ Deste lado, um participante que progrediu muito, desde que começou a participar. Saudemos esse forte competidor com uma salva de palmas. Com quinze anos de idade, o Mestre de Savate, Monsieur André D’Estreés!
A assistência prorrompeu em aplausos.
_E, do outro lado, uma jovem que dispensa apresentações, bicampeã da categoria Sub-18, que mais uma vez defende seu título, conquistado pela primeira vez aos quase dez anos, na Austrália. Com treze anos de idade, a perita em várias modalidades, inclusive o Jeet Kune Do, o Ninjutsu e o Kombato, a jovem “Saiyajin”. Palmas para... JANINE VARGAS SANDOVAL!
O aplauso da assistência foi trovejante. Em seguida, os dois competidores fizeram reverências aos mestres e entre si, permanecendo em suas marcas. Um timbale marcou uma cadência, que foi ficando cada vez mais acelerada até culminar com o som do gongo, dando início à luta final.
Imediatamente, André avançou e atacou, com um potente chute que foi bloqueado e contra-atacado com outro de Janine, que atingiu o flanco direito do rapaz. Este pareceu nem sentir o golpe e revidou com um direto de esquerda. Janine novamente bloqueou o golpe e utilizou um movimento de alavanca, lançando André a uns três metros, aproveitando o próprio deslocamento do oponente. O rapaz não caiu e logo recuperou o equilíbrio, saltando e girando o corpo, em um chute voador invertido. Janine esquivou-se e, quando André atingiu o solo, saltou e apoiou-se nos ombros do rapaz, tomando impulso e aterrando atrás dele, abaixando-se e atingindo seus tornozelos, forçando-o a abrir as pernas. Em seguida, com as pernas flexionadas, apoiou as solas dos pés nas costas dele e esticou violentamente as pernas, fazendo-o voar de novo para a frente. Só que desta vez ele caiu de cara no chão da arena, cortando o lábio.
_E aí, como está? _ perguntou ela.
_Posso suportar mais do que isso, ma petite. _ respondeu André, limpando um filete de sangue da boca _ Não se preocupe e prepare-se para perder.
Masaaki Hatsumi era o treinador de Janine e estava perto da arena. Hélio Gracie foi até ele e disse algo ao seu ouvido.
_Hatsumi-san, acho que o francês tem alguma coisa, algum dispositivo ilegal nos tênis.
_Eu também notei, Hélio-san. Só que está muito bem escondido e se tentarmos interromper a luta, eles poderão desclassificar Janine. Mas ela vai se sair bem, tenho plena confiança. _ disse Masaaki Hatsumi.
_Espero que sim, Hatsumi-san. _ disse Hélio Gracie.
Janine notou que uma mudança parecia se operar em André. Ele ia ficando menos cavalheiro, seus golpes iam ficando mais duros e desleais e ele cada vez mais ia buscando os pontos vitais, procurando vencer o combate de uma maneira que ia beirando o limite que separava um combate leal de uma suja briga de rua, como era a Savate em seus primeiros tempos. Como um exímio Savateur, André sabia observar e aproveirar as falhas do adversário, por menores que fossem. Um chute de Janine foi um pouco mais lento, oferecendo a ele a chance de segurar sua perna na altura do joelho com um braço, enquanto que com o outro executava um golpe de antebraço no tórax de Janine, fazendo-a cair (“Dois podem jogar esse jogo”, pensou a garota). Ela rolou para longe, escapando dos pisões de André e aplicando uma tesoura em suas pernas, fazendo-o cair ao seu lado, ambos iniciando uma troca de golpes, ainda deitados. Um golpe de dedo de Janine em uma das axilas de André deixou-o paralisado por tempo suficiente para que ela pudesse se afastar e ficar em pé, logo seguida por ele. No ataque seguinte de André, o sexto sentido de Janine a alertou de que algo estava errado. O chute foi evitado por pouco e ela percebeu que o tênis de André apresentava um acessório no bico, uma pequena agulha hipodérmica retrátil.
_O que é isso, André? _ perguntou Janine _ Uma agulha no calçado? É contra as regras, pois é certo que deve conter alguma substância para atingir seu oponente.
_Baise les règles (F***m-se as regras). _ disse ele _ Não pretendo perder esta luta, chérie.
_Se me matar, será desclassificado. _ disse Janine.
_Não vou te matar. Isto só vai te deixar tonta o bastante para eu te nocautear e, como se dissipa logo no organismo, não será detectado. Bastará um pequeno arranhão para fazer efeito.
_Então vamos terminar isso logo. _ disse ela, bloqueando o chute de André e tirando o calçado de seu pé direito, jogando-o longe.
_Ainda tenho o outro pé, indiazinha! _ um pequeno toque na coxa direita e Janine sentiu a dor da picada da agulha do tênis de André. Mas havia algo com o que o francês não contava, que era a concentração e a resistência da garota.
Ela conseguiu manter-se em pé por tempo suficiente para contra-atacar, atingindo-o com as pontas dos dedos, em pontos específicos. O primeiro ataque bloqueou o movimento dos braços de André. O segundo impediu que pudesse girar o tronco e, por fim, o terceiro deixou suas pernas paralisadas e endurecidas. Um preciso ataque Chakra, aprendido com o Mestre Hatsumi, cuja finalidade era atingir pontos de energia, bloqueando o Ki do adversário. Uma técnica para ser utilizada como um recurso extremo.
_Agora que bloqueei seu Ki e te deixei do jeito que eu queria, lá vai o toque final, seu sujo! _ rapidamente, Janine aproximou-se e colocou as mãos espalmadas no tronco de André, uma no tórax e a outra no abdome. Concentrou nelas suas forças restantes e, com um Kiai de gelar o sangue, canalizou a energia e pressionou lançando André D’Estreés à distância, somente com a força do Ki, fazendo-o ficar na borda da arena, totalmente parado e indefeso. A plateia ficou espantada com aquele Noi-Cun, perfeitamente executado.
Sentindo que o efeito da substância existente na agulha de André ia lhe roubando as forças, Janine aproximou-se lentamente do rapaz que, paralisado, tentava se equilibrar na borda, evitando cair. Tirou o capuz do traje Ninja, mostrando seu rosto angelical, agora contraído e suado pelo esforço em manter a concentração, o que acentuava as covinhas e o furinho do queixo.
_O que você vai fazer? _ perguntou ele _ Está à beira de desmaiar, não tem mais chance. E assim que eu voltar a me mover, vencerei a luta.
_Quem luta sujo como você lutou, merece ser derrotado de uma forma infantil e humilhante. _ disse Janine, alto o bastante para que toda a assistência ouvisse, dando uma bofetada no rosto de André e simplesmente empurrando-o para fora da arena com o dedo, vendo-o cair no chão e elevando a voz _ CHUPA, TRAÍRA!!
_JANINE VARGAS SANDOVAL, TRICAMPEÃ INVICTA DO TENKAI CHI BUDOKAI, CATEGORIA SUB-18!!! _ anunciou o narrador, enquanto a garota caía de joelhos e fechava os olhos, concentrando-se e queimando com o Ki a substância, neutralizando seus efeitos. Em seguida, levantou-se com esforço e mostrou aos árbitros o dispositivo ilegal nos tênis de André. Logo depois daquilo, sentou-se no chão, visivelmente esgotada pelo esforço de eliminar o sedativo de seu corpo.
_Ele seria desclassificado de qualquer maneira. _ disse o árbitro.
_Mas vocês teriam de descobrir o dispositivo, que estava engenhosamente camuflado. _ disse Janine _ A agulha só aparecia quando um botão no interior do tênis era pressionado com o dedão. Ninguém estaria procurando por isso.
_O que será que ele estava utilizando? _ perguntou Masaaki Hatsumi.
_Só saberemos depois de algum laboratório de Toxicologia analisar o conteúdo das agulhas. _ disse um dos árbitros.
__Mas é certo que Monsieur D’Estreés e seu treinador estão banidos do Budokai, de agora em diante. _ disse outro árbitro _ E não duvido que sejam proscritos das competições do circuito mundial de artes marciais.
De volta ao avião...
_Então descobriram que as agulhas tinham uma mistura concentradíssima de anti-histamínicos, capaz de botar qualquer um para dormir quase que na hora? _ perguntou Marino.
_Sim. _ respondeu o Coronel Sandoval _ Outra pessoa teria caído logo, mas Janine foi treinada por Masaaki Hatsumi, um dos maiores Mestres Ninja ainda vivos. Ela utilizou as técnicas que aprendeu com ele, para resistir e depois queimar a substância com a energia interior, o Ki.
Foram interrompidos pelo Mestre de Salto, que avisou que estavam chegando à zona de salto.
_Atenção, equipe! Estamos chegando à zona de salto. Participantes do salto com arremesso de precisão, enganchar! Verificar equipamento! Numerar! _ As instruções do Sargento foram seguidas e os paraquedistas aguardaram a ordem para saltar e executar seus arremessos, tentando atingir com seus pacotes o centro do alvo na área de aterragem _ A porta... JÁ!!
Os paraquedistas lançaram-se no espaço e, quando os paraquedas abriram-se, freando sua queda, desceram suavemente até a altura de arremesso e iam, um após o outro, lançando seus pacotes no alvo. Os últimos a arremessar foram Marino e Daniel. Em seguida, aterraram.
_Atenção, os melhores arremessos foram os seguintes: em terceiro lugar, o Capitão Maurício Freitas. Em segundo, o Tenente Luigi de Oliveira Marino. E, em primeiro lugar, o Tenente Daniel Wiesenthal! _ anunciou o Mestre-de-Cerimônias.
Os aplausos foram entusiásticos. Na tribuna de autoridades e convidados, estava Marilise, com seus pais e sua filha Janine, esta envergando o uniforme feminino de gala do Colégio Militar: túnica branca, com botões dourados, platinas azuis, as divisas de seu ano, as insígnias do Grêmio da Cavalaria, da Legião de Honra, as condecorações e alamares, luvas de suedine brancas, culotes vermelho-garança com detalhes em azul, botas de montaria pretas, na cabeça uma macia boina francesa Bakarra vermelho-garança, espada à cintura (pois era uma Oficial-Aluna) e os cabelos castanhos presos em um bem-comportado coque.
_Acho que eles já vão saltar, mamãe. _ disse Janine.
_Sim, filha. Eles vão tentar bater o recorde da estrela, que já dura uns dois anos.
No avião, o Mestre de Salto deu as instruções.
_Atenção, equipe do salto livre, prepare-se para a abertura da porta traseira. Vamos tentar bater o recorde, este ano. Coronel Sandoval, boa sorte.
_Obrigado. Vamos lá, gente. Preparem-se para o salto.
_A porta... JÁ!! _ disse o Sargento, enquanto os paraquedistas saltavam do avião pela porta traseira, direcionando-se de modo a formar uma estrela com as cores da bandeira do Brasil, verde, amarelo, azul e branco, as cores dos macacões da equipe de salto livre.
Nas alturas, diante dos olhos da assistência no solo, os paraquedistas foram convergindo para um mesmo ponto e unindo-se, de modo a formar a estrela, conseguindo um número de participantes maior do que o recorde vigente.
_Fantástico, senhoras e senhores! _ o Mestre-de-Cerimônias, Capitão QAO Bittencourt, narrava o salto _ ELES CONSEGUIRAM! O RECORDE FOI BATIDO! E agora estão se separando para abrirem seus paraquedas!
Os paraquedas se abriram e o céu ficou colorido com os velames enfunados. Menos um, cujo velame principal permaneceu encharutado, justamente o do Coronel Adriano Sandoval.
_Um deles está com problemas, mamãe! _ exclamou Janine, olhando para cima, com um binóculo Zeiss _ Caraca! É o papai!
_Deixe-me ver! _ exclamou Marilise, pegando o binóculo das mãos de Janine e focalizando _ Meu Deus! É mesmo Adriano! O velame principal encharutou!
Vendo que o seu paraquedas principal não abriu, Adriano tratou de manter a cabeça fria e agir como havia aprendido na Área de Estágio da Brigada de Infantaria Paraquedista. Soltou as presilhas do velame, que se perdeu na distância e puxou o retentor do velame-reserva.
_Ele vai usar o reserva! _ exclamou Marilise.
_Há uma chance, então. _ disse Janine, pegando o binóculo e, em seguida, exclamando, horrorizada _ A caixa do reserva não abriu, mamãe!
_Que Deus o ajude! Só há uma coisa que ele pode fazer, agora.
Adriano sabia o que fazer. Embora não fosse algo muito regular, o Coronel sempre levava uma pequena faca, cuja lâmina era bastante afiada. E tratou de utilizá-la, cortando a caixa do velame-reserva e puxando-o, manualmente. O paraquedas branco inflou-se, reduzindo a velocidade da queda do Coronel.
Mas não o suficiente.
O Coronel Adriano Sandoval aterrou, porém excessivamente depressa e com muita força, emitindo um ruído sinistro ao tocar o solo.
_NÃÃÃÃÃÃOOOOOO!!!! _ Janine gritou e saltou pela amurada do palanque, sem se dar conta de que não tocara o solo, mas simplesmente desaparecera de onde estava e reaparecera no local de aterragem, quase onde seu pai havia caído. Logo a seguir, chegaram Marilise e os Tenentes Marino e Daniel. Com a confusão, ninguém percebeu o que ela havia acabado de fazer.
_ADRIANO! _ Em lágrimas, Marilise aproximou-se e olhou para seu esposo, caído ao solo e com os membros virados em ângulos estranhos. O Coronel ainda estava vivo _ Não! Digam que não é verdade! Não pode ser!
Respirando com dificuldade, o sangue saindo pela boca, o Coronel Sandoval apenas olhou para sua esposa e sua filha dizendo, com voz fraca, “Eu amo vocês. Jamais se entreguem”. Em seguida, fechou os olhos e exalou seu último suspiro.
Marilise chorava, enquanto Janine apenas ficou catatônica no mesmo lugar, os olhos fixos em seu pai, primeiro pálida e em seguida começando a ficar cianótica. Marino e Daniel viram aquilo e trataram de agir logo.
_D. Marilise, Janine não está bem e deve ser levada a um hospital. Eu e Marino cuidaremos disso, enquanto a senhora aciona o plantão do Auxílio-Funeral do CML. _ disse Daniel, enquanto Marilise apenas concordava com a cabeça, sem conseguir deter as lágrimas.
_Cadê o motorista da ambulância? _ perguntou Marino.
_Está naquele banheiro químico, já há bem uns vinte minutos. Parece que comeu um vatapá ontem à noite e está sentindo os efeitos.
_Com essa rebordosa, não dá para contar com ele. _ disse Marino, olhando para a ambulância e pegando Janine nos braços, a garota não esboçando a menor reação àquilo _ Daniel, a chave está no contato. Vamos improvisar.
_No melhor espírito da Cavalaria! _ exclamou Daniel, correndo e ajudando a deitar Janine na maca e fixando-a com as correias, para que não escorregasse durante o transporte _ Próxima parada, HCE!
Enquanto Marino ligava a ambulância, Daniel colocava uma máscara de oxigênio no rosto de Janine e abria o registro, mantendo um fluxo de dez litros por minuto.
_Isto vai te ajudar a relaxar. _ disse Daniel, acomodando os avós de Janine na traseira da ambulância _ Apenas respire, garota. Logo estaremos no HCE.
Com a sirene ligada, a ambulância devorava as ruas, alcançando a Avenida Brasil e entrando no viaduto que dava acesso à região de Triagem, bairro Benfica. Logo entrou na Rua Francisco Manoel e, no Nº 126, entrou pelo portão da Emergência do HCE, Hospital Central do Exército.
Na Emergência, o chefe da equipe de plantão era o Capitão Mendes, por sinal também Paraquedista.
_O que houve? Ei, eu conheço essa garota, é a filha do Coronel Sandoval.
_O Coronel morreu há pouco, em um acidente de salto. Ela estava entrando em choque e nós a trouxemos para cá. _ disse Marino, prestando continência ao Capitão e ajudando a levar Janine para dentro.
_Choque catatônico, como reação aguda a estresse. Vamos aplicar um sedativo, para evitar que ela surte. _ disse o Capitão Mendes. Na Observação, tiraram a túnica de Janine, que ficou com a regata que usava por baixo. A Técnica de Enfermagem pegou uma veia do braço da garota e instalou um Abocath, conectando-o a um equipo de soro. Uma ampola de Diazepam foi injetada, lentamente, mas Janine não parecia relaxar.
_Estranho, ela já deveria estar dormindo. _ disse a Sargento Ellen, a Técnica que havia aplicado a medicação.
_Acho que não vai fazer efeito. _ disse Daniel, que havia entrado, após ter preenchido a ficha de atendimento com os avós dela _ Janine Sandoval é perita em diversas modalidades de artes marciais e, inconscientemente, pode estar utilizando técnicas de energia interior que “queimam” qualquer sedativo. Vocês poderiam injetar um litro de qualquer droga que não adiantaria nada.
_Então só nos resta interná-la e esperar que ela volte ao normal por si mesma. _ disse o Capitão Mendes _ Vamos providenciar a baixa.
No apartamento, Marino e Daniel faziam companhia a Janine, até que sua mãe chegou.
_Marino! Daniel! Muito obrigada. Como está Janine?
_Já não precisa mais de oxigênio, D. Marilise. Mas ainda não falou e nem dormiu. _ disse Daniel.
_E olha que aplicaram sedativos suficientes para derrubar um adulto com o dobro do tamanho dela. _ disse Marino.
_Nunca vi algo assim, filha. _ disse o pai de Marilise.
_Ela deve estar queimando o sedativo com o Ki, sem perceber. Não entendo muito bem, mas Adriano comentou comigo que ela havia aprendido como eliminar substâncias nocivas do organismo. _ disse Marilise _ Parece que ela aprendeu essa técnica com o Sr. Hatsumi.
_Mas eu notei uma coisa, D. Marilise. _ disse Marino _ O olhar dela está fixo naquele canto do quarto, desde a hora em que foi colocada na cama.
_O que há ali? Não vejo nada de mais. _ disse Marilise.
_Não sei. _ disse Daniel _ Eu também não vi nada de estranho, embora dê para sentir uma atmosfera de tristeza aqui no quarto.
_Talvez só ela possa responder. _ disse Marilise _ Ela sempre fez segredo, mas eu sei que ela via e ouvia coisas diferentes, desde criança.
_Mediunidade? Paranormalidade? _ perguntou Marino, que se interessava por aquele tipo de assunto.
_Talvez ambas, Marino. _ disse Marilise _ Vamos esperar até que ela reaja e nos diga algo.
Mas dois dias se passaram, nos quais Janine continuou do mesmo jeito, catatônica e com o olhar fixo naquele canto do quarto, sem comer nem dormir. Durante todo aquele tempo, Marilise, seus pais, Daniel e Marino permaneceram em companhia da garota. Os dois Tenentes haviam sido dispensados de suas funções na Brigada, a fim de prestarem toda a assistência possível à viúva daquele que seria o próximo Comandante da Brigada de Infantaria Paraquedista.
_Até quando ela resistirá assim? _ perguntou Daniel, vendo que o estado de Janine não havia se alterado desde a internação.
_Não sei, Daniel. _ respondeu a avó de Janine _ Lembro-me de que ela me disse, uma vez, que quando estava muito triste e deprimida, tinha a impressão de que havia um vulto preto ao lado dela, sugando sua felicidade e que ia embora quando ela comia um pouco de chocolate.
_Por sinal, tenho uma barra aqui comigo. _ disse Daniel, tirando uma do bolso e abrindo-a _ Dizem que chocolate nos anima, então vamos tirar a prova.
_Tem razão. _ disse Marilise _ Estamos todos meio para baixo e...
Marilise não completou a frase. Um gemido vindo da cama fez com que todos se voltassem para ela.
_Cho-co-la-te... _ disse Janine, com voz fraca, estendendo o braço na direção de Daniel. Ele deu um pedaço da barra para ela, que comeu e então olhou para todos no quarto, sua mãe, seus avós e os Tenentes Marino e Daniel. Então, com os olhos úmidos, ela perguntou _ Ele morreu, não foi?
Diante da resposta afirmativa, Janine começou a chorar, logo sendo abraçada por sua mãe. Depois que a crise de choro passou, caiu em um sono profundo, permanecendo adormecida por mais uns dois dias.
Ao despertar, já recuperada, teve alta. Seus avós retornaram para a Estância Paraíso, em São Borja, onde aguardariam pelas duas. Na Vila Militar, alguns dias depois dos funerais do Coronel, Janine e sua mãe estavam na sala do PNR, que logo desocupariam quando se mudassem para o Rio Grande do Sul. Enquanto tomavam um chimarrão, as duas conversavam.
_Você vai querer ficar em Porto Alegre, filha? _ perguntou Marilise.
_Vou, mamãe. _ respondeu Janine, fazendo a cuia roncar e passando-a para a mãe _ Tenho duas opções, o CMPA ou o Rosário, mas é lógico que vou continuar meus estudos no CMPA. Ficarei na casa de sua prima Denise, ela já tem o quarto de hóspedes preparado para mim, foi o que ela me disse por e-mail.
_É, será melhor assim. _ disse Marilise _ Vamos providenciar então a transferência para o Colégio Militar de Porto Alegre. Mas eu não entendi uma coisa, filha. Mesmo com seu treinamento e domínio de energia interior, como foi que você chegou tão depressa ao local onde seu pai estava?
_Também não seu muito bem o que foi que aconteceu, mamãe. Só sei que, quando dei por mim, estava ali. _ disse Janine, pegando a cuia que sua mãe lhe passava.
_Muito estranho. Você estava saltando do palanque e, no instante seguinte, já estava lá. _ disse Marilise _ Pareceu até coisa de ficção científica, tipo um teletransporte de Star Trek ou mágica. Desaparecer de um lugar e surgir em outro.
_Não sei se vamos descobrir. _ disse Janine _ Só sei que teremos de retomar nossas vidas. Você vai ficar em São Borja, com vovó e vovô?
_Sim, enquanto pensarei no que fazer. Creio que voltarei a lecionar.
_E eu continuarei os estudos no CMPA, tentando entender como foi que desapareci e reapareci. _ disse Janine, devolvendo a cuia à mãe.
_Creio que o termo técnico é “desaparatar”. _ disse uma voz, falando o Português corretamente, mas com um sotaque britânico _ E foi exatamente o que aconteceu. A senhorita desapareceu e reapareceu. Além disso, há uma terceira opção, a qual eu acredito ser a melhor.
Comentários (1)
é a Janine entra em cena!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!com a chegada dela os inseparaveis estão completos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!to doida pro proximo capitulo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2013-04-25