CAPITULO V



CAPÍTULO V


 


 


Embora o general estivesse quieto, Lilian sabia que ele não dormia. Devia estar atento a qualquer ruído, pois o tiro poderia ter sido ouvido pelas tropas inimigas.


Mas raciocinando melhor, o estampido não ecoara a grande distância, e não havia, portanto, razão para pensar que alguém mais além da sua tropa, o tivesse ouvido.


Todavia, era compreensível que Potter estivesse tenso e ansioso para que seus planos dessem certo.


Lilian gostaria que ele lhe assegurasse que agira bem.


Ela havia matado um homem!


Não poderia ser de outra maneira. Acreditava que Tiago estava certo ao supor que o batedor vira as tropas chegando e agira por conta própria, tentando matá-lo para receber o prêmio oferecido pelo rei.


Se o batedor tivesse sido bem-sucedido, a revolução teria fracassado. O rei voltaria, e o povo seria tratado com mais rigor que no passado.


Lilian compreendia o quanto o rei Valter havia sido impiedoso e pareceu-lhe incrível que ele tivesse se mantido no trono durante tantos anos. Ele fora sábio em cercar-se de austríacos e manter um Exército moderno e poderoso que poderia sufocar qualquer insurreição que surgisse.


Era impossível a homens desarmados lutar contra um opressor tão entrincheirado. Por essa razão, Tiago Potter levara anos planejando a revolução e somente quando se sentiu bastante forte para competir com os austríacos todo-poderosos, foi que partiu para o enfrentamento.


Sob a luz da lua e o brilho das estrelas, Lilian podia ver o contorno do corpo deitado do outro lado da gruta. Parecia haver ao redor dele uma luz que certamente incentivaria e guiaria os homens à vitória.


"Ajude-o, meu Deus... E perdoe-me por ter tirado a vida de um homem", ela pediu em pensamento.


Lilian sempre julgara que se tivesse que matar alguém sucumbiria pela culpa e pelo remorso. No entanto, quando Potter atirara no soldado que tentara violentá-la, ela sentiu apenas alívio. Agora, ao invés de culpa por ter matado o batedor, sentia-se feliz, pois isso permitira que Tiago vivesse.


Era inacreditável que há apenas algumas semanas ela se encontrava na Inglaterra, onde se sentia miserável, infeliz e espezinhada, e temia até mesmo falar, com medo de ser repreendida ou espancada. E quando parecia não haver saída para sua vida de sofrimentos, ali se encontrava ela, em outro país, nas montanhas, ao lado de um homem que se empenhava numa luta de vida ou morte pela libertação de sua pátria.


 E estou casada com ele! — exclamou quase sem fôlego.


Não seria difícil para Tiago Potter anular um casamento civil. O mesmo, porém não se daria com o religioso, celebrado segundo o ritual de sua igreja. Mesmo sabendo pouco sobre as leis religiosas, Lilian não ignorava que o sacramento do matrimônio era um laço indissolúvel, e só poderia ser desfeito com a morte de um dos cônjuges.


"Deve haver uma forma de anular esse casamento, uma vez que tenho outra religião", ela pensou. "Mas o que será de mim?"


Se tivesse que deixar a Kavónia, não queria nem pensar no tipo de vida que teria. O melhor era se concentrar no que acontecia naquele momento. Lilian achou melhor admirar a paisagem e se dirigiu para fora da gruta.


Nas montanhas a sua frente, a luz da lua fazia brilhar os picos cobertos de neve. E como pano de fundo, o céu coalhado de estrelas formava um cenário extremamente lindo.


Era fácil acreditar que ali, naquelas montanhas, viviam seres sobrenaturais superiores aos humanos, com sua pequenez e esforços muitas vezes vãos.


"Ajudem-nos! Ajudem-nos!", ela murmurou, imaginando se seria possível eles terem, no dia seguinte, o auxílio de forças sobrenaturais, que se juntariam às de Potter naquela luta de libertação.


 


 


Lilian cochilou momentaneamente, acordando quando Tiago se mexeu. O dia logo surgiria. Uma luz, ainda pálida, começava a iluminar o leste, e as estrelas haviam perdido muito de seu brilho.


 O que vai fazer? — perguntou Lilian num sussurro.


Foram as primeiras palavras que dirigiu ao general, depois que ele lhe agradecera por ter-lhe salvo a vida.


 Vou certificar-me de que estão todos alerta.


 Acha que eles virão bem cedo?


 Suponho que as tropas do rei se ponham em marcha ao amanhecer. Pelo menos eu faria isso, se estivesse na posição deles.


 Haverá muitos soldados? — A voz dela saiu trêmula.


 Não é a quantidade que me assusta, mas as armas que usam! Se é verdade que eles têm canhões de longo alcance, teremos que detê-los e impedir que bombardeiem Zanthos.


Um calafrio passou pelo corpo de Lilian.


Ela sabia que a cidade não resistiria a um bombardeio, e com tantas pessoas ali reunidas, certamente ocorreriam muitas mortes. Sem entender a tática do general, Lilian não pode evitar a pergunta:


 Por que mandou as pessoas se reunirem na cidade? Ali há probabilidade de se ferirem, não é?


O general surpreendeu-se ao ouvi-la, mas respondeu calmamente, num tom muito sério:


 Se as forças do rei conseguirem passar por este vale e conseguirem uma posição segura, bandos de saqueadores atacarão as vilas das redondezas, os habitantes serão mortos e seus rebanhos serão roubados. Como os exércitos estão sempre famintos, não acredito que o rei tenha encontrado fartura de alimento na fronteira.


 Naturalmente não encontrou. Agora compreendo.


 É raro encontrar uma mulher que se interesse em entender manobras de guerra.


 Estou interessada apenas no seu Exército. Também detesto pensar no sofrimento de tantos seres humanos, não importa qual lado estejam servindo.


 É por isso que desejo que minhas tropas sejam bem-sucedidas. Colocadas nesta posição estratégica, salvaremos muitas vidas e evitaremos sofrimentos desmedidos.


 Pedi a Deus em minhas preces que a vitória seja sua — disse Lilian suavemente. — Estive rezando a noite toda, e acredito que você fez o mesmo.


Se ainda houvesse a luz do dia, ela não conversaria tão à vontade com o general. Já àquela hora, era fácil falar com ele, uma figura indistinta na sombra da gruta.


 Tenho certeza de que suas preces serão atendidas. E mais uma vez quero dizer-lhe que sou grato não apenas por você ter salvado a minha vida, mas também pela sua coragem em nos acompanhar.


 Eu diria apenas que não fui bastante corajosa para ficar no palácio.


 A maioria das mulheres não teria essa opinião.


 Acha que seus soldados estão... contentes por eu ter vindo? — ela perguntou, hesitante.


 Acredito que eles lutarão como jamais lutaram antes e, no fundo do coração, estão certos da nossa vitória — respondeu Potter.


 Obrigada por dizer-me isto.


 Ao observá-la ontem, enquanto cavalgava, pensei em você como uma Joana D'Arc que, seguindo a inspiração de suas "vozes", infundia nova força e vida aos franceses hesitantes.


 Gostaria de poder fazer isso, mas receio falhar...


 Não falhará! Até agora tem sido maravilhosa! Poderia ter recusado meu pedido de casamento e não o fez. Jamais sonhei que quisesse me acompanhar na frente de combate.


Potter levantou-se, e Lilian notou que os primeiros raios de sol surgiam no céu. Ela ergueu-se também e, ao lado dele, ficou olhando as montanhas do vale.


Não se via movimento algum. O lugar parecia completamente deserto. No entanto, centenas de homens achavam-se à espreita, com armas preparadas, prontos para matar ou serem mortos por um futuro melhor.


 Precisa ir agora? — perguntou Lilian.


 Sim. Você deve ficar aqui. Dois homens a quem eu confiaria a minha própria vida cuidarão de você e, caso algo saia errado, eles a levarão para um lugar seguro.


Sentindo um estremecimento, Lilian aproximou-se de Potter.


Sabia exatamente o que ele queria dizer com "se algo sair errado", significava: "se eu for morto".


 Tenha muito cuidado, por favor. — ela pediu. — Prometa-me que não se exporá. Lembre-se de que sem você para liderar, tudo fracassará. O futuro da Kavónia depende de você continuar vivo.


 Preocupa-se tanto com meu povo e com este país pequeno e sem importância?


 Claro que sim. Agora sou parte desse povo. Por favor... tenha cuidado.


Ela ergueu o rosto e, subitamente sentiu-se envolvida pelos braços de Potter, cujos lábios tomaram os dela.


Foi tal seu espanto, que ela em nada pensou, a não ser nos lábios que a subjugavam. Então, algo extraordinário e maravilhoso irrompeu no seu corpo, como uma explosão de luz.


Lilian jamais pensara ser possível sentir algo tão arrebatador e intensamente glorioso, impossível de ser descrito através das palavras.


Os braços de Tiago apertavam-na, tornando difícil a sua respiração, e ela sentia-se cativa não apenas dos lábios, mas de todo o corpo viril.


Em êxtase, parecia elevar-se até as estrelas, e que uma luz ofuscante os envolvia.


"Isto é a glória dos deuses", pensou.


Lilian se sentia parte de Tiago, pois seus corações pareciam bater em uníssono.


Então, subitamente como a envolvera em seus braços, ele soltou-a e saiu da gruta. Lilian acompanhou o ruído dos passos que se afastavam em direção à encosta da montanha.


Por um momento, sentiu as pernas trêmulas. Seu peito pulsava, numa emoção forte, conseqüência do encantamento que experimentara. Em seus lábios ficara o sabor e a impetuosidade do beijo de Tiago, e a luz dos deuses ainda brilhava em seu olhar.


Automaticamente sentou-se no cobertor e colocou as mãos sobre o peito, como se pudesse com esse gesto acalmar o tumulto que tomara conta dela.


Não restava dúvidas. Ela amava Tiago Potter, porém, jamais imaginara que o amor pudesse evocar sentimentos tão sublimes. Lilian sempre pensara no amor como algo caloroso, feliz, confortável como o que vira entre seu pai e sua mãe.


O que sentira, no entanto, havia sido diferente. Fora uma emoção forte, tempestuosa, apaixonada... um fogo cujas chamas pareciam consumi-la e, ao mesmo tempo, despertá-la.


"Amo-o! Amo Tiago Potter!"


Agora sabia que já o amava quando a defendera do soldado e quando ele a carregara para o quarto. Sentira-se protegida em seus braços, uma sensação da qual se esquecera desde que perdera os pais.


Além de sentir-se segura e sem medo ao lado de Potter, ele significava mais que isso para ela. Significava algo que nunca conhecera antes em sua vida.


"É amor!", pensou feliz.


Era amor a ânsia que sentia quando desejava que ele conversasse com ela. Fora o amor que a fizera aceitar o pedido de casamento.


Potter dissera que o casamento seria uma forma de proteção, e também levaria o povo a acreditar que a profecia sobre a ninfa se tornava realidade.


Pensando no que aconteceu, Lilian teve certeza de que, se outro homem lhe propusesse a mesma situação, ela teria relutado em aceitar.


Havia sido por amor a Tiago que, sem hesitar, concordara com o pedido dele.


"Quando salvei a vida dele, não o fiz apenas pelo bem da Kavónia, mas também por amor, pois se Tiago morresse, eu morreria também."


Lilian ergueu a cabeça e viu que o dia estava clareando. Os picos das montanhas tinham perdido o tom prateado do luar e ganhavam um novo colorido ofuscante, dourado.


Um barulho parecia vir do vale e, olhando para baixo, ela viu nitidamente a estrada serpeante.


Na noite anterior, notara o rio que corria ao lado da estrada. Naquela época do ano, ele mostrava um leito rochoso, não muito profundo, mas no inverno devia ficar cheio, devido ao degelo da neve.


A estrada estava vazia, mas o barulho aumentava a cada instante. Com um tremor, Lilian certificou-se de que eram soldados marchando.


Certamente os homens de Tiago Potter teriam ouvido, como ela, o inimigo aproximando-se, e estariam alerta, as armas preparadas, esperando apenas a ordem de abrir fogo.


Lilian sentia um forte desejo de saber onde Potter se encontrava, de vê-lo. Naturalmente ele não agiria tolamente, nem se arriscaria. Ele compreendera que somente estando vivo poderia ajudar seu povo.


"Tiago, tenha cuidado! Por favor!", ela repetia seguidamente, inquieta.


Sentia uma grande agonia de saber que ele corria perigo, que poderia ser baleado a distância, ou ser morto num combate corpo-a-corpo. Todos os soldados inimigos se empenhariam em matá-lo, pois sem ele a revolução estaria terminada.


O som pesado da marcha militar vinha do sul, e não demorou para Lilian avistar os primeiros soldados.


À frente, vinha um oficial a cavalo, ladeado por dois militares da guarda pessoal do rei. Seus elmos, que lembravam os dos guerreiros gregos, reluziam ao sol.


Logo atrás ela avistou quatro canhões, os poderosos canhões de longo alcance que o general tanto temia. Cada um deles, puxado por quatro mulas, estava rodeado por seis homens.


Atrás dos canhões vinham outros oficiais, com suas elegantes túnicas vermelhas, comandando os soldados que seguiam em colunas e marchavamem ordem. Aquelastropas eram muito diferentes dos do general, formadas por gente da plebe, desorganizada, mas leal.


Era impossível ver os rifles àquela distância, mas eles eram, sem dúvida, modernos, fáceis de manejar e rápidos. Já os soldados de Potter carregavam velhas espingardas de pederneira.


Era desesperador aquele contraste. Como poderia o Exército Popular ser bem-sucedido? Juntando as mãos, Lilian achou que somente a fé poderia ajudá-los naquele momento.


Os oficiais, os canhões e os artilheiros já se achavam no meio do vale, enquanto os soldados que seguiam mais atrás nem haviam entrado nele. Isso queria dizer que os mercenários, fossem eles da Kavónia ou da Grécia, que se haviam juntado ao Exército do rei eram bem mais numerosos do que o general imaginara.


As tropas avançavam regularmente e apenas o barulho da marcha, o som surdo dos pesados canhões sobre a estrada pedregosa, o ruído dos cascos dos animais e, ocasionalmente, um soldado açoitando uma das mulas perturbava o silêncio do vale. Era tudo tão sinistro, tão aterrador!


Quantos soldados! Tão organizados! Tão precisos!


Homens exercitados e treinados para matar. Soldados profissionais. Certamente não haveria muitos homens naturais da Kavónia naquelas tropas.


Potter havia dito que a maioria dos soldados da Kavónia, que antes serviam o rei, haviam passado para o Exército Popular. Felizmente havia muitos profissionais entre os que se achavam escondidos nas montanhas, apesar de a maior parte dos seguidores de Tiago Potter ser cidadão comum, sem qualquer treino militar.


"Estou com medo.", pensou Lilian.


E se os homens escondidos nas rochas, gargantas e grutas não quisessem arriscar suas vidas e desertassem? Não! Isso não aconteceria. Aqueles homens não abandonariam seu líder, principalmente sendo ele Tiago Potter.


Entretanto, quem poderia prever a reação de homens destreinados e nunca postos à prova? Quando chegasse o momento, não hesitariam eles em arriscar o bem mais precioso que possuíam, a própria vida?


"Oh, Deus, dê-lhes coragem! Dê-lhes coragem!", sussurrou Lilian, enquanto observava os últimos canhões que chegavam ao vale.


Agora as tropas do rei marchavam ao longo da estrada, e vistos daquela altura pareciam um enorme crocodilo de homens uniformizados se movimentando com precisão.


Era uma visão impressionante e assustadora. Talvez o próprio Tiago pensasse que não haveria chances de sobrevivência e, não querendo sacrificar sua gente, se entregasse ao rei.


Súbito, Lilian ouviu uma explosão que a fez estremecer e ecoou pelas montanhas. O oficial que ia à frente das tropas do rei caiu ao chão e seu animal fugiu a galope.


Era o sinal de Potter para o ataque. Seus homens, escondidos nas rochas, grutas, gargantas e fendas dos precipícios começaram a atirar. As tropas do rei saíram da formação, e seus soldados correram em busca de abrigo ao lado da estrada.


As mulas que arrastavam os canhões, apertaram o passo, desnorteadas com o barulho dos tiros.


Pegos de surpresa, os soldados do rei Valter revidavam a balas, embora sem a mesma intensidade com que eram atacados.


Mais seguros ao lado do riacho, os soldados apontavam os rifles para as rochas e atiravam em vultos acima delas, já que era-lhes quase impossível conseguir um alvo nítido. As balas ricocheteavam na pedra bruta, sem ferir os homens de Potter.


O barulho era ensurdecedor, as detonações repercutiam pelo vale e os tiros que ecoavam se multiplicavam nas cavernas e entre as montanhas, fazendo doer os ouvidos.


Deitados ou agachados atrás de pedras e moitas, ao longo do riacho, os aliados de Ferdinand continuavam atirando contra o inimigo invisível.


À medida que o fogo cruzado se intensificava, o número de mortos e feridos crescia assustadoramente, o que pôs em fuga os soldados do rei.


Os artilheiros foram os primeiros a correr, já que não tinham rifles, sendo seguidos pelos outros soldados, que atiravam fora suas armas e tentavam livrar-se de suas túnicas, na tentativa de escapar daquele inferno o mais depressa possível.


Aterrorizados, tomavam qualquer caminho, preocupados apenas em salvar a própria pele. Os que ficaram para trás estavam mortos ou muito feridos. Poucos oficiais ainda tentavam lutar e a situação tornara-se insustentável.


Os que tinham cavalo partiram a galope, com a Infantaria os seguindo em passos rápidos.


Lilian viu quando os soldados de Potter saíram de seus esconderijos e desceram para o vale, sob o comando de seu líder. Todos se apressavam em obedecer e vibravam de alegria, dando vivas a Tiago Potter.


Os vivas eram merecidos, pois fora uma surpreendente vitória. Depois da tensão daquelas horas, Lilian sentiu um grande alívio. As lágrimas começaram a lhe rolar pelo rosto, embargando-lhe a voz.


 


 


Algumas horas mais tarde, o major Black foi dizer a Lilian que o general esperava por ela. Embora feliz, Black estava com seu elegante uniforme bastante sujo, em seu rosto havia um corte e sua mão sangrava.


 Isto não e nada. Arranhei-me e machuquei a mão ao descer rapidamente sem o devido cuidado, por entre as pedras, na euforia de chegar logo à estrada.


 Conseguimos derrotá-los! — disse Lilian, excitada.


 Foi uma vitória memorável! — exclamou o major com os olhos brilhando. — E quem poderia conseguir esse feito inacreditável, a não ser o general?


 Perdemos muitos soldados?


 Poucos. Os que morreram expuseram-se sem necessidade. Há alguns feridos.


Lilian suspirou.


 Somente o general poderia ter planejado tudo com tanta perfeição, manter os soldados sob controle e segurar o fogo até o último instante — disse o major com euforia. — Não foi fácil. Os que nunca tiveram treino militar queriam atirar assim que viam o inimigo. Somente o respeito e a admiração que têm por Tiago Potter foi que os manteve sob controle.


Lilian estendeu a mão enluvada para o major Black e ambos iniciaram a descida pela encosta da montanha.


 É surpreendente, senhora! — disse o major a ela. — Sua aparência é a de quem acabou de sair do toucador Ao vê-la os soldados certamente atribuirão isso à sua origem sobrenatural.


 Estou contente por ter acompanhado as tropas. Teria enlouquecido se tivesse que permanecer em Zanthos, sem saber o que se passava aqui — ela replicou.


Se Lilian se sentia feliz por ter permanecido ao lado das forças de combate, os soldados, por seu lado, também se sentiam orgulhosos dela.


No vale, os homens estavam agrupados ao redor dos canhões, admirando-os felizes por terem em seu poder aquelas armas poderosas, que lhe asseguravam que não haveria retaliação.


Grande número de soldados recolhia os rifles deixados no chão, enquanto outros cuidavam dos feridos, fazendo o possível para deixá-los confortáveis.


 Vamos mandar veículos de Zanthos buscar os feridos, para que um médico cuide deles — disse o general com voz forte, que se sobressaía acima do vozerio excitado dos soldados.


Quando Lilian chegava à estrada, os soldados a viram, e, espontaneamente, manifestaram seu regozijo aclamando-a. Diante daquela demonstração calorosa, os olhos de Lilian se encheram de lágrimas.


Potter viu quando Lilian e o major Black chegavam, mas não se aproximou deles. Já os soldados cercaram-na ajoelhando para beijar sua mão.


Aquela homenagem deixou Lilian emocionada e ao mesmo tempo encabulada, porém ela não podia tomar qualquer outra atitude a não ser agradecer a cada um, no idioma do país.


Preocupada com o que Potter  poderia pensar ao ver a grande quantidade de soldados que a cercava, ela buscou o general com os olhos. Percebeu que ele observava a cena com uma expressão estranha no olhar, sem entender se ele a aprovava ou não.


Pouco depois, o major Black conduziu-a até um cavalo, e a ajudou a montar.


 Esses homens já a canonizaram, senhora — comentou o major em voz baixa. — Espero que aprecie a vida de santa!


Ao perceber que com o gracejo o major tentava aliviar-lhe a tensão, Lilian sorriu, permanecendo calada, sentindo-se profundamente comovida com a atitude dos soldados.


Após dar as últimas ordens às tropas, com um gesto, Potter pediu a Lilian que ficasse ao lado dele e, juntos, se postaram a frente da coluna de homens e canhões, na longa caminhada de volta a Zanthos.


Deliberadamente o general queria dar uma demonstração de força. Entraria na cidade com um exército superior ao que havia partido, e os cidadãos, confiantes no Exército Popular e em seu líder, aclamariam os homens que os haviam salvado da devastação que as tropas do rei provocariam.


Seguindo ao lado de Potter, Lilian o fitava constantemente, esperando que ele lhe dirigisse a palavra. Não havia, porém, oportunidade para isso, pois a todo instante alguém fazia alguma pergunta, ou então ele se distanciava, indo até o fim da coluna para dar ordens, falar com um ou outro oficial, ou verificar o avanço dos canhões.


Muito antes de alcançarem Zanthos, a notícia da vitória havia chegado até seus habitantes. A multidão foi ao encontro de seus heróis e as casas por onde passavam ostentavam bandeirolas.


A entrada da cidade, as aclamações eram incessantes. O povo atirava flores, numa alegria incontida. Gritos de boas-vindas saudavam os vencedores, e muitas pessoas, principalmente mulheres mais idosas, não conseguiram conter as lágrimas de felicidade.


Junto à praça central, o delírio era maior. A multidão às vezes impedia que o general e Lilian prosseguissem a caminhada, e todos queriam aproximar-se da esposa de Tiago Potter, beijar-lhe a bainha da roupa ou entregar-lhe flores.


Era impossível segurar as flores e as rédeas ao mesmo tempo. Então as flores caíam, mas eram imediatamente substituídas por outras.


Finalmente chegaram ao palácio. O grande pátio ficou lotado, e o general desmontou diante da escadaria principal do majestoso prédio. O major Black, que seguia logo atrás do casal, ajudou Lilian a desmontar. Potter deu o braço à esposa e, juntos, subiram os degraus. Do alto da escadaria, eles voltaram-se para o povo.


Lilian viu que a multidão enchia o pátio e a larga rua que conduzia à praça. Havia gente em cima dos muros e das árvores, e todos acenavam, gritavam e davam vivas. O conjunto de vozes soava como um hino de agradecimento subindo ao céu.


Lilian acenava com entusiasmo, e logo depois Potter tomou-a pelo braço conduzindo-a para o interior do palácio.


 Você deve estar cansada — disse ele. — Vá para seu quarto e descanse. Vou pedir para levarem-lhe algo para comer.


Estas eram as primeiras palavras que ele dirigia a ela, desde a madrugada em que a deixara, na gruta. Antes que pudesse responder, o general se afastou, cercado por um grupo de oficiais que desejavam receber instruções.


Apesar da grande felicidade que a invadia por causa da vitória, Lilian sentia-se exausta. Marlene  esperava por ela e, depois de uma reverência, beijou-lhe as mãos.


 Nós vencemos, senhora! — disse a aia, entre lágrimas, com a voz sufocada pela emoção. — Estamos livres, graças ao general e à senhora!


 Sim, nós vencemos. Agora sinto-me cansada e estou precisando de um banho. Depois dormirei um pouco.


 Deve descansar mesmo, senhora, pois terá muito o que fazer.


Foi-lhe preparado o banho ali mesmo. A água era levada para o quarto em grandes canecões de prata, onde se via gravado o brasão do rei.


Na água tépida e perfumada, Lilian relaxou e fechou os olhos, vencida pela exaustão.


Marlene  ajudou-a a sair e a enxugar-se. Lilian foi para a cama e adormeceu rapidamente.


 


 


Acordou sentindo-se revigorada, atenta e excitada. Tocou a sineta e Marlene apareceu imediatamente.


 Eu estava pensando em acordá-la, senhora. Está na hora de vestir-se para o jantar.


 Já é tão tarde assim? Dormi demais, e há tanta coisa para fazer e ouvir!


 A multidão está lá fora. Todos desejam vê-la. O general já foi diversas vezes acenar para seu povo, mas não quis que ninguém a despertasse.


 Ele também deve estar exausto.


 Duvido, senhora! — disse a aia sorrindo. — O general é conhecido como um homem incansável. Não sabia disso?


 Não!


 Certa vez ele visitava sua gente, nas montanhas, e encontrou um garotinho ferido, caído em um desfiladeiro. O menino era filho de um pastor, e machucara a perna. Teria morrido se Tiago Potter não o tivesse socorrido. Ele carregou o garoto nos braços durante três dias e três noites, até encontrar um médico que cuidasse da criança.


 Isso é extraordinário!


 O general é mesmo extraordinário. Ele não é como os outros homens, senhora... da mesma forma que a senhora não é como as outras ladies!


 Ora, não diga isso, Marlene! Sou uma pessoa comum, como qualquer outra.


 Ninguém neste país tem essa opinião. Ao vê-la, ontem, tão parecida com a ninfa da profecia, todos nós sabíamos que a senhora nos trouxe a vitória.


 Quem conquistou essa vitória não fui eu, mas o general!


 O general também, mas ficamos sabendo que salvou a vida dele, e se não fosse pela senhora, não teríamos vencido, nem estaríamos celebrando.


 Como soube disse? — perguntou Lilian, surpresa.


 O próprio general nos contou. Esta tarde ele apareceu diante do povo e disse que graças a você, ele estava vivo — explicou Marlene juntando as mãos. — Oh, senhora, agora compreende por que acreditamos que tenha sido enviada pelos deuses para nos trazer paz e felicidade?


Lilian não respondeu. Estava surpresa por Potter ter relatado o incidente ao povo.


Ele certamente não explicara os detalhes, para não dar a impressão de que se descuidara, a ponto de o inimigo chegar tão perto dele e quase tirar-lhe a vida.


Ao contrário, ele fizera dela uma heroína, o que exaltava ainda mais o sentimento respeitoso que o povo tinha por ela.


Será que ele lhe dedicava alguma afeição? Ela não ousava nem pensar na possibilidade que ele pudesse amá-la. É verdade que a beijara mas, afinal, isso não significava nada.


Qualquer homem, de partida para um combate, beijaria a mulher que estivesse ao seu lado, suplicando-lhe que tomasse cuidado. Aquele tinha sido um beijo de despedida, nada mais.


Ou teria Tiago sentido, como ela, a sensação maravilhosa de encontrar-se numa outra dimensão? Teria ele percebido a luz que os envolvera? Que chamas pareciam percorrer-lhe o corpo?


Era difícil saber. Nunca havia sido beijada antes e, portanto, não tinha nenhuma idéia sobre as sensações que o beijo de um homem poderiam despertar numa mulher.


Só uma certeza lhe ficara da experiência de ter sido beijada por Tiago: vivera uma emoção maravilhosa, além da imaginação, e nunca mais seria a mesma depois disso.


A simples lembrança daquele momento era como uma jóia preciosa alojada em seu peito. Talvez, a comparação que melhor se ajustasse fosse a da luz interior, sobre a qual seu pai sempre falava, mas que ela não compreendia até o momento em que fogo dos lábios do general a tocou.


"Amo-o tanto!", pensou. "Mas ele jamais saberá disso se não me amar também."


Um único pensamento não lhe saía da cabeça. Se ele a amasse, certamente teria conversado com ela ou, pelo menos, beijado sua mão antes de começarem a longa viagem de volta a Zanthos. Ele também teria dito algo já no palácio, diante da Multidão.


Mas enquanto ele lhe segurava a mão, ela sentira que o pensamento dele não se concentrava nela, mas naquele povo que o queria como seu novo rei.


E quando ela fora para o quarto, ele poderia subir até lá, para desejar-lhe ao menos que dormisse bem. Por que não o fizera?


Marlene perguntou-lhe se tinha fome ou sede, mas Lilian achou melhor aguardar o jantar, quando então esperava estar a sós com Tiago.


A ânsia de vê-lo aumentava a cada minuto, e só esse pensamento a dominava. Seria melhor arrumar-se rapidamente e estar pronta se ele mandasse alguém chamá-la, ou se ele mesmo viesse buscá-la.


 O que tenho para vestir, Marlene?


 Ajustei todas as roupas, deixando-as na sua medida.


 Como pôde fazer isso.


 Trabalhei o tempo todo. Na verdade, atravessei a noite costurando, senhora.


 Oh, Marlene, mas que absurdo! Deve estar exausta.


 Não podia dormir pensando que poderiam estar em perigo.


 Deveria saber que eu me achava em segurança ao lado do general — disse Lilian, comovida.


 É verdade, mas ele não estaria seguro sem a senhora!


Lilian não podia negar esse fato. Se ela não estivesse acordada ou olhando o vale sob a luz da lua, o inimigo teria entrada na gruta sem ninguém perceber.


 Creio que nós dois fomos protegidos por Deus.


 Vai haver uma cerimônia especial de ação de graças na catedral, depois de amanhã. O povo também deseja saber quando será a coroação, e espera que seja em breve.


 Coroação? — perguntou Lilian, surpresa.


 Tiago Potter é o verdadeiro herdeiro do trono! Seu pai reinou por quinze anos e seu avô durante duas décadas. Naquela época o país não era unificado como hoje e diversos príncipes governavam vastos territórios.


 O que aconteceu a esses príncipes?


 A maioria deles rebelou-se contra o rei Valter. Uns morreram em combate, outros foram executados.


 Não ficou nenhum vivo?


 Nenhum. Assim, Tiago Potter é o rei de toda a Kavónia.


Lilian susteve a respiração. Era ridículo pensar, mesmo por um instante, que ela poderia ser a rainha daquele país.


Catherine adoraria a pompa e o luxo de uma corte, mas Lilian achava que esse não era o tipo de vida que apreciaria. Além disso, não se sentia talhada para ser rainha.


Pela primeira vez lembrou-se de que para Tiago ela era apenas a sobrinha do duque e que ele nada mais sabia a seu respeito.


O duque dissera que jamais autorizaria o casamento da sobrinha, pois sua única irmã, a mãe de Lilian, cometera um ato considerado abominável ao misturar seu sangue nobre ao de um homem comum.


Consideraria Tiago Potter tal ato abominável? Afinal, ele era um nobre, um príncipe.


Lilian nunca pensara nele como um príncipe, até aquele momento. A imagem que guardara de Potter fora a de um camponês saindo de uma casa miserável para socorrer uma garotinha ferida, carregando-a, nos braços.


Seu uniforme normalmente não ostentava qualquer condecoração, a não ser quando se casaram. E Tiago Potter era um príncipe! Pertencia a uma dinastia tão ou mais antiga que a do rei Valter.


"Devo dizer-lhe a verdade sobre a minha origem", ela pensou, estremecendo ao imaginar qual seria a reação do marido.


Marlene esperava que Lilian escolhesse um dos vestidos. Havia muitos, todos lindos, roupas que ela jamais sonhara usar.


De repente, sentiu-se tímida, humilde, quase envergonhada de si mesma. Como poderia ela, a quem o tio considerava quase uma criada, estar naquele palácio, usar as roupas do enxoval da prima e enganar o príncipe Potter, fazendo-o pensar que ela fosse importante?


"Se ele soubesse quem eu sou, não teria sugerido que nos casássemos, ainda que apenas de nome", ela pensou, desalentada.


O general deixara bem claro que o casamento seria apenas um ato civil, fácil de ser anulado assim que terminasse a revolução. Entretanto, ele não supunha que a cerimônia religiosa seria celebrada na catedral, segundo o ritual ortodoxo, uma parte integrante da história e tradição daquele país.


"O que posso fazer?", pensou constrangida.


Manter o silêncio só pioraria a situação. Mais cedo ou mais tarde Tiago saberia a verdade... Alguém o informaria, ou o próprio duque, assim que soubesse do casamento, faria questão de tornar tudo o mais desagradável possível.


"Tio Septimus irá contar a verdade a Tiago?", pensou ela com um súbito tremor.


Isso seria o suficiente para Tiago Potter anular o casamento.


 Deve vestir-se, senhora! — interrompeu Marlene, ao perceber que Lilian ficara longo tempo olhando os vestidos no guarda-roupa, sem nada ver, envolta em seus pensamentos.


 Qual deles você acha que seria apropriado para a ocasião? — perguntou Lilian.


 Usando branco, como ontem, a senhora aparenta uma santa. Esta noite creio que deve parecer uma mulher para o seu marido. Acredito que seja esse o desejo dele.


Lilian não respondeu, e Marlene tirou do cabide um vestido de gaze em tom rosa suave.


Tal cor assentou-lhe incrivelmente bem, realçando-lhe os cabelos loiros e a pureza de sua pele de seda.


Lilian parecia um botão de rosa. Pequenos buquês enfeitavam a cauda de seu vestido, cuja blusa tinha dobras leves de gaze, que circundavam seus ombros nus.


Lilian mal se olhou no espelho, preocupada que estava com seus pensamentos. Marlene penteou-lhe os cabelos com arte e colocou um ramalhete de botões de rosa entreabertos na parte posterior de sua cabeça, sobre os cachos longos e bem-arrumados.


Assim que encerrou sua tarefa, a aia foi atender à porta, pois ouvira uma batida.


Voltou desapontada e disse:


 O general manda-lhe os cumprimentos, senhora, mas se acha ocupado demais esta noite para convidá-la a jantar em sua companhia. Seu jantar será servido aqui nos seus aposentos.


"Eu devia esperar por isso", Lilian pensou. "Agora não tenho mais qualquer utilidade para ele!". Marlene continuava falando.


 O general mandou dizer também que virá vê-la mais tarde, ainda esta noite.


 Compreendo.


A voz de Lilian soou sem o menor entusiasmo, pois a luminosidade fugira de seus olhos.


A batalha terminara. E, sem dúvida, ela fora a grande derrotada.

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.