CAPITULO IV
CAPÍTULO IV
Pela manhã, Marlene estava muito séria.
— O que aconteceu? — perguntou Lilian. — Você está escondendo alguma coisa de mim?
— Estamos todos preocupados, fraulein. Corre a notícia de que as tropas do rei vão atacar a cidade! — Marlene fez um gesto expressivo com as mãos. — Mas o povo fala demais.
— O general disse alguma coisa?
— Nada, fraulein. É isso que me faz pensar que tudo não passa de boato. É o medo que cria esses rumores. O povo acreditou que lady Petúnia era a princesa que viria do outro lado do mar para nos trazer paz e prosperidade.
— Você quer dizer que o primeiro-ministro disse isso ao povo.
— Sim, foi ele quem nos falou sobre essa antiga profecia — concordou Marlene.
Lilian vestiu-se e foi para a sala de estar. Ela gostaria que o general percebesse o quanto lhe era difícil ficar confinada naqueles dois cômodos, com um dia ensolarado lá fora e quando as flores estavam tão lindas.
Ela ansiava por andar pelos jardins, sentir-se livre daquela atmosfera pesada da suíte da rainha, com todos aqueles rostos dos Dursley nas telas, que pareciam olhá-la, censurando-a.
Era quase meio-dia, quando ouviu uma batida na porta. Pensou que fosse Marlene, trazendo-lhe o almoço.
— Entre! — disse em voz alta, sem virar a cabeça.
Só depois de ouvir passos muito próximos, voltou-se e viu Potter. Ali parada, com o sol que entrava pela janela envolvendo-a de luz e tornando mais brilhantes seus cabelos ruivos, ela exibia os grandes olhos, que pareciam ainda maiores pela ansiedade.
— Preciso falar com a senhorita.
O tom grave da voz dele tornou Lilian ainda mais apreensiva. Os dois caminharam até as poltronas de cetim que ficavam ao redor da estufa, que se encontrava apagada naquela época do ano.
Ele esperou Lilian ajeitar a saia do vestido de merino marrom e sentar-se. Sem dúvida, aquele vestido era pesado demais para um dia tão quente.
Depois de breve silêncio, como que escolhendo as palavras, ele disse:
— Tenho uma proposta a lhe fazer, Srta. Evans, e talvez a ache bem estranha. Espero que ao ouvi-la acredite que é de boa-fé.
— Sim, naturalmente.
Lilian olhava atentamente para o rosto dele, sem conseguir decifrar-lhe a expressão.
— As tropas do rei, comandadas por seus oficiais austríacos, pretendem atacar Zanthos.
— São muitas essas tropas?
— Nosso Exercito Popular tem muito mais soldados, mas nossas armas, infelizmente, são pouquíssimas... Nossos rifles são obsoletos e não temos canhões pesados.
Potter apertou os lábios e prosseguiu:
— O exército do rei tem as armas mais modernas que existem. Um ataque a Zanthos com armas poderosas poderia resultar em mortes de nossos cidadãos, especialmente mulheres e crianças.
— Então, o que poderá fazer?
— Pretendo interceptar as tropas do rei antes que alcancem a cidade, o que quer dizer que iremos enfrentar essas forças, que estarão partindo esta noite.
— Seria loucura enfrentá-las em campo aberto.
— É isso, Srta. Evans. Felizmente, a única estrada desta cidade até a Grécia é cercada de montanhas.
— Pretende armar emboscadas?
— Sim, e francamente acredito que essa seja nossa única chance. Expus-lhe meus planos, e deve manter absoluto segredo, não diga nada nem mesmo à sua criada.
— Jamais trairia sua confiança, general.
— Não confiei este segredo a ninguém mais, porque o que estou para fazer lhe diz respeito.
— Diz respeito a mim?
— Minha dificuldade é não saber o que fazer com a senhorita.
Lilian fixou nele os grandes olhos, mas o general virou um pouco o rosto e continuou:
— O que se passou ontem à noite foi lamentável, porém deve saber que coisas semelhantes acontecem freqüentemente quando se está em guerra.
Ao lembrar-se do terror que vivera, Lilian sentiu o rosto em fogo.
— O homem que quis violentá-la era de origem albanesa, e os albaneses, principalmente os mais rudes, que vivem nas montanhas, são em geral impetuosos e indisciplinados.
— Há muitos homens como ele em seu exército?
— Dou graças a Deus por qualquer homem que deseje seguir-me. Não importa que seja rude ou qual aparência tenha.
— Compreendo.
— Portanto, pode imaginar como é difícil deixá-laem segurança. Se formos derrotados, devo alertá-la sobre o comportamento dos mercenários.
Lilian susteve a respiração. Não havia necessidade de ele entrarem detalhes. Elahavia lido sobre saques, pilhagens e as loucuras cometidas pelos exércitos em guerra.
Os espólios de guerra eram a recompensa dos soldados, e estes achavam que as mulheres eram por direito, suas presas.
— Por favor... mantenha-me em lugar seguro — ela pediu trêmula.
— É o que desejo fazer. Há, porém, apenas um modo de garantir que nenhum dos soldados tocará um dedo na senhorita.
— E qual é esse modo?
— A senhorita deve pertencer a mim.
Embora Potter falasse em inglês, Lilian encarou-o, surpresa, como se não tivesse entendido o que ele acabara de dizer.
Receando que suas palavras fossem mal interpretadas, ele explicou depressa:
— Minha sugestão é que se torne minha esposa. Dessa forma estará segura, mesmo que eu não esteja por perto. Sei que nenhum dos meus homens ousará trair-me.
— Sua... esposa? — repetiu ela num fio de voz.
— Apenas de nome. Será um casamento civil, sob as leis da Kavónia, que poderei tornar sem efeito assim que restabelecermos a paz e eu passar a governar este país. Poderá então voltar à Inglaterra, e o pior que lhe terá acontecido será ser, de nome, a esposa de um revolucionário.
Tiago Potter levantou-se e começou a andar pela sala.
— É uma questão de tempo — ele continuou. — Não fosse a urgência, eu poderia tomar outras providências, mas na situação em que nos encontramos, é o que tenho a propor, embora minha sugestão possa causar-lhe algum embaraço.
Lilian achava-se imóvel.
— Eu... eu acredito, general, que tenha outra razão para pedir-me que me apresente como... sua esposa.
O general parou sua caminhada, de repente.
— Você é clarividente, Srta. Evans, ou alguém lhe falou sobre meus planos?
— Marlene disse-me apenas que o povo ficou aborrecido porque acreditava que Catherine era a princesa que viria do outro lado do mar trazer paz e prosperidade ao país.
— Foi muita astúcia do primeiro-ministro reviver essa velha lenda. Aliás, nossa história está associada a um grande número de lendas, à mitologia e a superstições.
— Mas não sou uma princesa — disse ela, lembrando-se de que Catherine havia respondido da mesma forma.
— O primeiro-ministro torceu a lenda para que se aplicasse aos interesses do rei. A tradução do grego, de uma antiga profecia que existe há centenas de anos, diz:
"Então um ninfa surgirá da espuma e salvará a luz, afastando a escuridão. O povo exultará e reinará a paz".
Lilian surpreendeu-se quando Potter disse a palavra "ninfa". Lembrou-se de que seu pai costumava dizer-lhe que ela não se parecia com a deusa Afrodite. Ela era, na verdade, a personificação de uma ninfa grega.
À lembrança do pai, Lilian sentiu que ele estava ao seu lado. Richard Evans a inspiraria quanto ao que devia responder; mais do que ninguém, eleja teria compreendido a necessidade do povo da Kavónia. Respirando fundo, ela disse:
— Farei o que me pede, mas... com uma condição.
— Qual é?
— Que eu possa acompanhá-lo quando sair de Zanthos.
Vendo o espanto de Potter e achando que ele iria se recusar a atender o pedido, ela explicou depressa:
— Não suportaria ficar sozinha neste palácio, sem saber o que está acontecendo, tentando imaginar se as tropas que irão retornar serão as suas ou as do rei.
Apesar de falar calmamente, a voz dela soou emocionada.
— Aceito seus termos — respondeu o general. — O casamento civil será realizadoem público. Isso deixará o povo contente, e todos acreditarão que a senhorita trará bons augúrios ao nosso país.
— Gostaria de poder fazer isso.
— Sei que compreende que os homens lutam com muito mais bravura quando têm fé no coração, em vez de ambição.
— É o que o senhor deve dar aos seus homens: fé.
— Farei isso com o seu auxílio.
— Quero ajudá-lo — disse Lilian levantando-se. — Sinto que este país foi feito para a felicidade.
Tiago Potter fitou-a demoradamente, e ela sentiu que ambos conversavam sem nenhum deles precisar dizer uma palavra. Depois de algum tempo, ele interrompeu a magia.
— Deixe-me reiterar, Srta. Evans, que pode confiarem mim. Nosso casamento nada mais será do que mera formalidade. Agradeço-lhe também por compreender que ele é necessário.
Curvou-se diante dela ao terminar de falar e saiu da sala sem olhar para trás.
Sozinha, Lilian pôs as mãos no rosto e sentiu-as trêmulas. Era tudo tão incrível! O que acontecera devia ser parte de um sonho! Entretanto, reconhecia que Potter agia com prudência.
Ela própria constatara que o povo erguera o retrato de Catherine ao recebê-la, e que a nova rainha parecia significar muito para os habitantes de Kavónia. O ministro havia sido extremamente astuto ao assegurar popularmente o sucesso do casamento do rei, associando sua noiva à jovem da antiga profecia.
A fuga de Petúnia poderia fazer o povo perder as esperanças de gozar paz e prosperidade. Por isso era necessário que todos acreditassem ser Lilian a verdadeira ninfa que iria realmente ajudá-los.
A lenda da Kavónia era semelhante às lindas histórias que Richard Evans costumava ler para a filha, em grego.
Assim como Afrodite, a ninfa de Kavónia também iria surgir da espuma, e na mente do povo ela seria, sem dúvida, a deusa do amor, da prosperidade e da fertilidade.
"Sendo governados pelo general Potter, os habitantes deste país terão todas estas coisas", pensou Lilian.
Com um estremecimento, ela se lembrou de que as forças do rei eram equipadas com rifles modernos e canhões pesados.
Lilian achava-se ainda de pé na sala de estar, pensando no que havia acontecido, quando Marlene entrou e foi correndo ao seu encontro.
— É verdade, fraulein? É verdade que vai casar-se com o general esta tarde?
— É verdade!
— Não posso acreditar, fraulein! É uma notícia maravilhosa! É exatamente o que desejei para a senhorita!
— Como soube a respeito do casamento?
— O próprio general contou-me, e agora ele vai para a praça anunciar ao povo. Essa notícia vai deixar todos muito felizes. Nossa gente adora casamentos, e ficaram desapontados por não se realizar o casamento do rei.
"Pelo menos não haverá uma cerimônia católica na catedral ortodoxa", pensou Lilian.
— Marlene, não tenho o que vestir! — disse ela em voz alta.
— Como não? O guarda-roupa está cheio de vestidos, e há o lindíssimo vestido de noiva.
— Naturalmente! — exclamou Lilian, lembrando-se de que a prima deixara quase tudo o que possuía para trás. —Acho que os vestidos de Petúnia me servem.
Ao dizer isso, imaginou a reação da tia se soubesse que o maravilhoso vestido de noiva da filha iria ser usado para que a sobrinha se casasse com um revolucionário.
Lilian lembrou-se também das palavras do tio, que lhe dissera que jamais daria permissão a ela para casar-se.
"Este é um casamento diferente!", pensou. "O general não está interessado em mim como mulher. Ele quer apenas confirmar a antiga profecia, para que seus soldados lutem com mais valentia."
O casamento seria dissolvido assim que terminasse a guerra. Mas era melhor não pensar em tais detalhes no momento. O importante era que todos acreditassem que ela era a verdadeira ninfa da profecia.
— Vamos pegar o vestido de noiva, Marlene.
A criada foi até o quarto, tirou-o do guarda-roupa e o apresentou a Lilian, dizendo:
— Será preciso apenas apertar um pouco a cintura, e eu mesmo farei isso, fraulein, com a maior facilidade.
Aquele era um dos mais lindos e luxuosos vestidos que Lilian já havia visto e custara um preço astronômico.
Era de crepe branco com um drapejado de tule na frente da saia; com as pontas puxadas para trás, sobre as anquinhas que caíam em uma cascata de babadinhos, terminando numa longa cauda. A parte superior da blusa tinha um amplo decote circundado de tule, e de trás saíam duas largas tiras de cetim que davam um nó, e cujas pontas desciam acompanhando a saia. Pequenos buquês de flores de laranjeira, fitas de cetim e pedrinhas brilhantes enfeitavam o vestido, fazendo-o cintilar.
Olhando para aquele traje rico e excessivamente enfeitado, Lilian achou que ele era mais próprio a uma rainha, e não lhe conferiria aparência de ninfa.
— Ficaria muita grata se você pudesse ajustar a cintura do vestido e tirar dele todas as flores e fitas.
— Mas, fraulein, elas são maravilhosas!
— São enfeites demais — disse Lilian a com firmeza.
— Farei como quer, fraulein, mas é uma pena.
Lilian não ouviu, pois estava tirando de uma das gavetas o pesado véu de renda de Prtúnia. Ele seria usado preso à cabeça pela tiara de diamantes da duquesa, que a prima trouxera para a Kavónia, porém esquecera de levar quando fugira apressada do palácio.
Mas Lilian não quis usar o véu de renda nem a tiara, pois achava que ambos eram muito pesados e luxuosos.
— Tenho uma idéia, Marlene! — ela exclamou, ao abrir a gaveta inferior do guarda-roupa.
A duquesa, com sua habitual economia, havia incluído na bagagem diversos rolos de tecidos para substituir ou principalmente consertar a cauda dos vestidos de Petúnia, caso rasgassem ou ficassem sujas. Lilian, sendo muito habilidosa, poderia fazer novos babados para substituir os que fossem removidos.
Ela tirou da gaveta uma peça de tule e colocou-a ao lado do vestido estendido sobre a cama.
Assim que Marlene terminou de ver os ajustes e tirar o excesso de enfeites do vestido, Lilian experimentou-o. Mal pôde se reconhecer no espelho.
Nunca imaginara que sua cintura fosse tão fina ou que a curvatura de seu busto pequeno fosse tão perfeita. A pele do pescoço, muito alva e sem manchas, tinha um brilho de seda.
Aquele lindo traje de noiva, sem brilhos e sem excesso de enfeites, tornava a figura refletida no espelho mais jovem, inocente e pura. O longo véu de tule ondulante fazia dela uma verdadeira "ninfa surgindo da espuma".
Sob a orientação de Lilian, Marlene prendeu o longo véu de tule com uma grinalda que fizera com flores de laranjeiras.
— Está linda, fraulein! — exclamou a criada com admiração, depois que viu Lilian pronta. — Além de parecer uma noiva, parece também uma das santas da catedral.
"É exatamente assim que desejo estar", pensou Lilian.
Tão logo lhe avisaram que Potter a esperava, Lilian foi caminhando lentamente pelo largo corredor, sentindo, pela primeira vez na vida, o farfalhar do vestido de seda.
No alto da majestosa escada principal, ela apoiou a mão na balaustrada e viu Potter, de pé, no hall.
Ele usava o uniforme verde do Exército da Kavónia. Sua túnica ostentava as dragonas, e de um lado pendia a fita vermelha de uma ordem religiosa.
Potter ergueu a cabeça e acompanhou Lilian com os olhos enquanto ela descia a escada. Ao chegar diante dele, ela notou que a expressão dos olhos do general não continha desprezo, como antes. Ele a fitava com admiração, e depois de um longo momento, ergueu-lhe a mão enluvada, levando-a aos lábios.
— Está exatamente como esperei que estivesse.
Lilian aceitou aquelas palavras como um elogio, esperando que ele a tivesse achado bonita.
Em uma das mãos ela segurava um buquê de rosas brancas que Marlene lhe dera no último instante.
Frente ao palácio havia uma carruagem aberta, toda enfeitada com flores. Até os soberbos cavalos que a conduziam ostentavam flores ao redor do pescoço e do cabresto.
Acomodados na carruagem, eles seguiram pela rua larga e longa que levava até à praça, onde a multidão compacta a fez lembrar-se do diaem que Catherinechegara.
Havia, porém, uma diferença: as saudações pareciam sinceras, vindas do coração, e havia sorrisos em todos os rostos.
No centro da praça fora erguida uma plataforma. Ali se achava o prefeito de Zanthos, resplendente em seu manto carmesim e uma corrente de ouro ao redor do pescoço.
Era curto o caminho entre a carruagem e a plataforma. O general deu o braço à noiva e ambos caminharam lentamente sobre um tapete vermelho, enquanto o povo se ajoelhava.
Lilian não podia acreditar no que estava acontecendo. Todavia, era inegável que toda aquela gente reverenciava Tiago Potter como seu líder.
Chegando à plataforma, Lilian sentiu-se, pela primeira vez, desde que deixara o palácio, subitamente nervosa.
Talvez por sentir o tremor de suas mãos ou por ser muito sensível, Potter olhou para ela e sorriu.
— Você está dando fé e esperança ao meu povo — ele murmurou para que apenas ela ouvisse.
Tais palavras foram suficientes para Lilian acalmar-se. Deixou de pensar em si mesma, para pensar no povo.
Em breve discurso, o prefeito dirigiu-se à multidão. Disse que o general era o líder que todos os habitantes esperavam para conduzi-los no caminho da paz e da prosperidade, como havia feito a família Potter durante séculos.
Naquele momento, o coração de cada um exultava e se unia ao do general no dia mais feliz de sua vida.
Durante o tempo que o prefeito discursou, o povo manteve-se em completo e respeitoso silêncio.
Em seguida, ele dirigiu-se a Tiago Potter:
— Precisamos apenas de sua assinatura, general.
— Acredito que primeiro devemos fazer nossos votos diante de Vossa Excelência.
— Tenho ótimas notícias. Assim que anunciou que eu deveria oficializar seu casamento civil, enviei uma carta ao mosteiro e o arcebispo voltou à cidade! Agora, o casamento poderá ser realizado na catedral. O arcebispo os espera.
Lilian sentiu que Potter ficava tenso, quase paralisado. Ela mesma mal podia respirar.
Então, num gesto automático, ele colocou seu nome no registro de casamento civil, e Lilian fez o mesmo com os dedos trêmulos.
O prefeito dirigiu-se novamente à multidão silenciosa.
— Meus filhos, Tiago Potter, que voltou para governar este país, acaba de assinar seu casamento civil, de acordo com a lei da Kavónia. Agora ele e sua noiva, a Srta. Lilian Evans, unir-se-ão de acordo com a nossa fé e a fé de nossos ancestrais. Nosso amado arcebispo espera pelos noivos na catedral, para onde irão nesse instante, a fim de receber as bênçãos de Deus.
Houve grande aclamação de alegria, que pareceu ecoar até o céu.
Lilian e Tiago Potter dirigiram-se com firmeza, andando por sobre o tapete vermelho, até a catedral, no outro extremo da praça.
Enquanto passavam entre o povo que se ajoelhava, Potter disse em voz bem baixa:
— Perdoe-me! Não foi isso que planejei, mas no momento nada posso fazer.
— Não, claro que não!
Era impossível dizer qualquer outra coisa, e ambos continuaram caminhando por entre a multidão que exultava, até chegarem à catedral, onde muitos sacerdotes esperavam por eles.
Lilian nunca estivera no interior de uma igreja ortodoxa grega, mas seu pai lhe havia falado sobre elas. A profusão de velas e o cheiro de incenso lhe pareceram familiares.
À medida que os noivos iam subindo pela nave, o povo entrava na catedral, atrás deles. Lilian não pôde deixar de pensar que o casamento do rei Ferdinand e de Catherine teria sido bem diferente, com os convidados austríacos e os altos funcionários vestindo seus trajes mais elegantes e os militares, com seus uniformes vermelhos e dourados cobertos de condecorações.
O arcebispo achava-se diante do altar, e a catedral encheu-se com as vozes maviosas e suaves do coro.
Lilian entregou o buquê a um dos organizadores da cerimônia e tirou as luvas. Sentindo-se nervosa e até amedrontada, pôs sua mão sobre a de Potter, como se fosse uma criança procurando apoio.
O general apertou a mão dela e Lilian sentiu o mesmo conforto que desfrutara quando ele a carregou, depois que o soldado a atacara.
A cerimônia, celebrada em grego foi maravilhosa, o que fez Lilian pensar no pai, querendo tê-lo ali para presenciar seu casamento.
Também veio-lhe à mente que aquele era um casamento estranho, realizado sob estranhas circunstâncias. Todavia, seu pai certamente o aprovaria.
Naquele instante o arcebispo abençoava as duas grinaldas de flores e fitas, postas na cabeça de Potter e na dela. Depois suas mãos se juntaram, e ele pôs a aliança no dedo da jovem que se tornava sua esposa.
As últimas palavras do arcebispo foram ditas em voz solene, para dar-lhes a bênção final. Então o órgão irrompeu, enchendo a catedral com o som vibrante da Marcha Nupcial, e os recém-casados desceram pela nave, em direção ao sol do fim da tarde, que entrava pela porta oeste da catedral.
A aclamação e os vivas da multidão não permitiam que eles conversassem. Quando saíram da catedral e se dirigiam para a carruagem atiraram-lhes flores e eles se viram cercados de botões perfumados.
Ao chegarem aos jardins do palácio, já distantes da multidão foi que Lilian fitou Potter pela primeira vez após a cerimônia do casamento.
Ele também a olhava e sua expressão era incompreensível.
— Juro-lhe que eu não sabia que o arcebispo voltaria a Zanthos para a cerimônia — disse com voz profunda.
Lilian nada respondeu, ele prosseguiu:
— Como você não tem a mesma religião que eu, encontraremos um jeito de anular este casamento mais tarde.
Antes que Lilian dissesse qualquer coisa, eles se acharam diante do palácio. Ali, funcionários e soldados os esperavam, tudo muito diferente da recepção que tivera Catherine. Todavia, todos foram sinceros ao apresentarem suas congratulações.
Diversas mulheres se ajoelharam para beijar as mãos de Lilian, enquanto outras erguiam a barra do vestido seu e a levavam aos lábios.
No hall, Tiago Potter disse a Lilian:
— Naturalmente você compreende que temos muito o que fazer antes de deixarmos a cidade. Poderá estar pronta às oito horas, usando traje de montaria? Até então, aconselho-a a descansar.
— Sim, naturalmente.
Ele ergueu a mão dela, levando aos lábios. O impulso de Lilian foi de abraçar o general e não deixá-lo afastar-se.
Entretanto, um segundo depois, ela subia as escadas, tendo Marlene ao seu lado.
Não havia anoitecido completamente quando eles deixaram a cidade, embora o sol agonizasse, tingindo de rubro e dourado o céu, para além das montanhas.
Os soldados partiram e os que ficaram desejaram a eles votos de boa sorte e de breve retorno.
Os soldados não se moviam em fileiras organizadas e elegantes, como os austríacos. Seguiam sem qualquer formação, conversando. A maioria ia a pé. Apenas alguns oficiais iam a cavalo, como Potter e Lilian, que se achava ao seu lado.
Não havia dúvida de que aqueles soldados eram o oposto das tropas austríacas, conduzidas por oficiais elegantes, empertigados e orgulhosos, quase insolentes.
Não querendo usar um traje surrado, Lilian escolhera um de Petúnia. Era uma montaria de verão rosa - pálido, enfeitado com galões brancos. Apesar de não se achar vestida apropriadamente para acompanhar tropas, ela lembrou de que era também um símbolo para o povo e o Exército e, certamente, todos apreciariam sua roupa elegante.
Realmente, os soldados olharam-na com aprovação, respeitosamente. Quanto a Potter, não pôde perceber sua opinião, pois ele estava ocupado demais, dando ordens e instruções.
O general e seus homens partiram, embora a cidade fosse ficando repleta de camponeses e animais.
A praça do mercado, onde se celebrou a cerimônia do casamento civil, enchia-se cada vez mais de pessoas, carneiros, cabras e vacas. Os animais baliam, berravam, mugiam, protestando contra aquele local estranho. O barulho era cada vez mais ensurdecedor.
Cavalgando ao lado de Potter, Lilian teve a impressão de que ele se sentia embaraçado com a volta do arcebispo e a cerimônia por ele celebrada e até então não conseguira dominar a situação. Ela sabia instintivamente que ele era um homem religioso.
Quando ambos se ajoelharam diante do arcebispo, frente ao lindo altar revestido de prata, Lilian sentiu em Tiago além de reverência, uma grande elevação espiritual.
"Poderia ele sentir-se livre depois de casar-se em tais circunstâncias?", pensou ela.
Entretanto, talvez nada mais o perturbasse a não ser o combate que teriam pela frente.
A escuridão veio depressa após o pôr-do-sol. Havia uma meia-lua no céu, e as estrelas brilhavam acima dos altos picos das montanhas.
Com a chegada da noite a temperatura caiu, e Lilian ficou contente por Marlene ter insistido em colocar na traseira da sela um pesado casaco forrado de pele de carneiro. Assim que pararam no sopé de uma montanha, um oficial colocou o agasalho sobre os ombros de Lilian.
Surpresa, ela reconheceu o capitão Black!
— Você está conosco! — ela exclamou impulsivamente. — Fico muito feliz em saber disso!
— E poderia estar em outro lugar? — ele perguntou com um sorriso.
— Desde que cheguei a Zanthos tenho desejado vê-lo.
— Ando ocupadíssimo, trabalhando para o general.
— Mesmo no palácio, esteve em contato com ele?
— Sim. Tiago Potter convenceu-me de que eu seria mais útil a nossa causa permanecendo lá.
— Compreendo.
E quanto conversavam, um soldado aproximou-se e disse:
— O general deseja falar-lhe, major.
— Major!
— Fui promovido — ele explicou. — Devo dizer-lhe que considerei a promoção merecida, depois de tudo o que tive que suportar durante todos estes anos!
O major sorriu e afastou-se. Lilian sentou-se, esperando as ordens de Potter para prosseguir a viagem.
Uma hora mais tarde encontravam-se em uma gruta, entre as montanhas. Lilian sentia no ar o cheiro de animais selvagens, mas tudo estava muito limpo e o chão era arenoso.
Dali, ela tinha diante dos olhos a estrada serpeante e o vale. O exército do rei certamente passaria por ali, em direção a Zanthos.
As inúmeras grutas, gargantas, pedras recortadas irregularmente e as fendas das montanhas permitiam que muitos homens ficassem escondidos, sem que fossem descobertos.
Na caverna, um soldado colocou um cobertor no chão, perto de Lilian e estendeu um segundo num canto, próximo dela.
— É para o general? — ela perguntou.
— Sim, Excelência.
O soldado colocou um telescópio e outros objetos sobre o cobertor destinado a Potter, fez uma saudação e saiu, deixando Lilian sozinha.
Ela tirou o casaco, sentou-se no cobertor e ficou aguardando a chegada do marido.
Era quase meia-noite e ela sabia que lhe seria impossível dormir. Sentia-se tensa e apreensiva com o que pudesse acontecer até o raiar do dia. Potter devia estar do outro lado do vale, determinando a posição de seus homens, e era mais provável que nem voltasse para a gruta.
Entretanto, lá pelas duas da madrugada, quando a lua já ia baixa no céu, ele apareceu subitamente.
— Você está bem? — perguntou.
— Estava preocupada com você.
— Já fiz tudo o que era necessário. Os homens estão postados em posições estratégicas — disse, sentando-se no cobertor. — Só nos resta esperar. Dei ordens expressas para ninguém sair de seus lugares, pois o inimigo pode mandar batedores, que descobrirão onde estamos.
— Foi uma medida sensata.
— Tenho algo para você.
— Para mim? O que é?
— Uma pistola! Você deve andar sempre armada. Sabe atirar?
— Sim. Eu costumava atirar em um alvo, no jardim de minha casa, com uma velha pistola que papai herdara de seu avô.
— Espero que não precise usar isto — disse Potter, entregando-lhe a arma. — Mas é bom conservar a pistola com você, para o caso de alguma necessidade.
Ao pegar a arma, Lilian pensou sem emoção que, se acontecesse "algo errado", o melhor seria usar a arma contra si mesma.
— Está carregada — advertiu o general.
— Terei muito cuidado.
Ela colocou a arma sobre o cobertor.
— Acho melhor que você durma um pouco, Lilian. Eu pretendo fazer o mesmo. Amanhã será um dia difícil.
— Você deve dormir mesmo. Tudo depende de você.
— Pensei exatamente nisso durante a cerimônia de nosso casamento. Nem precisava dizer que você foi maravilhosa. Significou muito para o meu povo acreditar que você veio em seu auxílio no momento mais crucial de suas vidas.
O tom emocionado de Potter deixou Lilian extremamente feliz.
— Obrigada.
— Boa noite, Lilian — disse ele, deitando-se no cobertor.
A vontade de Lilian era pedir-lhe que continuasse conversando com ela, pois ela gostaria de saber tantas coisas, havia tanto o que ouvir! Mas também era imperioso que ele descansasse para recuperar a energia.
Potter trabalhara o dia todo, e somente dormindo durante algumas horas estaria pronto para liderar o exército. Como ele mesmo dissera, aquele era o momento mais crucial para o povo da Kavónia.
"Oh, Deus, permita que ele vença!", ela rezou.
Ao invés de deitar-se de costas, Lilian postou-se de bruços, para melhor apreciar a luz da lua que banhava o vale. Erguendo os olhos, ela via os picos mais altos das montanhas, cobertos de neve.
Aqueles cumes apontavam para o céu. Talvez os deuses estivessem com eles no dia seguinte, e os espíritos que habitavam as montanhas e as cascatas que se precipitavam de suas encostas, incentivariam os soldados a conquistar a paz e a felicidade para a Kavónia.
Lilian não tinha sono. Era importante orar, e suas preces certamente seriam atendidas.
"Ajude-nos papai", pediu. "Mostre a Tiago o que é certo fazer. Ajude-o a vencer seus inimigos."
O silêncio era completo. A beleza e a paz da noite pertenciam a um outro mundo. Envolta na magia daquele momento, Lilian esqueceu-se dos homens com suas armas, preparados para emboscadas.
O general dormia tranquilamente e Lilian desejou que a gruta fosse mais clara para ela admirar melhor aquele rosto perfeito de Apolo.
De repente um leve ruído a assustou. "Talvez seja algum pequeno animal andando por entre as pedras, ou mesmo uma cobra", pensou. Mas o que viu, incrédula, foi a sombra de um homem!
Ele movia-se abaixo da gruta, arrastando-se sobre as rochas e devagar, quase silenciosamente, subia em direção a Lilian e Tiago.
Como um relâmpago, passou pela cabeça dela que talvez fosse um soldado trazendo alguma mensagem ao seu líder. Indecisa se deveria ou não chamar Potter, ela viu então que o homem trazia na mão uma faca grande e pontuda!
A lâmina brilhou à luz da lua. Não era um mensageiro, mas sim um inimigo!
Sem pensar, instintivamente, Lilian esticou a mão e apanhou a pistola que Tiago lhe dera. O homem agora se encontrava na entrada da gruta. Então, ela atirou.
O estampido ecoou pela gruta e Potter acordou, surpreso, enquanto o inimigo caía para trás, rolando com as pedras, pela encosta da montanha.
— O que aconteceu? Por que atirou? — perguntou Tiago.
Foi então que ele viu, na entrada da gruta, a faca. Sua lâmina brilhava sob a luz da lua e Lilian não precisou dar qualquer explicação.
Potter desceu a encosta até o local onde se encontrava o corpo do homem, enquanto Lilian trêmula, buscava um lugar para sentar-se. Para ela, ter matado um homem não significou o horror que imaginara ser, pois, na verdade, tinha a impressão de que não fora ela quem atirara.
Potter voltou para a gruta, apanhou a pistola caída no chão e recarregou-a.
— Você salvou a minha vida — ele disse com voz calma.
— Quem era aquele homem?
— Um dos batedores do exército do rei.
— Acha que já sabem que nos encontramos aqui?
— Creio que não. O homem deve ter-nos visto chegar, e ao invés de avisar os oficiais sobre a nossa posição, achou mais vantajoso matar-me e reclamar a recompensa oferecida pela minha cabeça.
— Crê que ainda será possível surpreender o inimigo?
— Tenho fé que sim.
Lilian deitou-se e fechou os olhos. A sua mente vieram palavras da profecia.
"...uma ninfa salvará a luz, afastará a escuridão..."
Se ela fosse a ninfa, Tiago Potter deveria ser a luz da Kavónia. Salvando-o, afastara a escuridão da morte. Ou, talvez, a escuridão significasse viver sob o jugo do inimigo.
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