CAPITULO III
CAPÍTULO III
Impaciente e gritando, Petúnia descalçou as longas luvas que usava, atirando-as no chão.
— Depressa, Lilian! Tire meu vestido... depressa, sua idiota!
Não havia nem sinal das criadas. Depois de ajudar a prima a despir-se, Lilian correu até o guarda-roupa, para pegar um traje de montaria. O primeiro que tirou do cabide era cor-de-rosa vivo, e Petúnia berrou:
— Escolha outra cor, sua tonta! Não quero servir de alvo para um tiro. Arranje algo mais escuro.
Mais do que depressa Lilian pegou um conjunto de veludo azul-safira e ajudou a prima a vestir-se.
— Como pode ser tão lerda? — reclamava Petúnia. — Vamos, ande, pegue minhas botas! Minhas luvas! Meu chapéu! Também quero levar minhas jóias. Oh, pelo amor de Deus! Como pode uma pessoa ser tão incompetente?
Sempre ofendendo a prima e sem parar de se mexer, o que dificultava o trabalho de abotoar seu traje de montaria, Petúnia viu-se, finalmente, pronta. Indo para o espelho, ela colocou um chapéu de copa alta cercado por um véu.
— Não sei o que fazem essas tropas para deixarem que esses revolucionários cheguem a constituir uma ameaça.
— Sua Majestade esperava algum tipo de insurreição?
— Ele apenas me disse que talvez houvesse alguma agitação, porém jamais pensei que minha vida corresse perigo! — respondeu Petúnia com horror. — Oh, Lilian, estou arrependida de ter vindo para este país. Neste momento queria estar na Inglaterra. Estou com medo!
— Tenho certeza de que tudo ficará bem — disse Lilian, acalmando-a. — O rei cuidará de você. Afinal, ele está querendo levá-la para um lugar seguro. Certamente toda a guarda pessoal cuidará de vocês.
— Tem razão. E são todos austríacos — disse Prtúnia com alívio. — O rei me disse que escolheu sua guarda pessoal com muito cuidado e confia em todos eles.
— Então estará protegida. Logo estará de volta!
— Para onde iremos? — perguntou Petúnia, trêmula de medo. — E se eu for ferida?
— Asseguro-lhe que Sua Majestade cuidará de você e não permitirá que nada lhe aconteça.
Catherine ia responder, mas o duque gritou da sala de estar:
— Está pronta, minha filha?
— Já vou indo, papai — respondeu ela, pegando as luvas.
Correu até a porta e entrou na sala sem dizer ao menos adeus para a prima. Ao ver a filha, o duque resmungou:
— Não posso entender por que as mulheres demoram tanto para trocar de roupa. Vamos! O rei nos espera.
— Vem conosco, papai?
— Sim, claro. Agora, ande depressa. Os cavalos nos esperam junto à porta lateral.
Lilian não ouviu mais nada da conversa dos dois, e olhou para a desordem que Catherine deixara atrás de si: o vestido, as anáguas, os sapatos, as longas luvas brancas, a grinalda que usara, tudo jazia no chão. Sobre uma cadeira estava o traje de equitação cor-de-rosa que Lilian tirara do guarda-roupa. As gavetas de cima da penteadeira estavam todas abertas e os artigos de toucador achavam-se todos espalhados, pois Catherine os empurrara enquanto ia juntando as jóias e jogando-as dentro dos bolsos.
Automaticamente, Lilian foi pegando os objetos um a um e os colocou em seus devidos lugares, enquanto imaginava que talvez o rei estivesse levando Catherine para a Grécia.
Zanthos ficava a apenas duas horas da fronteira com aquele país. Se ele quisesse ir para a Albânia, seria uma viagem muito longa e bem mais difícil.
Tendo visto ainda no castelo um mapa da Kavónia, Lilian estudara sua topografia e percebera que as montanhas que cercavam o país eram quase inacessíveis, junto à fronteira com a Albânia.
Essa era, sem dúvida, a razão por que os turcos jamais tentaram anexar a Kavónia ao Império Otomano.
O rei certamente não tomaria a estrada principal para chegar até o porto, pois ela deveria estar cercada. O mais seguro seria cavalgar pelo interior do país. Lilian não conseguia imaginar quantas pessoas estariam acompanhando o rei, além de sua noiva e o duque.
Ela não se ressentia por ter sido deixada para trás. Afinal, como dissera o tio, sendo inglesa, ninguém iria atirar nela. Pensando nisso, disse a si mesma com um sorriso que talvez fosse melhor enrolar-se na bandeira inglesa. Ao mesmo tempo, viu que talvez sua situação não fosse nada divertida. Ao contrário, era bem assustadora.
Afastando esse pensamento, Lilian achou que apesar da indiferença do tio em relação ao que pudesse lhe acontecer, teria, sem dúvida, instruído alguém no palácio para cuidar dela. Ali havia numerosos oficiais além do pessoal da corte, e ninguém haveria de ofender a futura rainha, negligenciando os cuidados com sua prima.
"Não adianta ir procurar alguém agora", ela pensou. "Todos sabem que estou aqui e, certamente, quando a situação lá fora estiver calma, alguém virá dizer-me o que fazer."
Tendo deixado o quarto de Catherine em ordem, foi até a sala de estar e, pela primeira vez, pensou que aquela era uma excelente oportunidade para explorar a suíte real.
Os aposentos do rei e da rainha se comunicavam e por isso não havia necessidade de passar pelo corredor, onde ficavam as sentinelas de guarda.
Lilian abriu a porta sem fazer barulho e entrou em uma bonita antecâmara, um cômodo pequeno mas ricamente decorado, com uma bela coleção de porcelana de Meissen.
Decidindo que voltaria a examinar cuidadosamente todo o aposento quanto tivesse tempo, abriu uma porta do outro lado da antecâmara que dava para a sala de estar do rei. Maior e mais austera que a da rainha, nela havia uma enorme escrivaninha com fechaduras douradas, sobre a qual repousava um maravilhoso tinteiro de ouro.
Duas paredes da sala estavam cobertas com finas tapeçarias e as outras duas exibiam telas de todos os Dursley. Para Lilian todos eles tinham o mesmo ar distante e desdenhoso que caracterizava o rei Valter.
De um lado da cornija da lareira achava-se o retrato da imperatriz Elizabeth, sempre louvada como a mulher mais linda da Europa. Dizia-se que ela se sentia infeliz na corte de Viena, por ser esta rígida e restritiva.
Admirando o lindo rosto da imperatriz, Lilian sentiu um pouco de pena de Elizabeth, achando que talvez o imperador Francisco José fosse tão pomposo quanto o rei Ferdinand.
Andando pelo aposento, ela aproximou-se da escrivaninha, imaginando se o rei havia alguma vez assinado ali algum ato de clemência em favor de algum de seus súditos.
Desde que chegara à Kavónia, Lilian sentia que a corte vivia completamente isolada do povo. Vinha-lhe sempre à mente a triste pobreza da casa para onde fora levada a criança atropelada, as ruas sujas e miseráveis, as janelas e portas fechadas, o que era um contraste marcante em relação ao resto da cidade. Sua vontade era conversar com o capitão Black sobre o que se passara, mas desde que chegara a Zanthos não tivera oportunidade de estar a sós com ele. Não havia dúvida de que ele reconhecera Tiago Potter imediatamente.
Lilian lembrava-se de que o capitão sussurrara:
— "Está louco? Se o reconhecerem, receberá um tiro!"
Tanto Black como o Exército teriam certamente recebido ordens para atirar no revolucionário, assim que o avistassem. No entanto, Tiago tivera coragem de se arriscar, fazendo-se passar pelo pai da criança.
"Será que Tiago é mesmo o pai da criança?", pensou Lilian, mas ao mesmo tempo isso pareceu-lhe improvável.
A menina ferida era atraente como toda criança, mas não tinha os lindos traços que seria de se esperar da filha de um homem belo como ele.
No entanto, se não havia parentesco com a criança, por que teria Tiago Potter se preocupado tanto com ela, a ponto de arriscar-se daquela forma?
A única explicação para isso, pensou Lilian, era que ele se considerava responsável pela gente que o apoiava. Era tudo muito intrigante, e naquele momento Potter devia ter sob seu comando uma grande força popular capaz de amedrontar o rei, a ponto de fazê-lo deixar o palácio, ao invés de reunir seu exército para atacar o inimigo.
Ao ouvir as batidas do relógio sobre a cornija da lareira, Lilian percebeu que já era tarde, passava das onze horas. Ninguém viera buscá-la. Era possível que o tio tivesse esquecido de recomendar que cuidassem dela. Quanto aos oficiais e aos cortesãos, ou teriam ido dormir ou também haviam abandonado o palácio.
Teria todo o pessoal partido? Lilian não pensara nessa possibilidade, até a achava improvável, mas a verdade é que o prédio achava-se singularmente silencioso.
Ela foi até uma das janelas e afastou as pesadas cortinas de veludo para olhar para fora. A sala onde estava dava para o jardim lateral, e tudo o que ela viu foram estátuas meio encobertas pela sombra e o céu coalhado de estrelas.
Ficou olhando para o alto, imaginando como o mundo parecia pequeno e insignificante sob aquele céu estrelado. Talvez existisse um céu como aquele em outros mundos distantes, entre os quais não devia haver comunicação.
Todavia, ela sentia a presença dos pais. Seu pai não podia ignorar que ela se encontrava muito perto da Grécia, terra que ele amara mais do que qualquer outra.
"O que quer que aconteça, papai", ela sussurrou, "não terei medo, não serei covarde e não gritarei, mesmo sendo ferida."
Para Lilian, Catherine não havia demonstrado a coragem que era de se esperar de uma futura rainha.
"Talvez eu deva ir ver se há alguém por perto", pensou, afastando-se da janela.
Ao aproximar-se da escrivaninha do rei, ouviu subitamente barulho de vozes e de passos firmes no corredor.
Ela ficou parada, ouvindo. De repente, assustou-se, pois a porta dupla, na extremidade da sala, abriu-se violentamente e diversos soldados ali surgiram, armados de mosquetes.
Lilian sentiu o coração saltar dentro do peito, mas controlou-se. Ficou imóvel, apoiada na escrivaninha, e ao mesmo tempo ergueu a cabeça com altivez.
Os soldados olharam ao redor como se procurassem alguém, e Lilian notou que eles usavam o uniforme do Exército da Kavónia. Ia conversar com eles na linguagem nativa, quando viu surgir um homem usando também uniforme.
Olhou para ele com incredulidade. Era Tiago Potter. Ela esqueceu o que ia dizer e ficou de olhos fixos nele, que caminhou em sua direção e perguntou em alemão:
— Onde está o rei?
Lilian percebeu que Potter não a reconhecera. Perguntou novamente, desta vez em inglês:
— Onde está o rei?
— Ele deixou o palácio.
— Há quanto tempo?
— Por que está aqui? E por que usa este uniforme?
— Represento o povo da Kavónia, e estou agora no comando do Exército deste país.
Ele falava com impaciência, como se recusasse a ouvi-la, e antes que Lilian pudesse dizer qualquer coisa, perguntou novamente:
— Peço-lhe que me responda: a que horas o rei deixou este palácio?
— Há muito tempo.
— Há quanto tempo? Uma hora? Duas horas?
A pergunta foi feita rispidamente, e depois de lançar um olhar para o relógio, Lilian respondeu:
— Talvez há uma hora e meia. Não posso ter certeza, pois não o vi sair.
— Suponho que a futura rainha tenha ido com ele.
— Sua suposição é correta — concordou Lilian.
— Eles a deixaram para trás. Por quê?
— Sou uma pessoa sem importância. Além disso, meu tio achou que, como sou inglesa, estaria em segurança.
— Mas é claro! — exclamou Tiago, torcendo os lábios e com sarcasmo na voz. — Seus compatriotas parecem não se preocupar com nossos problemas, mesmo ouvindo falar neles. Ao mesmo tempo, um cidadão britânico é inviolável!
— Agradeço que me tranqüilize sobre esse ponto.
— Você estará segura, mas terá de ficar confinada em seu quarto, que, imagino, não é este.
— Meu quarto fica ao lado do da rainha.
— Você ficará na suíte da rainha, por enquanto. Depois cuidarei de você.
Ele falava como quem dá ordens a um recruta novato. Notando que Potter a olhava com menosprezo, Lilian fez-lhe uma reverência e, erguendo bem a cabeça, caminhou vagarosamente, saindo da sala e indo para a antecâmara.
Ela ainda ouviu Potter dar ordens de modo preciso e direto e, embora não entendesse o que ele dizia, supôs que houvesse ordenado a seus soldados que interceptassem o rei e Catherine.
Lilian entrou na sala de estar da rainha e sentou-se em uma cadeira. Não havia dúvida de que Potter havia dado um golpe de Estado, e, como ele dissera, tinha grande parte do Exército sob seu comando.
Isso queria dizer que o rei poderia contar, provavelmente, apenas com a tropa formada por soldados austríacos.
Havia, porém, muitos mercenários no Exército, como dissera o capitão Black, que se inclinavam mais a serem leais ao monarca do que a tomarem parte numa insurreição.
E, claro, havia a chance de o rei da Grécia apoiar um monarca irmão.
"Vai haver muito derramamento de sangue!"
Horrorizada, Lilian imaginava que ao invés das festividades das bodas, de alegria, flores, bandeiras e flâmulas, a cidade de Zanthos iria viver a violência de uma guerra civil.
Era impossível acreditar que todos os habitantes da Kavónia apoiariam Tiago Potter. Muitos perderiam, especialmente os donos de lojas e os artesãos, se não houvessem um rei e uma corte vivendo em meio ao luxo e à extravagância.
"Como odeio guerras... todas elas!"
Lilian imaginava que Tiago Potter, sendo tão parecido com Apolo, talvez tentasse reinar como aquele deus: sem Exército, sem Marinha, apenas com o poder de sua beleza, que evocava o amor.
Sentando-se na sala de estar, apesar de saber que já era bem tarde, ela não quis ir deitar-se, pois Tiago Potter poderia desejar falar-lhe novamente.
Aquele havia sido um dia cansativo e longo, em que se ocupara de Petúnia o tempo todo e que culminara com o choque da rebelião, fazendo-a temer pelo futuro.
Exausta, começou a cochilar na cadeira.
Uma batida à porta fê-la sentar-se depressa, muito ereta.
A porta abriu-se, mas quem entrou não foi Tiago, e sim a criada que a atendia desde que chegara ao palácio. Seu nome era Marlene, e depois de tantas horas de solidão, Lilian ficou feliz ao vê-la.
— Marlene! Estou tão contente de ver você! O que está acontecendo lá fora?
— O general mandou-me para atendê-la, fraulein.
— O general?
— O general Potter, fraulein.
— Ele é general?
— Ele assumiu o comando do Exército, e a cidade foi tomada, fraulein — disse Marlene com um sorriso. — Esta é uma ótima notícia. Todos estamos muito felizes! Rezamos tanto para que isso acontecesse!
— Vocês queriam essa revolução? — perguntou Lilian, incrédula.
— O que queríamos era Tiago Potter no lugar que lhe pertence, fraulein.
Subitamente Marlene pareceu amedrontada, como se tivesse percebido que falara demais. Abaixando a voz, ela disse:
— Eu não devia estar conversando sobre estas coisas. Perdoe-me, fraulein, às vezes passo dos limites.
— Só quero que me diga a verdade.
— O general mandou-me permanecer ao seu lado e cuidar da senhorita.
— Ele não quer me ver?
— Não, fraulein. O general está muito ocupado, e não está no palácio neste momento.
Bateram à porta, Marlene foi atender.
— Mandei que lhe trouxessem uma bebida quente, fraulein. Aqui está.
— Foi muita bondade sua.
Quando Marlene abriu a porta para pegar a bandeja, Lilian viu dois soldados de guarda.
"Sou uma prisioneira", pensou.
Ao mesmo tempo, achou que havia sido muita consideração do general mandar Marlene cuidar dela.
Lilian tomou a bebida quente, sentindo-se confortada. Além disso, tendo a criada ao seu lado, já não estava tão apreensiva.
— Vá deitar-se — aconselhou Marlene. — Amanhã será um dia muito agitado. Talvez haja combate, tiros!
— Oh, espero que não!
— Eu digo o mesmo. Quando eu era criança, meu pai tombou em uma revolução. Nossa casa foi incendiada, meu irmãozinho morreu de frio e conseguimos escapar indo para as montanhas.
— Você acha que o rei tem tropas suficientes para lutar contra o general Potter?
— Isso não sei. Por que a senhorita não acompanhou seus parentes ingleses?
— Muito simples — disse Lilian sorrindo. — Eles não quiseram que eu fosse. O rei estava com muita pressa, e levou apenas Catherine e o duque consigo.
Em seguida, achando que suas palavras soavam como uma crítica, acrescentou:
— Deve haver muita gente no palácio que pode cuidar de mim. Onde estão os demais?
— Muitos já partiram, fraulein, outros estão arrumando as malas. O general ordenou que todos deixassem este palácio.
— Todos mesmo?
— Todos os austríacos, fraulein, e isso quer dizer que só ficarão os criados.
Lilian susteve a respiração. Tiago Potter estava sendo implacável.
— Os austríacos estão saindo sem protestos? — perguntou, pensando nos oficiais com seus uniformes ricamente trabalhados.
— Os oficiais da corte já se renderam e entregaram as espadas e todas as armas que possuíam. Há uma enorme pilha de armas no hall. Estão sendo guardadas por soldados.
Lilian ficouem silêncio. Depoisde alguns minutos, Marlene disse, no tom de uma babá inglesa:
— Venha, vamos para a cama, fraulein. Dormirá no leito da rainha e, se me permitir, ocuparei seu quarto.
Lilian ia protestar, alegando que o quarto da rainha era majestoso demais para ela. Lembrou-se porém de que, para a Marlene ela era a prima de Catherine, e não quase uma criada.
— Sim, está bem, Marlene. É uma boa idéia.
Depois de todos aqueles acontecimentos, Lilian achou que não conseguiria dormir, mas a bebida quente a fez mergulhar num sono profundo, assim que sua cabeça tocou o travesseiro.
Lilian acordou assustada, com o barulho de soldados marchando sob ordens ríspidas de comando. Percebeu, depois de instantes, que a troca da guarda estava sendo feita. Deviam ser sete horas da manhã.
Sua vontade era ir até à janela, mas assim que se sentou na cama, Marlene entrou com uma bandeja.
— Achei que os soldados a teriam acordado e trouxe-lhe o café da manhã.
Lilian olhou para os pãezinhos quentes, a porção de manteiga dourada, o favo de mel, sentiu o cheiro gostoso do café e observou que lhe serviam refeição idêntica às que costumava tomar desde que chegara ao palácio. Como se percebesse o que Lilian pensava, Marlene disse:
— Todo o pessoal da cozinha está trabalhando normalmente. Só o cozinheiro-chefe não é natural da Kavónia.
— E onde está ele?
— Desapareceu, fraulein. Achamos que ele deve ter acompanhado o rei. Ele era um homem muito tímido!
— E o que está acontecendo fora do palácio, Marlene? — perguntou Lilian, enquanto a criada lhe servia o café.
— Muitas, muitas coisas, fraulein. Há soldados por toda parte, e novos oficiais estão dando ordens.
— Imagino que sejam todos também naturais da Kavónia.
— São seguidores do general, fraulein. Todos eles estiveram com o general Potter durante anos, escondidos nas montanhas.
— Era lá que Potter se encontrava?
— Ele vinha às vezes à cidade, mas isso era muito perigoso. Quando isso acontecia ficávamos com medo.
— Você sabia que o general estava aqui?
— Ele sempre nos dizia que voltaríamos a ser livres, e nos dava muitas esperanças!
— O general é casado? — perguntou Lilian enquanto passava manteiga no pão.
— Não, fraulein. Nós sempre pensamos que ele se casaria com uma prima, a princesa Athena Potter, mas como pode um homem casar-se se não tem casa e se sua cabeça está a prêmio?
— Os austríacos ofereceram dinheiro para quem o entregasse?
— Uma grande soma! Qualquer homem que recebesse tal quantia ficaria rico para o resto da vida. Mas ninguém trairia Tiago Potter. Ele tem sido sempre o nosso líder, a nossa esperança para o futuro.
— E agora, como vocês se sentem?
— Estamos muito felizes, mas temos muito medo. Não temos armas suficientes, nem canhões para nos defendermos. Compreenda,fraulein... — a voz de Marlene era agora ardorosa. — Somos muito pobres! Não temos dinheiro! Pistolas, munições, mosquetes e pólvora são caros demais! Todavia, todos os anos contribuíamos com o que podíamos.
— Quer dizer que todos vocês contribuíram durante anos para ver chegar este dia?
— Durante nove anos, fraulein. Desde que Tiago Potter voltou à Kavónia.
— Ele tinha ido embora do país?
— Ele e sua mãe foram exilados depois que o rei Ferdinand subiu ao trono. Não que ele tivesse feito alguma coisa, pois era apenas um rapazinho naquela época. O rei, porém, temia que o povo viesse a seguir um Potter. Depois da morte da mãe, creio que ela morreu na Itália, Tiago voltou, ele já era um homem.
— Isso foi há nove anos?
— Sim, fraulein.Potter contava vinte e um anos. Quando soubemos que ele voltara, nossos corações se alegraram. Era como se uma luz se acendesse na escuridão!
Lilian ouvia tudo com interesse. Tinha certeza de que Tiago Potter traria luz para o povo que nele havia confiado.
Era impossível ficar na cama enquanto aconteciam coisas tão excitantes lá fora. Lilian queria ver tudo. Gostaria de participar daquele momento. Mas enquanto se vestia, Marlene disse-lhe que não lhe era permitido sair da sala de estar.
— Não posso pelo menos ir ver o que está acontecendo no pátio, do outro lado do palácio?
— Eles receberam ordens, fraulein. Não lhe é permitido sair da sala de estar.
— Compreendo.
Desapontada, pensou que poderia contemplar apenas os silenciosos jardins ensolarados. O que era uma pequena compensação, diante da excitação que seria observar o que se passava do outro lado do grande palácio.
Não havendo nada para fazer, Lilian tentou ler um entre tantos livros em alemão que havia na sala, mas foi impossível concentrar-se. Em sua cabeça só havia lugar para a revolução.
Uma dúzia de vezes pediu a Marlene que descesse para ver o que poderia descobrir e trazer-lhe notícias. A criada voltava com pedaços de informações, que Lilian ia interpretando como peças de um quebra-cabeça, e aos poucos juntava formando um pedacinho de um todo.
— Os austríacos já partiram, fraulein — dissera Marlene numa das vezes. — As ladies choravam e se queixavam, e os cavalheiros praguejavam!
— Para onde foram eles?
— O general providenciou um navio para levar todos até Nápoles. O que mais aborreceu e provocou protestos entre eles é que lhes foi permitido levar muito pouco de seus bens. Muitas dessas pessoas enriqueceram aqui em nosso país.
— Como puderam enriquecer dessa forma?
— Eram poucos os que não se deixavam subornar.
— Quem os subornava e para quê?
— Os donos de lojas e de fábricas, homens que vieram de fora e queriam vender mercadorias que pudessem interessar ao rei. Essas pessoas subornavam os secretários de Sua Majestade, seus assessores e os oficiais, para terem acesso ao rei.
— Só espero que o que tenham deixado para trás seja bem empregado.
— Será, fraulein, não tenha dúvida. O general ameaçou punir severamente quem saquear uma casa ou qualquer outro local.
— Será que todos obedecerão ao general? — perguntou Lilian, lembrando-se de histórias que havia lido sobre soldados que saqueavam, queimavam e devastavam os países que haviam conquistado.
— Sim — disse Marlene com simplicidade. — Eles compreendem o general e este, por sua vez, sabe o que o povo tem sofrido durante todos estes anos.
À medida que Marlene ia discorrendo sobre as agruras do povo, Lilian compreendeu que não havia exagero algum em sua narrativa.
Entre os abusos praticados pelo governo do rei Valter, ela ficou sabendo que qualquer homem que possuísse uma pequena propriedade rural era obrigado a dar metade de sua colheita ao magistrado que representava o rei.
Os rapazes eram recrutados para o exército ainda muito jovens, as pessoas idosas que não podiam lavrar as próprias terras acabavam por perdê-las, pois o rei mandava confiscá-las.
A população pobre das cidades vivia quase morrendo de fome, uma vez que o preço da comida era elevado e os ordenados, baixos. No mercado, os comerciantes alegavam que tinham que vender caro seus produtos, pois pagavam aluguel exorbitante por um boxe ou um simples espaço para armar suas barracas, além dos impostos altíssimos.
A conclusão a que chegou Lilian foi que todo o país trabalhava e produzia apenas em benefício do rei: sempre que ele desejasse algo, fosse um prédio, como o palácio, ou um pavilhão de caça, como o que estava praticamente construído nas montanhas, os recursos vinham quase que inteiramente dos camponeses.
Não era de admirar que vissemem Tiago Pottero homem que romperia os grilhões do cativeiro e lhes devolveria a liberdade que tinham gozado antes da chegada de um rei austríaco ao trono.
Marlene contou a Lilian que reinava grande alegria em Zanthos.
— O povo está exultante! Todos cantam e dançam. Até os soldados usam flores atrás da orelha e nos bonés. O general providenciou alimento para todos.
Lilian ouvia, frustrada, aquelas notícias. Era decepcionante não poder ver o que se passava, não poder participar dos acontecimentos.
Quando o jantar foi servido, apesar de apetitoso, Lilian comeu apenas um pouco e afastou o prato.
— Não está com fome, fraulein? — perguntou Marlene em tom reprovador.
— Quero ver o general. Não posso ficar aqui fechada indefinidamente.
— O general está muito ocupado. Talvez amanhã tenha tempo de falar com a senhorita.
Lilian sentiu que seu dia seguinte deveria ser igual àquele: ela ficaria sentada naquela maravilhosa e confortável prisão, enquanto os fatos se desenrolavam lá fora. Não se enganou.
Depois do almoço, Marlene trouxe novas notícias.
— O rei chegou à fronteira, e as tropas que o apóiam estão concentradas lá.
— Lá onde?
— Na fronteira com a Grécia, fraulein. Foi o que disse um dos soldados mas, claro, ele sabe muito pouco. O general não conta nada a ninguém.
— Gostaria de saber mais: tente descobrir outras coisas, Marlene.
A criada fez o que pôde, mas não teve sucesso.
— Houve algum combate? — quis saber Lilian.
— Parece que sim, uma luta entre os mercenários que estão a favor do rei e um grupo de soldados do general, mas não foi coisa muito séria.
No fim da tarde, Marlene veio dizer que o general havia ordenado que os que morassem fora da cidade se reunissem na praça do mercado.
— Por que será que ele fez isso? — perguntou Lilian.
Marlene não pôde responder. Apesar de ser uma mulher inteligente, apenas repetia o que ouvia, ou relatava o que havia visto. Ficava a Lilian a tarefa de encontrar as razões por si mesma.
No fim da tarde, após o jantar, Lilian ouviu alguém chorando. O dia estava quente e ela debruçou-se sobre o parapeito da janela, para tentar descobrir de onde vinha o ruído.
— Parece que há crianças chorando — disse a Marlene, que acabava de tirar a toalha da mesa.
— Sim, fraulein, há crianças no quarto logo abaixo deste. Elas foram encontradas perdidas ou feridas.
— Como? Eu não sabia disso! Houve algum combate?
— Quando o general entrou na cidade, os guardas austríacos atiraram nele, mas quando viram que a maioria dos soldados não mais serviam ao rei, alguns entregaram-se e outros fugiram.
— E crianças ficaram feridas! — murmurou Lilian.
— O general trouxe as crianças para cá até que seus pais sejam encontrados.
Marlene pegou a bandeja e pediu a Lilian:
— Se não precisar de mim, fraulein, gostaria de sair um pouco. Há comemorações e danças que eu gostaria de ver.
— Naturalmente! Divirta-se! Gostaria de ir com você.
— O general não aprovaria, fraulein.
Depois de fazer uma reverência, Marlene bateu à porta para que os guardas a abrissem.
Lilian suspirou. Se o general tinha a intenção de puni-la por ser quem era, estava tendo sucesso. Era-lhe quase insuportável ficar ali sozinha, sem saber o que acontecia fora dali.
"Papai se envergonhará de mim se eu não conseguir ser auto-suficiente e se não encontrar uma mensagem no silêncio", pensou Lilian.
Em seguida, caminhou até à janela e abriu as cortinas. Viu um clarão no céu, depois muitos outros, seguidos de estrondos. Estavam soltando fogos de artifício na cidade.
Infelizmente ela só conseguiria ver bem o espetáculo se estivesse do outro lado do palácio. Olhou para o céu estrelado, depois para o jardim e ficou ali, sentindo o aroma de flores que entrava pela janela. Mais uma vez, Lilian ouviu choro de crianças.
Agora mais insistente que antes. Na verdade, uma delas berrava.
"Certamente alguém está cuidando das crianças", pensou.
Prestou mais atenção. Não havia pausa, então ninguém confortava as crianças. Ou, se o general deixara alguém encarregado delas, essa pessoa não estava sendo eficiente.
"Como eu poderia chegar até os pequeninos?"
Lembrou-se de que no quarto que Marlene ocupava, uma porta dava para uma saída lateral e não para o corredor principal. Só esperava que não houvesse nenhum guarda ali.
Lilian foi até o quarto, abriu a porta devagar. Não viu ninguém. Saiu, fechou a porta cuidadosamente e caminhou na ponta dos pés.
Ao chegar ao canto da parede, olhou ao redor e viu que os guardas conversavam distraidamente à porta da sala de estar que ela agora ocupava. Lilian achava-se a uma boa distância deles e o trecho do corredor principal por onde ela precisava passar estava escuro.
Tirou os sapatos, segurando-os firmes numa das mãos, respirou fundo e correu. Atravessou o corredor em silêncio, parou e esperou, apreensiva. Os guardas pareciam não tê-la visto.
A próxima etapa era descer para o andar seguinte, o que não foi difícil. Sempre fugindo da grande escadaria central passou por corredores e escadas secundários e sem guardas. Ajudada pelo seu bom senso de direção, Lilian chegou ao quarto que ficava logo abaixo daquele da rainha.
Como esperava, havia uma sentinela à porta, mas esta achava-se de costas, olhando para o hall onde, certamente, devia haver outros guardas.
Talvez eles não estivessem levando suas tarefas muito a sério, pois no palácio se encontravam somente as crianças e ela para serem vigiadas.
O choro estava bem próximo e em alguns segundos Lilian viu-se entre as crianças no grande cômodo, um escritório convertido em dormitório.
Ali havia três camas de solteiro, três colchões no chão e um berço onde se via o brasão real artisticamente pintado.
Não havia sinal de pessoa adulta e os pequenos choravam. Lilian verificou todos os leitos para ver o que se passava com cada uma daquelas pobrezinhas.
A criança que mais gritava tinha a bandagem da cabeça caída sobre os olhos. Lilian arrumou a faixa sobre o ferimento e o acalentou. Ela parou de chorar e dizia, agarrado à sua benfeitora:
— Mamãe! Quero mamãe!
— Ela virá logo! — respondeu Lilian acalmando-a. — Tente dormir. Sua mãe quer que você descanse.
Na outra cama uma garotinha, com a mão machucada, tinha sua atadura enrolada nos lençóis e lutava para desvencilhar-se daquele emaranhado.
No berço, o problema do bebê era obviamente fome, pois sua mamadeira estava caída. O leite estava frio, mas assim que Lilian pôs o bico da mamadeira na boca do bebê, ele sugou seu conteúdo avidamente.
As outras crianças pareciam assustadas apenas com o choro dos menores. Depois que Lilian as acalmou e lhes disse que suas mães viriam vê-las, silenciaram e logo adormeceram.
Lilian se preparava para sair do quarto, quando ouviu um barulho vindo da porta. Virando-se, percebeu que um dos guardas a encarava.
— As crianças choravam, então desci para cuidar delas.
O homem nada disse e continuou a fitá-la.
— Todas estão bem agora. Há alguém cuidando delas?
— Ela foi dançar — disse o soldado com voz arrastada.
Lilian percebeu que ele estivera bebendo. Seu quepe estava meio caído sobre a testa, os botões do alto de sua túnica se encontravam abertos e ele carregava o mosquete negligentemente.
— Bem, creio que agora as crianças ficarão quietas até que a responsável por elas volte.
Olhou para o guarda novamente, meio desconfiada, achando que ele não era o tipo de pessoa adequada para montar guarda àquelas criancinhas.
Era um homem atarracado, de uns trinta anos. Sua pele era escura e os cabelos, longos demais para um soldado. Parecia nunca ter usado um uniforme antes.
Dando mais uma volta para ver as crianças, Lilian ficou tranqüila, pois estavam todas quietas. Andou até a porta e disse:
— Acho melhor voltar para meu quarto.
O soldado não se moveu, apenas cambaleou e seu olhar deixou Lilian inquieta.
— Por favor, deixe-me passar.
Ele não fez o menor esforço para obedecê-la. Achando que ele estava bêbado demais para compreendê-la, Lilian tentou passar pelo soldado espremendo-se um pouco contra a porta.
Assim que se aproximou, ele deixou cair o mosquete e tentou abraçá-la.
— Deixe-me ir! Como ousa tocar em mim? — ela gritou, horrorizada, notando que ele era muito forte.
O soldado agarrou-a com força e puxou-a para bem junto de si. Seu hálito lembrava vinho. Mesmo lutando desesperadamente, Lilian não conseguia libertar-se dos braços que a apertavam. O guarda começou a arrastá-la para um colchão, enquanto ela esperneava e se debatia.
— Não! Não! Solte-me! Deixe-me ir!
Não houve resposta. Ela foi carregada e jogada no colchão, dando um grito ao cair. Em seguida sentiu o corpo pesado daquele homem repugnante sobre o dela. Pensando que ele ia beijá-la, virou o rosto, mas ele deu um puxão em seu vestido, rasgando-o com as mãos brutais. Lilian gritou muitas vezes.
Seu peito já se achava desnudado e, aterrorizada, sentindo que ia morrer, não conseguiu evitar que sua saia também fosse rasgada.
Subitamente, ocorreu uma explosão ensurdecedora. O soldado caiu num baque sobre ela, e o impacto deixou-a inconsciente por alguns segundos.
Ao voltar a si, alguém arrastava o corpo do guarda e instintivamente ela cobriu o peito nu com as mãos. Mal podia acreditar que fora salva.
— O que está fazendo aqui? — Ouviu uma voz ríspida dizer em inglês. — Por que não está no seu quarto?
Ainda deitada no colchão, ela ergueu a cabeça e viu Tiago Potter.
Chocada e assustada como estava, não conseguiu responder. Tiago segurou-a pelos braços e a levantou. As pernas de Lilian estavam tão trêmulas, que ela cambaleou e encostou-se no ombro de seu salvador.
— Dei-lhe ordens para ficar na suíte da rainha! — ele disse severamente. — Por que me desobedeceu?
— As crianças... estavam chorando — conseguiu responder Lilian, numa voz que nem parecia a sua.
O general olhou ao redor e viu que não havia mais ninguém no dormitório.
— Dei ordens para que cuidassem desses pequeninos! — disse ele zangado.
— Acho que a mulher foi dançar... — ela murmurou.
— Cuido desse assunto mais tarde. Pode andar?
— Creio... que... sim...
Tentou caminhar, mas tudo escureceu e o assoalho pareceu erguer-se contra ela. Ao desfalecer, a última coisa que sentiu foram os braços fortes do general envolvendo-a.
Depois de um tempo que lhe pareceu longo demais Lilian teve consciência de que estava sendo carregada. Nos braços do general sentia tanta segurança e proteção, que seus temores desapareceram e a escuridão foi gradualmente se afastando de sua mente.
"Ele me salvou! Ele me salvou!"
Mesmo sem abrir os olhos, Lilian sabia que se achavam no corredor principal do andar de cima. Os guardas, ao verem Potter, tomaram posição de sentido, e um deles abriu-lhe a porta.
Quando o general entrou no quarto da rainha, Lilian descerrou os olhos. Foi colocada na cama, recostada nos travesseiros. Envergonhada por se achar quase despida, mantinha as mãos sobre o peito.
— Você está bem? — ele perguntou em voz grave.
— Muito bem... agora.
— Então troque de roupa. Voltarei para vê-la depois de me certificar de que as crianças estão tranqüilas.
O general saiu do quarto e Lilian ouviu-o falando severamente com os guardas do corredor.
No conforto da cama, enquanto recobrava o fôlego, ficou pensando com horror no que lhe acontecera, e no modo como havia sido salva pelo general, na hora exata.
Lembrando-se de que ele retornaria ao quarto em breve, apressou-se em trocar de vestido. Marlene havia trazido toda a sua bagagem para o guarda-roupa de Petúnia; ao lado dos lindos, delicados e primaveris trajes da prima, os de Lilian pareciam ainda mais feios, pesados e tristes.
Cansada demais para vestir-se, Lilian preferiu usar um dos confortáveis robes brancos de Petúnia o de mangas largas, sem botões e transpassado na frente.
Terminou de rasgar o vestido que usava e não quis mais olhar para aquele monte de farrapos, recordando com horror o modo como o soldado fora rasgando o vestido, a partir do seu pescoço.
Apesar de já haver lido sobre o modo brutal como muitos soldados se comportavam na guerra, Lilian nunca pensara que tal violência pudesse acontecer com ela. Tinha sido uma experiência terrível, nunca se sentira tão só e desamparada.
Lilian arrumou os cabelos automaticamente e foi para a sala de estar esperar pelo general. Seu coração batia aceleradamente só de pensar que falaria com ele.
Já era embaraçoso saber que Potter a desprezava. Ela vira isso nos olhos dele, antes de desobedecer à ordem dele, saindo da segurança daquele quarto e terminando por envolver-se com o soldado que fora morto.
A idéia de ter sido a causa da morte de um homem era-lhe insuportável. Da mesma forma, seria difícil para ela agradecer ao general por tê-la salvo de ser violentada.
Depois de algum tempo, ela ouviu uma batida à porta.
— Entre — disse, sentindo-se sufocada.
Tiago Potter entrou na sala. Apesar de parecer severo e inflexível, Lilian achou-o extraordinariamente belo.
"Sei que papai também o compararia à figura de Apolo", pensou, levantando-se nervosamente e fazendo uma reverência assim que o general se aproximou.
— Sente-se melhor, Srta. Evans?
A voz dele, para alívio de Lilian, foi suave.
— Eu... eu estou muito bem, e devo agradecer-lhe...
— Não há motivo para agradecer-me. Lamento profundamente que tenha sido insultada por um dos meus homens. Ao mesmo tempo, espero que compreenda que, dada a situação, se desobedecer as minhas ordens irá encontrar-se em apuros.
— Eu... eu sinto muito.
— Estamos numa guerra, Srta. Evans, e numa guerra os homens tornam-se exaltados, suas emoções se inflamam de um modo ou de outro. É por isso que desejo que, sendo mulher, não se envolva e permaneça em segurança.
— Mas... as crianças choravam tanto! —justificou-se Lilian.
— Isso também é lamentável. A mulher que encarreguei de cuidar delas será severamente repreendida. Pode ficar tranqüila quanto às crianças, pois uma outra mulher de confiança passará a noite com elas. Espero que pela manhã os pais venham buscar seus filhos.
— Fico feliz em saber disso.
— Tendo passado por uma experiência tão desagradável, deve estar exausta. Quanto mais cedo for deitar-se, melhor!
— Eu... gostaria de conversar com o senhor, general.
— Também tenho algumas coisas para dizer-lhe.
Depois que Lilian se sentou, ele se acomodou numa cadeira em frente a ela.
Apesar das circunstâncias, o general parecia muito à vontade.
— Sei que ficará aliviada em saber que sua prima, lady Petúnia, e o rei chegaram à Grécia em segurança.
— Achei mesmo que eles iriam para a Grécia.
— Acreditei quando me disse que não sabia para onde eles tinham ido.
— Eu apenas suspeitava que fossem para aquele país. Ninguém haveria de confiar em mim, naturalmente.
— Não compreendo por que não os acompanhou. Afinal, seu tio fazia parte da comitiva do rei.
— Talvez meu tio estivesse preocupado demais com a segurança da filha, e tinha achado que eu não corria perigo.
— Mas é sobrinha dele!
— Digamos que ele... não tenha muito orgulho de mim — disse sem refletir.
Vendo que o general erguia as sobrancelhas, ela percebeu que fora indiscreta. Achando que devia dar uma explicação, continuou:
— Sou apenas uma parenta pobre. Creio que mesmo neste país talvez aconteça o mesmo. Pessoas pobres são... dispensáveis.
Embora a voz de Lilian soasse amarga, havia nela uma nota divertida.
— Não consigo compreender uma coisa dessas. Asseguro-lhe que em meu país pouquíssimas pessoas, nas mesmas circunstâncias, seriam capazes de abandonar um parente.
Nada havia a dizer. Vendo Lilian calada, o general acrescentou:
— Tenho algo que lhe pertence.
Ela encarou-o surpresa, e enquanto ele falava, tirou algo da túnica e estendeu para Lilian. Inclinando-se ela viu na palma da mão do general a moeda de ouro que deixara na casa da criança atropelada.
— Minha intenção sempre foi a de entregar-lhe esta moeda assim que a encontrasse. Queria dizer-lhe que não precisávamos de sua caridade. Agora percebo que apenas quis ser generosa, oferecendo o que era para você quase uma pequena fortuna.
— Este soberano de ouro pertenceu ao meu pai. Representa um terço de tudo o que eu possuo no mundo.
— Mesmo assim, deu-a àquela criança. E por que cuidou da menina que foi atropelada?
— Papai sempre amou a Grécia. Estar num país vizinho da Grécia e semelhante a este era para mim uma experiência maravilhosa — explicou, emocionada. — Quando percebi os contrastes que havia na Kavónia, fiquei abismada: luxo e extravagância ao lado da miséria do povo que eu sabia ser muito sofrido e que eu gostaria de poder ajudar.
— Como quis ajudar as crianças que choravam.
— Como está a garotinha que foi atropelada pela nossa carruagem?
— Um médico cuidou muito bem dela, e sua perna está cicatrizando.
— Fico feliz com esta notícia. Disseram-me que não há hospital em Zanthos.
— Havia um hospital, que o rei mandou demolir para aumentar os jardins do seu palácio.
Lilian suspirou.
— Vai mandar construir um hospital?
— Se eu estiver em condição de poder fazê-lo, sim.
Ela olhou para o general, apreensiva.
— Acredita que há chances de o rei retomar o poder?
— Sei que as tropas que o apóiam não desistirão sem muita luta. Eles podem não nos derrotar, mas temos que estar bem preparados.
— Tem toda razão. Acha que eu poderia ajudar?
— Tenho que pensar sobre isso, Srta. Evans. Mas deve estar consciente de que precisa se proteger — disse o general levantando-se. — Em tempos de guerra, uma mulher bonita é sempre uma grande responsabilidade!
O elogio tomou Lilian de surpresa. Ela fitou Tiago Potter com os olhos muito abertos, e antes que pudesse responder ou mesmo se levantar, ele já se achava de pé e atravessou a sala, fechando a porta ao sair.
Lilian permaneceu com os olhos fixos na porta por alguns segundos. Depois apertou o soberano de ouro na mão.
— Uma mulher bonita é sempre uma grande responsabilidade! — repetiu.
Era incrível... O general Tiago Potter achava-a bonita!
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