A Família Borges
Já fazia horas que Sophie estava enclausurada na pequena cabine onde deveria dormir, e sua irritação era crescente. Era de esperar que a viagem fosse espetacular, uma vez que viajava num imenso navio voador erguido no ar por dois dragões, mas descobriu que não, minutos depois de terem levantado vôo. Aparentemente, as escamas dos dragões se ajustavam para ficar exatamente da cor do céu e, portanto, invisíveis aos olhos. Além disso, os animais começaram a expelir uma espessa fumaça cinza que envolveu todo o navio, fazendo com que qualquer um de dentro, quando olhasse pra fora, visse apenas fumaça; e qualquer um que olhasse de fora, visse apenas uma inofensiva nuvem que anuncia chuva. Nem sinal de navio ou dragões.
Durante toda a viagem, Sophie só saiu do cubículo para comer algumas besteiras que seus pais levaram, se recusando terminantemente a ir jantar no salão com todos os outros passageiros. Brincou um pouco com o gato, mas este logo se desinteressou, preferindo escapulir pela fresta da porta e explorar o navio, quem sabe até mesmo encontrar algum ratinho pro jantar. Sem nada pra fazer, Sophie remexeu no malão, retirando de dentro o pequeno piano dourado, adormecendo, mais uma vez, embalada pela canção.
Acordou assustada, e se viu deitada num colchão, os cabelos grudados no rosto devido ao suor que melava todo o seu corpo. Percebeu que a sua mala fora colocada no canto do quarto, onde o gato malhado dormia despreocupadamente. Olhando para o outro lado, viu uma cama de madeira simples, onde estava deitada uma menina de longos e ondulados cabelos negros. Sua pele morena era evidente mesmo à fraca luz dos lampiões que entrava pela cortina mal fechada da janela.
Sophie se levantou de um salto com a intenção de sair dali e descobrir onde exatamente estava, mas, no momento em que se virou, deu de cara com uma enorme flor sem caule, que rodava as gigantescas pétalas amarelas produzindo vento. Com o impacto, as pétalas-hélices deram um tranco, e pararam imediatamente de rodar. O gato, sentindo o calor crescente no quarto e percebendo o que aconteceu, deu um forte miado de censura e saiu do quarto, bem no momento em que a menina morena se levantava, produzindo um longo bocejo.
- Who are you? Where are my parents? Where am I? – Perguntou Sophie, sem sequer parar pra respirar.
- Hm... ‘Sóuri’. Eu. Não. Falo. Inglês. – Respondeu a menina, muito pausadamente, e agitando os bracinhos em muitas mímicas ininteligíveis.
Sophie ficou parada sem saber o que fazer. A última lembrança que tinha era de ter dormido no navio, e agora aparecia ali, com aquela estranha, num lugar estranho, e sem poder se comunicar. Mas a menina segurou sua mão sem dizer palavra, e a guiou para fora do quarto.
Desceram escadas após escadas, e foram parar numa imensa cozinha branca, atulhada de objetos, o chão de azulejos quadriculados em preto e branco. No centro, uma enorme mesa redonda de madeira escura, onde se encontravam quatro pessoas; os pais de Sophie, e dois adultos que ela não conhecia, tomando uma jarra de limonada gela-língua.
Assim que viram as duas meninas, o grupo parou de conversar, e o Sr. Clifford se dirigiu a Sophie.
- Meu bem, esses são Gustavo e Maria Borges. Nos conhecemos na Inglaterra, onde Gustavo foi embaixador. Nos tornamos amigos e, agora, eles nos ofereceram hospedagem. Portanto, essa será nossa casa, embora não apenas ‘nossa’. Amanhã eles prometeram nos mostrar a cidade, aposto que você vai adorar. Mas já está tarde, e você deve ir dormir.
- Papai, vamos ficar aqui pra sempre?
- Não sei. Talvez um dia possamos voltar pra Inglaterra. Não sei...
- Aqui é muito quente!
O Sr. Clifford riu, e ofereceu um copo da limonada gela-língua pra Sophie, que imediatamente tomou um gole. Sentiu sua saliva gelar instantaneamente, formando uma pequena camada de gelo dentro de sua boca, que ia sendo quebrado à medida em que ela movimentava a língua. A sensação era absolutamente refrescante, e logo Sophie já não suava mais com tanta intensidade, embora fosse demorar um pouco mais pra que ela se acostumasse com o calor tropical das terras brasileiras.
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