Malas, espelhos e dragões.



Sophie abriu os olhos devagar. O silêncio e a pouca luminosidade do ambiente sugeriam que era ainda muito cedo, e o sol demoraria a raiar. Sabendo que não conseguiria voltar a dormir, levantou-se preguiçosamente, e desceu as escadas em direção à cozinha.

Nem sua mãe nem seu pai estavam acordados, o que dava a Sophie a oportunidade de sabotar a viagem, e ela não tardou a procurar os bilhetes roxos que vira no dia anterior. Olhou dentro do armário da cozinha, revirou gavetas, abriu pequenos potes e jarras, caixas e caixinhas, baús, nada. Foi até a sala, apalpou o sofá, alisou a mesa, sacudiu livros, também nada. Parou, os cotovelos descansando em cima do console da lareira, quando uma pequena plantinha vermelha lhe beliscou a pele. Virou o rosto pra rilhar com a Srta. Fleur, mas calou-se quando a pequenina rosa lhe disse, na sua vozinha esganiçada:

- Aqui, embaixo de mim.

Sophie levantou delicadamente o vasinho e, milagrosamente, lá estavam os três bilhetes roxos. Estendeu o braço pra tocá-los, mas no momento em que fez o contato, um apito começou a soar, tão alto e tão forte que ela teve certeza de que a vizinhança inteira iria acordar.

- Arrá! – Seus pais vinham descendo as escadas, ainda vestindo robes, os rostos amassados. – Pegamos você!

E, sentindo-se vencida, porém divertida, Sophie foi ajudar o pai a fazer os últimos preparativos para a mudança, enquanto a mãe servia o café da manhã, e eles se emocionaram juntos quando recordaram muitas situações que viveram ali.

Às 8:30 a casa ainda estava de pernas pro ar. Na soleira da porta, inúmeras malas de tamanhos e cores variadas se amontoavam, bem como a elegante gaiola dourada da coruja da família. Dez minutos depois, os três Clifford, o gato malhado e a pequena Rosa se encontravam no jardim, todos de alguma forma encostando na grande vassoura com as cerdas desfiadas, que se transformaria em chave-de-portal em segundos. A vassoura brilhou com uma intensa luz azul e, um instante depois, o jardim estava vazio e a porta, lacrada.


Sophie fechou os olhos com força, apertou ainda mais o monte de pêlos que era o gato em seu colo. O repuxão no umbigo não parava, e ela começou a se sentir sufocada. Quando finalmente achou que não agüentaria mais, foi invadida por um delicioso cheiro de maresia, e seus ouvidos se encheram com o barulho de gente, ondas e gaivotas.

- Vamos, por aqui – indicou o pai, carregando o máximo de malas que conseguia, e conduzindo-os todos para uma imensa construção em mármore. Sophie seguiu-o, passou pela roleta e entrou.

O piso de mármore branco acabava bruscamente, e longos cais de madeira lustrosa se estendiam à frente, milhares de barcos atracados. Uma grande quantidade de pessoas andava apressada, algumas em direção aos barcos que apitavam, outras se sentando às mesas da pequena praça de alimentação. Vincent não seguiu o fluxo, dobrou uma esquina e se viu cara a cara com um enorme espelho emoldurado em ouro. Sem sequer hesitar, entrou no espelho e desapareceu de vista.

- Vá, Sophie. Vou logo atrás de você. – disse sua mãe.

Sophie o seguiu, mas não pôde deixar de fazer uma careta esperando a colisão, que não aconteceu. Abriu os olhos e se viu num imenso cais cor de areia que seguia mar adentro, até onde sua vista podia alcançar. Ela pensou, com ironia, que talvez tivessem de ir andando até o Brasil, seguindo por dias intermináveis. Mas foi logo surpreendida por um navio de aparência antiga que pousava no mar não muito longe, derramando água pra todos os lados. Sustentando o navio, presos por enormes correntes estavam...

- DRAGÕES! – Exclamou Sophie, num arroubo de animação.

Dois enormes e luzidios dragões azul-céu rugiam ferozmente no ar, as longas asas abertas fazendo um redemoinho de ondas no mar abaixo. Com um apito do capitão, que desembarcava nesse momento, as duas poderosas criaturas desceram diretamente pra uma pequena faixa de terra, e foram cercadas por quatorze bruxos que também haviam desembarcado, e jogavam diretamente na boca dos animais grandes e sanguinolentos pedaços de carne.

O navio apitou, e muitas pessoas começaram a embarcar, entregando os bilhetes a um bruxo que se postava na porta. Sophie, com seus pais, subiu no enorme navio, e foi levada por um estreito corredor até a cabine apertada onde dormiria. Jogou suas coisas em cima da única cama de metal, que rangeu um pouco, e saiu procurando a proa do navio, a fim de ver novamente as grandes criaturas.

Os bruxos-marujos já haviam terminado de alimentar os dragões, e agora deixavam-nos esvaziar alguns gigantescos baldes de água. Sophie continuou olhando os animais acabarem de beber e todas as pessoas subirem a bordo.

Às dez horas pontualmente, o apito do navio soou três vezes, e os dragões voltaram a levantar vôo, soltando fumaça pelo nariz enquanto a embarcação se elevava no céu, içada pelas grossas correntes que a prendiam às feras. Sophie agora não podia deixar de sentir uma imensa ansiedade que crescia em seu peito, dando lugar à tristeza, e mal podia esperar para atracar na costa brasileira.

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