Capitulo I
CAPÍTULO I
Boston, Massachusetts, 1858
— Nunca mais — Harry Potter rosnou por entre os dentes.
Havia chegado ao porto com quase uma semana de atraso, e só o orgulho o mantivera de cabeça erguida.
Nenhum membro do clã Potter jamais havia rastejado do convés de um barco para o ancoradouro, nem tinha se largado no chão, passando mal, assim que pisou em terra firme, por causa dos enjoos durante a viagem. Mas ainda havia outra etapa.
— Se o senhor pretende embarcar naquele navio, é melhor se apressar. Trata-se do último desta semana com destino a São Francisco. E falta só uma hora para ele zarpar.
As palavras do vendedor de passagens empurraram Harry para o meio da multidão que enchia as docas de Boston, rumo ao instrumento de tortura flutuante que o levaria à Califórnia, a terra de riquezas e oportunidades.
O navio em que viera chamava-se Rose Marie. Doce Rose Marie, na verdade. Ele ponderou o que diria um de seus professores da Universidade de Dublin a respeito desse nome tão inapropriado. O estômago havia perturbado Harry durante todo o deslocamento por mar, desde Limerick até Boston. As náuseas persistentes o tinham levado a considerar-se o mais frágil dos mortais.
Os músculos protestaram tanto quanto o estômago, ante a perspectiva de embarcar num navio semelhante ao instável Rose Marie. Livre das turbulentas águas do Atlântico, ele esperava domar a revolta do aparelho digestivo e levar para casa o ouro fácil da Califórnia o mais rápido possível.
— Depois disso — sussurrou —, nunca mais entrarei em outro navio que não pertença à frota dos Potter.
A fraqueza não o impediu de admirar a quantidade de cavalos, carruagens, pessoas e arcas espalhados pelo cais. O Novo Mundo era de certa forma mais vivo, dinâmico e colorido do que a Europa que Harry deixara para trás. Os sons eram mais agudos, os prédios ao longe, mais altos.
Ele sentiu saudades do chá de gengibre que a avó preparava para combater enjoos. De qualquer modo, Neville e Carlos nunca haviam sentido náuseas quando em viagem. Eram criaturas do mar.
Para Harry, que observava a agitação humana no porto, não existia alívio possível. Suspirou fundo, e a antecipação do mal-estar deixou-o de pernas trêmulas. Foi quando ouviu seu nome ser chamado por um marinheiro.
— Ei, Potter! Esqueceu isto!
O chamado o fez virar a cabeça. O homem, membro da tripulação do Rose Marie, exibia um envelope pardo, que lançou no ar, na direção de Harry. Este apanhou a carta e acenou em agradecimento.
O marinheiro se tornara um amigo leal durante a travessia.
— Desejo-lhe sorte, Potter — acrescentou. — Que encontre seu ouro e volte rico, ou mais rico, para casa.
Tratava-se de um desejo sincero, válido como despedida. Harry examinou o envelope e o guardou no bolso do casaco, junto com a passagem. Era de sua mãe. Depois seguiu adiante, rumo ao barco ancorado. Parou para descansar no pontilhão gradeado, depositando uma mala de cada lado. Assim que se encostou no gradil, sentiu um forte esbarrão no ombro.
Apesar das pernas fracas, Harry conseguiu manter o equilíbrio. Olhou para trás e viu um sujeito de feições rudes, com uma espessa barba negra e cabelos engordurados.
— O que posso fazer pelo senhor? — Ele demonstrou polidez, embora sua vontade fosse de socar o rosto do desconhecido.
Não desejava, porém, um começo tão pouco auspicioso para sua aventura americana.
— Eis um cavalheiro irlandês, Henry — falou o homem para seu companheiro, igualmente mal-encarado.
— Ah, sim. Os irlandeses vêm para cá e tiram nossos empregos, como o meu e o de meu irmão. — O hálito dele cheirava a álcool, e os punhos cerrados eram respeitáveis.
— Vocês, malditos estrangeiros, estão nos tirando tudo! — prosseguiu o primeiro. — Por que não fica lá em sua ilhota? Não queremos gente da sua laia por aqui.
Perceber o soco chegando de nada adiantou. Os músculos retesados de Harry não reagiram a tempo, e ele se viu lançado contra o gradil, machucando as costas. Por pouco não caiu na água, enquanto Crabbe emitia um grito selvagem de vitória e se afastava, carregando suas malas.
Harry praguejou e acabou perdendo de vista os ladrões, que se misturaram a outras pessoas, desaparecendo em meio à confusão de gente, carruagens e cavalos. Então, avistou novamente o coche que transportava uma elegante senhorita. Aquela jovem já havia atraído sua atenção, momentos antes. Mas não era o caso de abordá-la pela janela do veículo. Além do mais, tão logo se aproximou, o condutor o confundiu com um assaltante e chicoteou os cavalos para que corressem.
Os animais empinaram, e a expressão ansiosa do cocheiro correspondeu ao ar de pânico que a jovem ocupante da carruagem demonstrou. Os cavalos dispararam pelo amplo espaço em torno do cais, porém galoparam perigosamente para a área mais fechada dos armazéns. Havia o risco claro de colisão.
— Diabos! — Harry exclamou e, numa decisão rápida, apanhou as rédeas de uma formosa égua branca que passava, com porte de campeã, puxada a pé pelo dono.
Após montar o animal de forma acrobática, ele o forçou a emparelhar com o coche desgovernado. Saltou para o lombo de um dos cavalos e puxou com vigor a tira da viseira, já que as rédeas continuavam nas mãos frouxas do condutor.
Apesar da dor que sentia nos membros, nisso ele estava treinado, preparado para domar os excessos da natureza, adestrado para segurar um cavalo furioso.
Ignorando os gritos atrás dele, conseguiu diminuir a velocidade do animal, que galopava em dupla com outro, e que também reduziu seu ímpeto, já nas proximidades da extremidade do cais.
Como os cavalos não pararam de imediato, a carruagem oscilou sobre as rodas, em precário equilíbrio, o que resultou em gritos de pânico do cocheiro e da ocupante. Quando conseguiu deter os animais, o veículo, por inércia, balançou e bateu inexoravelmente contra a parede de um armazém. A colisão causou mais susto do que estragos.
Harry então desmontou e correu à cabine ocupada pela jovem, cujo olhar apavorado o levara a um ato de imprevista bravura. Abriu a porta e deparou com uma mulher semicaída no assento, com as pernas levantadas revelando o saiote de baixo.
— A senhorita está bem? — indagou, sem se perturbar até que os dedos enluvados da jovem tentaram alcançar a maçaneta da porta.
— Creio que sim — ela murmurou, entre ruídos de panos e rendas sendo esticados. Conseguiu sentar-se. — Pode me tirar daqui?
Harry estendeu o braço, segurou a mão enluvada da moça e então sentiu o suor porejar em sua nuca, enquanto os ouvidos eram alvo de um som de tempestade que somente ele podia escutar. A respiração tornou-se arfante, e sentiu o peso de um encantamento imprevisto e inexplicável.
A bênção dos Potter!
Empalideceu e, com um esgar, puxou a moça para si, ao mesmo tempo em que as palavras da avó, lembradas pelo irmão Neville, ecoavam em sua mente: Haverá um som prolongado, que ninguém mais poderá ouvir.
— Não agora — ele sussurrou para si próprio, abraçando a jovem a fim de colocá-la em segurança no chão. Precisava correr de volta para embarcar no navio. — Não tenho tempo para isso.
Saber reconhecer o instante mágico é a nossa tarefa, o resto virá naturalmente.
O corpo feminino junto ao dele, embora separados por camadas de tecidos, deixou-o em brasa. A cabeça parecia girar em meio a uma forte tempestade de verão. Trovoadas e relâmpagos. Bênção ou maldição?
Segurou-a próxima a si por mais tempo que o necessário. As mãos não obedeciam ao comando da mente para soltá-la. Pelo contrário, os dedos a apertavam na altura da cintura delgada.
Um sentimento que será para sempre lembrado. A bênção implicava na necessidade de tomar uma decisão, na urgência de definir um rumo para o desejo que nascia em seu íntimo.
Era espantosa a reação causada por aquela jovem mulher. Os olhos dela, cor de mel, fixaram-se em Harry, cheios de promessas. Os lábios semi-abertos sugeriam sedução, como se pedisse para ser beijada, reconhecendo a magia que acabava de surgir entre os dois.
Uma visão impossível de esquecer.
Incapaz de soltar a cintura da jovem, ele lhe cobriu os lábios com os seus. Sentiu-se à vontade, empolgado e comovido.
Quem era aquela moça? O gosto dela permanecia na boca de Harry, desafiando o senso de conveniência. Ela havia ficado imóvel por alguns segundos, depois se derretera na busca de um contato estreito e caloroso. Vestígios de sanidade e conduta racional se evaporaram no beijo que lembrava ondas indo e vindo no leito do mar.
Ilha de Beannacht. A lembrança do lar e do objetivo da viagem à América esvoaçou pela mente de Harry. Para o irmão Neville, a aventura era injustificável e desnecessária. O que ele diria se soubesse que uma desconhecida havia se intrometido no caminho? Recuou, de certo modo grato pelo fim das sensações que evocavam uma tempestade, mas também ansioso para beijar de novo aquela mulher.
Um pequeno grupo de pessoas se juntou no local do acidente. Com um brilho nos olhos, a jovem empertigou-se à frente de Harry, calada. Por sobre a cabeça dos transeuntes, ele viu que as velas do navio começavam a se enfunar.
A bênção certamente não incluía a perda de seu horário de viagem. Era preciso recuperar as malas e embarcar a tempo de partir para a Califórnia com todos os seus sonhos e esperanças.
— Lamento não poder conhecê-la melhor, senhorita.
Para Harry, a jovem de Boston representava o batismo da sedução feminina em terras estranhas. Desatando o chapéu, ela libertou os cachos e provocou nele a vontade de enterrar os dedos naquelas madeixas sedosas e deleitar-se novamente com os lábios sensuais.
— Eu mesmo teria parado a carruagem se soubesse que o prêmio seria um beijo — disse em voz alta um marinheiro atlético, em meio ao grupo de curiosos que já começava a se dispersar. — É hora de embarcar.
— Sinto muito por ter atrasado o senhor — a jovem finalmente deu a conhecer sua voz suave. — O acidente não estava em meus planos. Mas poderia me ajudar a socorrer meu cocheiro antes de entrar no navio?
A voz melodiosa encantou Harry, assim como a gratidão que viu nos olhos dela,
— Vou tentar, senhorita...
— Weasley — ela informou, erguendo o queixo antes de estender a mão delicada para um leve cumprimento. — Ginevra Molly Weasley.
Era um nome imponente. Ela agitou a cabeça, fazendo os cabelos balançarem em mais um gesto de altivez, como se desejasse receber outro beijo.
Um suspiro substituiu a resposta de Harry, que a fitava nos olhos. Ela curvou o corpo e examinou o chão debaixo da carruagem acidentada. Parecia não se importar em sujar a roupa, ao ajoelhar-se caso fosse preciso.
— Remus? Onde está?
— Aqui, senhorita. Minha perna. — Ouviu-se um gemido. — Estou preso debaixo da roda.
— Oh, não! — Gina ergueu-se, e seu olhar pousou em Harry, num pedido implícito de ajuda.
— Deixe-me ver. — Ele a afastou do local e agarrou com firmeza a borda da carruagem, procurando erguê-la.
Acabou conseguindo, com o auxílio de alguns homens ainda presentes ali.
O cocheiro acidentado rolou o corpo para o lado em segurança. Ginevra Weasley não perdeu tempo com agradecimentos. Posicionou-se ao lado de Remus e demonstrou consternação.
— Precisamos levá-lo a um ambulatório — ela disse.
Precisamos? A despeito de se mostrar solidário em relação ao homem da perna ferida, Harry assombrou-se com a rapidez com que Gina passara de mulher atraente a boa samaritana.
O agente portuário o havia alertado sobre a hora da partida. Restavam-lhe alguns minutos, mas ele não podia negar-se a socorrer o ajudante de Gina, após tê-la beijado tão escandalosamente. Ergueu o cocheiro pelo torso e transportou-o até a cabine da carruagem, onde o acomodou da maneira mais confortável possível.
Ela agradeceu e perguntou-lhe como se chamava. Mas antes que Harry pudesse responder, ouviu-se uma voz trovejante perto do veículo:
— O que o senhor pretendia ao roubar minha égua?
Harry reconheceu o timbre da voz que protestara em altos brados quando ele havia se apropriado da montaria, para correr atrás da carruagem desgovernada.
— Não se tratou de roubo, senhor. Seu cavalo era o meio mais próximo para salvar esta senhorita de um acidente grave.
O homem alto e de bigode fino, aparentemente um rico proprietário de terras, examinou Harry da cabeça aos pés.
— Foi muito atrevimento de sua parte, isso sim. Como ousou pôr suas imundas mãos irlandesas num animal que me pertence? Vou chamar a polícia para prendê-lo imediatamente!
— Por favor! — interveio Gina. — Este cavalheiro salvou minha vida e a de meu cocheiro. A família Weasley será eterna devedora a ele e ao senhor.
A visão do navio afastando-se do cais, devagar e milimetricamente, abateu o ânimo de Harry. Não era possível que a bênção dos Potter comportasse aquele castigo: esfriar a cabeça e os pés por uma semana, comprar outra passagem para a Califórnia e aguardar o embarque numa cidade onde os irlandeses eram odiados. Talvez fosse mesmo maldição, em vez de dádiva.
— Família Weasley, a senhorita disse? — Com as sobrancelhas arqueadas, o homem fitou Gina com renovado interesse. — Parente de Arthur Weasley?
— É meu pai.
— Ah, desculpe-me, srta. Weasley— O ar reverente do intruso suavizou as feições duras. — Sou Valter Dursley e tenho seu pai em grande apreço. Como conheceu este... cavalheiro?
O gesto de Dursley na direção de Harry deixou claro seu menosprezo. Vermelho de raiva, ele teria agredido o sujeito, caso Gina não estivesse entre eles.
— Ele se chama...
— Harry Potter — apressou-se a dizer, respondendo por ela.
— Vai trabalhar na propriedade da família, portanto pode confiar nele plenamente. —Acrescentou Gina com serenidade.
— Trabalhar na propriedade? — Dursley mostrou ceticismo. — Tem certeza?
— Sim. — De modo encantador, ela ajeitou alguns cachos rebeldes. — Agora, sr. Dursley, se nos dá licença, temos de levar meu cocheiro até o médico. Obrigada pelo empréstimo da égua e esteja certo de que mencionarei essa gentileza a meu pai.
Dando as costas ao dono da égua, Gina encarou Harry.
— Vai me ajudar a socorrer Remus, não?
O que ele poderia fazer, além de engolir a desfeita de Dursley? Não tinha outros planos para os dias subsequentes.
— Preciso recuperar minhas malas, que foram roubadas debaixo do meu nariz.
Harry pensou em como Carlos lidaria com as injúrias preconceituosas sofridas pouco antes. Por certo, com fria lógica e aconselhamento profissional de um advogado. E Neville? O mais velho dos três provavelmente já teria esmurrado quem quer que falasse tão desrespeitosamente com um Potter, e depois beijado a srta. Weasley sem cerimônia, evitando que uma mulher o defendesse em público.
— Sr. Potter, pode me auxiliar ou não?
Deixando de lado os devaneios, ele estendeu a mão, a fim de ajudar Gina a subir à cabine da carruagem. Por um instante, hesitou em sofrer o efeito de um novo contato físico. Quentes e suaves, mesmo debaixo das luvas, os dedos dela produziram uma onda de anseios em seu íntimo, mas dessa vez sem nenhum som de tempestade. Teria ele imaginado todo o episódio relativo à bênção?
Acomodando-se no veículo, ao lado do cocheiro ferido, ela censurou-se por haver dado seu nome inteiro ao irlandês. Por mais que amasse a avó e a mãe Molly, ela geralmente simplificava as coisas dizendo chamar-se Ginevra Weasley. Admitiu, no entanto, que a presença de um serviçal ferido na cabine trazia um pouco de distração à torrente de emoções que a acometia.
O corajoso ato de resgate praticado por Harry Potter e as liberdades que ele tomara ao agarrá-la haviam despertado sensações cuja existência ela nunca ousara reconhecer. Iam muito além das histórias românticas de final feliz que a avó lhe contava ou dos contos de fada que simplesmente detestava.
Gina murmurou a Harry instruções sobre o caminho para o ambulatório mais próximo e viu que ele subia à boleia, apanhando as rédeas. Estava fora de cogitação uma dama da sociedade conduzir a própria carruagem. E viajar à vista de todos, ao lado de um desconhecido, também despertaria falatórios.
Restou-lhe arrumar as camadas de tecido da roupa, preocupada em não se apresentar malvestida nem ruborizada pela intimidade do beijo que Harry roubara.
Seus lábios, contudo, ainda tremiam à lembrança do longo e sensual contato com a boca masculina. Instintivamente, ela havia efetuado alguns movimentos de rotação, de modo a fruir melhor uma carícia da qual só tinha conhecimento teórico.
Harry manobrou a carruagem para o lado oposto ao do armazém. Passou perto do guichê de passagens e parou para decidir o que fazer. Limitou-se a olhar, furioso, para o pontilhão onde fora ofendido e roubado por dois assaltantes inescrupulosos.
Como não tinha dito para onde pretendia viajar nem o que viera fazer em Boston, continuava sendo um completo desconhecido para Gina, que, de repente, sentiu medo da situação. Mais medo do que quando a carruagem havia disparado sem rumo pelo cais. Assim, ela decidiu tomar uma atitude prudente.
— Remus está bem — disse quando Harry surgiu à janela. — Acho melhor levá-lo para minha casa e chamar o médico da família, o dr. Raymond. Ele é perito em colocar tala numa perna quebrada. — Ela estranhou que o irlandês estivesse de mãos vazias. — E os seus pertences?
— Sumiram. Foram levados.
— Como foram levados? Talvez um de seus amigos os tenha guardado.
— Não conheço ninguém aqui, com exceção da senhorita, de Remus e de Dursley. Perdi meu navio e agora fiquei sem dinheiro, sem nenhuma peça de roupa e sem os mapas que me guiariam na Califórnia. É como se eu estivesse numa ilha deserta.
Um sentimento de culpa invadiu Gina. Harry deixara os próprios interesses de lado para resgatá-la.
— O senhor deveria reportar o roubo das malas às autoridades.
— Não vão se preocupar com tão pouco... — O sarcasmo de Harry a incomodou, mas não a desanimou. Ele a havia salvado, e cabia a ela retribuir o favor.
— Faço parte de uma associação paroquial que abriga pessoas sem teto — ela informou. — Além disso, solicitarei a meu pai uma recompensa para o senhor. Tenho certeza de que ele não irá recusar meu pedido.
— Srta. Weasley, nenhum membro da família Potter aceita esse tipo de caridade, mesmo oferecida com tanto encanto. — O queixo erguido e os olhos faiscantes de Harry indicaram que a proposta não lhe era tão atraente quanto ela pensara.
— E o que fará?
— Vou levá-la até sua casa, como prometi, e depois tentarei a sorte do melhor modo possível.
— Sem dinheiro? Sem trabalho? É impossível!
As vezes, admitiu Harry em silêncio, os irlandeses eram teimosos em excesso. Achava-se sozinho e sem recursos em Boston, e ainda assim, por orgulho, recusava a ajuda que Gina lhe oferecia.
Era demais para um só dia, ela pensou. Além do incidente com a velha carruagem e do impetuoso beijo recebido de um estranho, sua mãe desaprovava fortemente seus passeios pela região das docas. Mais ainda quando ia para lá sem a companhia de Hermione Granger, a filha do pastor anglicano, sua melhor amiga, mais esperta e menos ingênua quanto aos fatos da vida.
Pior, Gina imaginou que a reação da mãe seria privá-la da carruagem durante a convalescença do condutor Remus.
— Por que não se comporta como uma jovem refinada, e elegante a exemplo de sua irmã? — diria a grande dama Molly Weasley. — Onde encontrarei outro cocheiro de confiança?
Em causa própria, Gina desejou a breve recuperação de Remus. Ele não tivera culpa na colisão lateral da carruagem com um armazém do porto, pois o coche havia se desgarrado. Depois de arremessada contra a parede da cabine, ela fora beijada com paralisante atrevimento por um completo desconhecido. Suas costas já não doíam depois do choque, mas os lábios ainda transmitiam à mente sinais de arrebatamento como nunca havia sentido.
Talvez Harry provasse ser a resposta para seus problemas. Ela o instruiu quanto ao caminho de casa, mas escondeu o plano que acabara de formular: fazer o irlandês escolher entre um prato de comida quente e um alojamento limpo como empregado da fazenda paterna e a penosa solidão nas ruas de Boston.
Seguramente, ela convenceria o pai a oferecer ao rapaz condições mínimas de subsistência, ao menos por algum tempo.
O cansaço pesou nos ombros de Harry como durante o trabalho que costumava realizar nas plantações da ilha de Beannacht. A enormidade de seu sofrimento — sem um tostão, numa cidade hostil em um país estranho — espalhava maus presságios sobre o futuro. Os obstáculos pareciam intransponíveis.
No entanto, conduzindo a carruagem, sentia-se vivo graças à proximidade de Ginevra Weasley. Seu penar comparava-se às semanas de desidratação trazidas pelos enjoos em alto-mar. Mas nos braços daquela bela jovem ele havia encontrado um santuário; nos olhos, promessas; nos lábios, um gosto de mel e a sensação de estar em casa. Caso ele largasse as rédeas e a abraçasse uma vez mais, talvez pudesse afastar as dúvidas e as restrições a que se impunha.
Uma pontada no estômago o trouxe de volta ao mundo real. Ele precisava alimentar-se, clarear as ideias, não acalentar desejos voluptuosos nem fantasias infantis quanto à bênção que pairava sobre a família Potter. Deixar-se levar pelo coração só lhe trouxera o desastre. Ginevra Weasley já havia lhe custado bastante. Assim que a visse em segurança no próprio lar, junto com o cocheiro, ele cuidaria de si mesmo.
Como, ele ainda não sabia.
Pelo menos, não fora forçado a discutir com ela a questão do alojamento, do emprego, da recompensa. A última coisa que precisava era de uma bem-intencionada mas iludida salvadora, por mais bonita e sedutora que fosse. Um amigo da universidade, na Irlanda, ensinara-lhe que, se um homem concentrasse todas as suas esperanças numa mulher, o desastre pessoal seria inevitável.
O sol do entardecer fazia brilhar o suor no lombo dos cavalos, embora Harry estivesse atravessando um bairro agradável, todo ajardinado, e não mais uma fileira de armazéns portuários. De passagem, contemplou ricas mansões e pensou na fortuna que tinha perdido ao deixar de embarcar para a Califórnia.
Não possuía nem uma camisa para trocar nem moedas suficientes para comprar um filão de pão. Achava-se em situação de penúria. Com isso, era o candidato ideal à caridade que Gina lhe oferecera. A ideia, porém, machucava seu ego.
O que o havia levado a subir em uma banheira flutuante, no porto irlandês de Limerick, e desembarcar na América? O desejo de ficar rico? De salvar a família da ruína? Neville e Carlos provavelmente partilhariam uma grande gargalhada se soubessem de suas desventuras. Dispensáveis, aliás, porque juntos os irmãos encontrariam solução para os problemas da ilha, tanto na fazenda quanto na empresa de construção naval.
Harry quisera dar a si mesmo uma prova de capacidade. Como? Tentando participar da corrida ao ouro que se dava na Califórnia, da qual o mundo tinha notícia como o achado, pouco trabalhoso, do tesouro do pirata. Fiel a seu desejo, à sua necessidade, ele nem mesmo tinha recorrido a um navio dos Estaleiros Potter para viajar.
Droga!, praguejou em silêncio. Tão logo pudesse, procuraria aqueles ignorantes que o haviam recebido em Boston a socos, pontapés e injúrias, a fim de dar-lhes uma lição. Esse era um pensamento reconfortante, embora dificilmente concretizável. Estava ali por sua conta e risco.
Distraído, perdeu o rumo da casa dos Weasley, mesmo porque não conhecia a cidade. Parou a carruagem e foi à janela da cabine, consultar Gina. O cocheiro Remus seguia dormindo, estirado no assento. A perna projetada para a frente tinha manchas de sangue, mas não parecia fraturada, de modo que a decisão de Gina de tratá-lo em casa impunha-se como sábia.
Enquanto Remus lembrava uma pessoa sedada ou entorpecida, o que era uma boa maneira de combater a dor, a srta. Weasley exibia um rosto brilhante de expectativa, com os olhos luminosos e pequenos cachos escapando do chapéu. A postura calma e estática, contudo, escondia o ímpeto com que tinha beijado Harry.
Ao vê-lo, ela baixou o olhar até as mãos enluvadas e depois ajeitou os cabelos, numa sucessão de gestos elegantes. Por sua vez, Harry focou os lábios delicados, como que sentindo-os de novo colados aos seus. Vento forte, tempestade, relâmpagos: a bênção dos Potter manifestando-se outra vez...
Na verdade, o fervor com que correspondera ao beijo desmentia a elegância que ela trazia do berço. A aparência serena disfarçava um coração vulcânico. Ele não queria ser injusto, mas nada naquele dia nefasto justificava que fosse embora de repente. Então, começou a compreender...
Não podia dizer adeus a Gina antes de conhecê-la melhor, de descobrir os poderes de sua bênção, de avaliar a dimensão da dávida que recebera.
— Diga-me — falou, após gravar na mente as instruções para o trajeto —, como sua mãe veria a conversa entre um irlandês empobrecido e uma dama americana como a senhorita?
Gina o fitou com aparentes segundas intenções. Ela realmente não era a jovem tímida e recatada que gostava de representar. O brilho de inteligência e malícia em seu olhar fez com que Harry mergulhasse em fantasias inconfessáveis.
— Não se esqueça de virar à esquerda na próxima esquina — ela murmurou. — Quanto à minha mãe, provavelmente desaprova qualquer conversa que eu venha a ter com um homem. Mesmo assim, estou satisfeita por ter merecido a atenção do senhor.
A despeito da orgulhosa observação, ela mantinha um tom de voz que parecia música aos ouvidos de Harry, após tantos dias escutando o linguajar duro dos marinheiros. Um leve aroma de camomila, misturado a gengibre, enchia de doçura as narinas dele.
— Com qual objetivo a senhorita quis merecer minha atenção? — indagou, aflito para retomar as rédeas e pôr a carruagem a caminho. — E o que sua mãe tem a ver com isso?
— Notei que os homens frequentemente se irritam quando frustrados ou desprovidos de dinheiro. Lembrar a existência de nossas mães pode acalmá-los.
— Como assim?
— O senhor deve parar de cultivar o passado e concentrar-se no futuro. É o que minha avó lhe diria. Quando o objetivo é grande e as chances são pequenas, vale a pena arriscar-se a algum desconforto pessoal. Use o passado como guia, não como praga, enquanto olha para a frente. — Gina balançou a cabeça, para enfatizar suas palavras. — Praguejar contra o destino não mudará nada, sr. Potter. A atitude, sim.
A verdade contida no conselho despertou um calafrio no íntimo de Harry, causando-lhe uma repentina tristeza.
— Sua avó é parecida com a minha, que já se foi. Ela me recontaria a história de um bravo guerreiro irlandês que gastou tanto tempo lamentando uma batalha perdida que deixou de planejar a seguinte. E foi derrotado outra vez.
— O senhor ouvia muitas histórias quando criança?
— Velhos contos de tempos antigos, mas sempre relacionados com minhas necessidades imediatas.
Felizmente, Gina mostrou-se sensível às lembranças de Harry. E quanto ao resto? Ele aceitaria trabalhar com o pai dela e, assim como outros empregados, dissiparia seus ganhos numa taverna?
Precisava de emprego e abrigo. No cais, embarcações partiam a toda hora. Uma boa alternativa seria engajar-se na tripulação de um navio qualquer. No entanto, qual comandante empregaria um marujo com aparência de cavalheiro? Além disso, sua intuição o instava a permanecer em Boston, onde tinha experimentado o poder da bênção. Se fosse verdadeiro o que sentira por Gina.
O que a bênção dos Potter realmente havia lhe transmitido ao avistar, de passagem, Ginevra Weasley dentro da carruagem? Perdera o navio no afã de resgatá-la de um acidente e a tivera nos braços durante um beijo ardente. Era uma maldição, digna de pragas, ou a preciosa dádiva que agira no sentido de retê-lo na cidade?
Por um bom tempo, ele havia deixado de pensar na antiga bênção da família, segundo os relatos da avó. A fisionomia da velha senhora aos poucos se apagava de sua memória, mas ele ainda se lembrava do sorriso, dos olhos azuis, do perfume de lavanda e, sobretudo, da atmosfera mágica que a avó sabia criar em torno de si.
Nas sessões de histórias contadas aos netos, a bênção sempre era a última. Uma reviravolta para todos os Potter, uma marca indelével em suas vidas. Neville e Carlos podiam ter motivos para pleitear uma manifestação desse dom sublime, mas o que ele, Harry, fizera para merecê-lo?
Saber reconhecer o instante mágico é a nossa tarefa, o resto virá naturalmente, haviam dito seus irmãos muito tempo atrás.
Decerto, o estranho fenômeno sentido por Harry apenas provava como a decisão de buscar outras terras embutia uma maldição, evidenciada pela perda de suas posses e do dinheiro.
Por oitenta e uma gerações, os Potter terão de optar entre a alegria e a tristeza, escolhendo a bênção ou a maldição. Ecos das narrativas da avó lhe tomavam a mente. Ele teria de encontrar uma saída da dificuldade, por mais tentador que fosse aceitar ajuda do pai de Gina ou dos vários associados de Neville no porto de Boston.
— E agora, o que eu faço? — pensou em voz alta, medindo o tamanho dos obstáculos a superar.
— Siga sempre em frente, até Brookline — respondeu Gina, tirando-o do devaneio.
Na cabine, ela tocou o ombro de Remus, a fim de consolá-lo, garantindo que logo o médico da família cuidaria dele. Sentiu o novo ritmo da carruagem conduzida por Harry e comparou-o ao ímpeto do beijo escandaloso que recebera. Procurou barrar a ideia de que poderia se tornar um divertimento para aquele esperto irlandês, cujas mãos tinham tocado seu corpo enquanto a descia do veículo.
Teve vontade de rogar uma praga. No entanto, a ousadia e o raciocínio rápido de Harry a haviam salvado de sofrer ferimentos graves, a um custo pessoal muito grande para ele. Praticamente continuava à disposição dela, pensamento que a satisfez. Mas, ao mesmo tempo, o orgulho do irlandês o levara a recusar com antecedência, apesar da situação de penúria, uma recompensa ou um emprego na propriedade da família Weasley, o que era incompreensível.
Melhor seria preparar-se para um severo interrogatório por parte de seus pais. Valter Dursley havia sido testemunha do incidente e até acusara Harry de roubo de um cavalo. Gina mordiscou os lábios ao imaginar que Dursley também pudesse ter visto o beijo e com certeza não hesitaria em contar tudo aos familiares dela, provocando mais um desentendimento.
Num primeiro momento, porém, a história do acidente e os cuidados com o cocheiro ferido mobilizariam a família Weasley. O ato heróico de Harry valeria as graças de todos.
Olhando pela abertura interna da cabine, Gina comprovou a destreza do irlandês com as rédeas. Talvez essa habilidade trouxesse a solução para os problemas de ambos, ao menos para os imediatos.
Por certo, ele tinha experiência com montarias, como comprovava o salto perfeito que dera ao lombo da égua, colocando-a na perseguição da carruagem desgovernada. Muita gente o havia visto em ação, e algumas das pessoas presentes ao cais poderiam ser conhecidas de seus pais, e seriam capazes de atestar o cavalheirismo de Harry Potter, salvando-o dos mexericos de Dursley.
Finalmente, a carruagem chegou a uma grande praça circular gramada, onde um grupo de crianças brincava. Era o antigo pasto de uma aldeia colonial, e agora quase todas as cidades da Nova Inglaterra, onde se situava Boston, possuíam um espaço semelhante, chamado de logradouro.
Nova Inglaterra? Harry havia estudado História na Universidade de Dublin e sabia que a expressão denominava os Estados do nordeste dos Estados Unidos, por onde começara a colonização. Mas, uma só Inglaterra, a velha, não bastava para atormentar os irlandeses?
Ele sorriu ao formular o conceito e imaginou que Ginevra Weasley se surpreenderia ao descobrir que ele tinha frequentado uma universidade. Não deveria. Seu linguajar era mais refinado do que a média dos marinheiros e trabalhadores em geral; as mãos não apresentavam calos como as de um operário comum. Obviamente, ela prestara mais atenção aos amigos ricos do pai do que a ele.
Harry contornou a praça. Nas proximidades de casa, Gina olhou pela janela da carruagem e notou um coche aberta, em marcha lenta, brilhando por causa dos enfeites de metal na estrutura de madeira nobre. Seu coração ficou apertado. Os ocupantes do veículo eram inconfundíveis: a mãe e a irmã de Draco Malfoy.
Gina tratou de afundar-se em seu assento, a fim de se esconder. A mulher idosa exibia um grande chapéu preto, adornado com uma pena lilás de pavão. O acessório flutuava ao vento, sem atenuar as feições severas. Sua jovem acompanhante, de cabelos negros e pele muito alva, era a filha Pancy, que lançou um olhar especulativo a Harry quando as duas carruagens se cruzaram.
A própria mãe de Gina ficaria duplamente furiosa com suas aventuras daquela tarde se ela, de algum modo, ferisse as veleidades da sra. Malfoy. Como a carruagem da família era reconhecível, embora conduzida por outro cocheiro, Gina colocou a cabeça para fora e saudou as duas mulheres com um sorriso que feneceu tão logo a carruagem dos Malfoy passou.
Ela rezou para que sua aparência indicasse somente uma moça tranquila a passear na tarde ensolarada. Nos bastidores dessa atitude, existia uma dura batalha contra as esperanças da mãe, Molly Weasley, de casá-la com o jovem Draco. Gina não estava pronta para isso. Sobretudo depois que a irmã de Draco espalhara maldades sobre Hermione, sua melhor amiga.
Harry estacionou a carruagem na frente do casarão indicado por Gina. Não lhe custava nada assumir por completo o papel de serviçal e abrir a porta para ela descer. Além disso, o debilitado Remus precisaria de ajuda para entrar em casa.
— Obrigada. — Ela aceitou a mão estendida de Harry. Decidiu retomar a conversa com ele, antes que, no interior da residência, o diálogo se tornasse impossível ou inconveniente. — O senhor não deve se importar com o preconceito contra os irlandeses. Como sabe, há motivos históricos e, em geral, são expressos por pessoas ignorantes.
— Ignorantes? — Harry fixou o olhar descrente em Gina.
— Bem, há um grupo de políticos e homens de negócios que se promovem denegrindo os outros. — Ela omitiu o fato de que o próprio pai fazia parte dessa organização. — Pensam ser melhores do que a maioria das pessoas e nem percebem a estreiteza de suas mentes.
— A maioria das pessoas de origem irlandesa, a senhorita quer dizer...
Harry tinha problemas demais para ficar debatendo, na calçada, os preconceitos contra os nativos de seu país, mas percebeu que Gina se mostrava sinceramente embaraçada com as ofensas feitas por seus conterrâneos.
— O fato é que os barcos que ancoram em Boston também partem daqui para outras terras, levando notícias da riqueza dos Estados Unidos da América e da generosidade de seu povo — ele prosseguiu.
Gina estudou o rosto expressivo de Harry, que transmitia força e determinação. Julgou identificar algum sarcasmo naquelas palavras.
— De qualquer modo, veio para cá. Por quê?
— A senhorita mesma disse que, quando o objetivo é grande e as chances são pequenas, vale a pena arriscar-se a algum desconforto pessoal.
Intrigada, Gina não conseguiu barrar as novas questões que a situação impunha.
— Mas, e quanto ao senhor, Harry Potter? Seu sonho é grande? Ou o senso de aventura é maior? Foi forçado a abandonar sua terra por falta de opções? — No fundo, ela invejava o espírito livre de Harry, que o trouxera a Boston pelo oceano, a despeito das dificuldades e sem dever explicações a ninguém.
— Eu lhe contarei de bom grado a minha história, srta. Ginevra Weasley, se primeiro me contar a sua. — Harry sorriu de maneira irresistível.
— O que deseja saber? — Ela estremeceu diante do desafio.
Tinha aprendido, na vida social de Boston, que poucas pessoas querem enxergar além das aparências, descobrindo a verdadeira alma que pulsa sob os trajes, as jóias, os gestos, as palavras. Vez por outra, ela tentava conhecer melhor os que a cercavam e se assombrava com a decepção que sofria.
— Quero saber tudo. Morou aqui a vida inteira? Que tipo de trabalho seu pai executa? Tem irmãos ou irmãs? Quais são suas metas, suas escolhas? O que fazia uma moça refinada como a senhorita no meio da confusão do porto?
Harry teve de bater de leve no pescoço dos cavalos, que se agitaram ante a aproximação de outra carruagem pela esquina da rua Charles. Provavelmente, os animais tinham sede e fome, e necessitavam de cuidados tanto quanto o pobre Remus, que, resignado com sua sorte, voltara a dormir no interior da cabine.
O barulho das rodas levou-o acercar-se protetoramente de Gina. Ele a cingiu pela cintura, e ela mais uma vez inalou um sopro de almíscar vindo do corpo masculino. Lembrou-se das florestas do Maine, seu verdadeiro lar.
Sem clima para um novo beijo, sobretudo na frente da casa de Gina, ele recolheu as mãos, recuou e ficou esperando respostas às suas dúvidas.
— Meu pai está no ramo de investimentos, e fico horrorizada com a ideia de sucedê-lo no mesmo trabalho. Gostaria de, um dia, negociar madeira. E vou às docas toda semana, a fim de conseguir doações de alimentos para uma missão de caridade chamada Filhas da Graça, da qual participo.
Ela suspirou com certo orgulho. Conseguira dar retorno, de maneira resumida e convincente, às indagações de Harry.
— Incrível, srta. Weasley. Então, pretende possuir uma madeireira?
Os cantos dos lábios dela se curvaram no esboço de um sorriso. O que lhe dera para expor seu sonho secreto tão abertamente? A maioria dos homens que conhecia, a começar pelo pai, iria considerar ridícula, senão escandalosa, a ideia de uma mulher gerenciar um ramo de negócios tão... masculino. Caso Harry risse, ela seria capaz de dar-lhe um tapa e fugir para dentro de casa.
— Minha avó dirigiu uma madeireira no Maine por mais de trinta anos — acrescentou Gina.
Mas Harry não riu. Ao contrário, fez comentários pertinentes ao assunto, levando-a a considerar a hipótese de contar-lhe mais sobre seus planos, mais do que ela já havia confidenciado à amiga Hermione. Repassou na mente a visita de verão ao Maine, a admiração pela avó, a impaciência com a vida vazia à qual estavam predestinadas todas as moças de sua classe social.
— É hora de agirmos — ele disse de repente. — Levarei Remus até a porta, e a senhorita chamará um criado para ajudar. Então, me despedirei.
— Nada disso — discordou Gina. — Vai entrar e ser apresentado à família. Poderá jantar, dormir e receber uma recompensa antes de partir. Meu pai não me negará um pedido.
— Esqueça. Quero voltar às docas e ver o que consigo arranjar. — A falta de ênfase na frase a fez pensar que não seria difícil convencê-lo a ficar.
— Veremos.
Um gemido de dor os mobilizou para o atendimento a Remus, que já despertara. Jiintos, puxaram o cocheiro para fora da cabine. Harry o segurou pelos ombros.
— O portão está aberto — informou Gina. — Nos fundos da casa, o senhor encontrará a entrada para a cozinha e a ala da criadagem. — Ela se dirigiu a Remus, que ainda reclamava de dor: — Já chegamos, Remus. Deve deitar-se e aguardar o dr. Raymond. Vou chamá-lo imediatamente, bem como avisar sua esposa. Ela cuidará bem do senhor até o médico aparecer.
À frente de Harry, Gina venceu a trilha larga de cascalho. Paradas ali, uma charrete e a égua alazã atrelada lhe proporcionaram uma visão confortadora. O reverendo James Granger estava na casa, cumprindo sua visita semanal; sendo assim, sua mãe não armaria nenhuma cena em função de seu comportamento indevido, ou mesmo perigoso, depois que tomasse conhecimento dos episódios daquela tarde.
E, caso Hermione Granger tivesse acompanhado o pai, as duas jovens poderiam unir-se na tentativa de convencer Harry a concordar em pernoitar ali e a aceitar uma recompensa em dinheiro. Por tudo que lhe devia, Gina não queria deixá-lo partir de mãos vazias.
— Se o senhor trouxer Remus até a cozinha — ela disse com firmeza —, as criadas tomarão conta dele. Só não chamo nosso mordomo, Marbury, para ajudar, porque está muito velho e fraco. Mas na cozinha o senhor também encontrará Colin, o cavalariço, que poderá guardar a carruagem e cuidar dos animais no estábulo. Desculpe-me por lhe causar tanto esforço.
— Já que cheguei até aqui, senhorita, não deixarei o trabalho pela metade — respondeu Harry, satisfeito por demonstrar força física.
Ela abriu a porta da cozinha e, de imediato, ouviu a sra. Marbury, mulher do mordomo e governanta da casa, interpelá-la em tom espantado:
— Onde esteve, srta. Margaret? O reverendo e a filha estranharam sua ausência. A sra. Weasley mandou procurá-la várias vezes. Era esperada para discutir os planos para a grande festa do chá, no mês que vem.
— Eu me esqueci — Gina se justificou, angustiada porque sua presença era importante no planejamento do evento anual promovido pelas Filhas da Graça.
— O que houve com o cocheiro? E quem é esse senhor? — No rosto redondo da sra. Marbury, era visível a indignação.
— Remus feriu-se num pequeno acidente com a carruagem. — Naquele momento, Gina decidiu ser sucinta nas informações, a fim de não criar mais problemas para si nem para Harry.
— Feriu-se? — Só então a mulher notou a perna machucada de Remus.
— Este cavalheiro nos socorreu e foi bondoso o bastante para nos trazer até em casa.
Harry gostou de ouvir o termo "cavalheiro", o qual a governanta nem cogitava. Ele acomodou Remus numa cadeira, entregando-o aos cuidados das criadas.
— Peça a Lucy que chame o dr. Raymond imediatamente — ordenou Gina, preocupada com a lerdeza das mulheres.
—Acha que devemos deitá-lo na cama? — indagou a sra. Marbury. — Isto é, se a perna não estiver quebrada?
— Não está — interveio Harry, cansado de tanta vacilação.
— É melhor deixá-lo sentado — Gina opinou —, para não assustarmos Tonks. — Era a esposa de Remus e a principal cozinheira da casa.
Por um instante, Gina sentiu-se carente. Almejava ter as mãos fortes de Harry Potter circundando sua cintura, a boca pressionando seus lábios de novo. Nunca havia imaginado que um beijo produzisse tal cascata de fogo em seu íntimo. Talvez fosse uma reação nervosa ao acidente, um indício da ansiedade por retornar logo para casa, sã e salva. Agora, olhando discretamente para ele, entendeu que desejava estar de volta às docas, nos braços de Harry.
— Convém se apressarem com os curativos, enquanto o médico não vem. — Ele apontou para Remus, que lutava para esconder o mal-estar, embora rugas de dor surgissem em sua testa.
— Fique parado, Remus — aconselhou a sra. Marbury. — Este simpático jovem o trouxe até aqui. Não faz sentido mexer-se ou levantar-se antes que o médico o veja.
— O que aconteceu com Remus? — Colin entrou na cozinha, com os olhos brilhantes de curiosidade, como só um garoto de doze anos poderia demonstrar.
— Fique tranquilo — a governanta tranquilizou o menino.
— Recolha e limpe a carruagem, depois alimente os cavalos. A patroa precisará dela esta noite, para ir a uma recepção.
Um resmungo por parte de Remus despertou a sensação de culpa em Gina. Havia obrigado o cocheiro a levá-la até as docas, e isso poderia custar-lhe o emprego. A mãe ficaria aborrecida se não comparecesse à festa dos Malfoy, por causa de um contratempo que, com certeza, atribuiria à desatenção de Remus. Este, por sua vez, sofria por ter falhado no controle da carruagem em disparada pelo cais.
— Venha, srta. Gina. — A sra. Marbury a enlaçou amistosamente pelo ombro. — Vou acompanhá-la até seu quarto, onde poderá recompor-se e ficar apresentável para pedir desculpas ao reverendo pelo atraso.
Gina consultou Harry por meio de um olhar. Com a expressão neutra, ele não apoiava nem repreendia qualquer iniciativa dela, deixando-a livre para decidir o que julgasse melhor. Não parecia constrangido nem irritado com a situação. Ela notou apenas o extremo cansaço que o dominava, fator que o fez desabar numa cadeira, talvez ansiando pelas mesmas compressas quentes que Remus recebia das criadas.
Os empregados da casa haviam elegido Harry um herói. Diante disso, Gina achou que ele não sairia correndo dali para as docas antes de conversarem de novo. A habilidade de Harry com pessoas e cavalos lhe garantia um belo trunfo, caso concordasse com o plano que ela tinha elaborado ao longo do caminho de volta.
— Não permita que o sr. Potter vá embora, mesmo depois que Remus for medicado — Gina sussurrou, por via das dúvidas, no ouvido da governanta.
— Mas o que dirá seu pai quando souber que a senhorita trouxe um irlandês para casa? — questionou a sra. Marbury já no pé da escada.
— Como sabe que o sr. Potter é irlandês?
— Sei reconhecer um quando vejo.
— Irlandês ou não — argumentou Gina com autoridade —, o mínimo que podemos fazer, em troca da ajuda que nos prestou, é dar-lhe um prato decente de comida.
Harry precisaria estar bem alimentado, ela pensou, se conseguisse convencer os pais a adotar a solução que pretendia negociar.
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TODOS OS CRÉDITOS SÃO DA AUTORA ELIZABETH KEYS!!!
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