QUATRO



Quatro


 


Mas quando me sento no trem estou decidida a garantir que desta vez será melhor. Um dia desses estava assistindo a um programa de Cindy Blaine sobre o encontro de filhas e mães afastadas há muito tempo. Foi tão emocionante que, quando vi, as lágrimas estavam correndo pelo meu rosto. No fim Cindy fez um discursozinho sobre o quanto é fácil deixar de valorizar a família, que nossos pais nos deram a vida e que nós deveríamos adorá-los. E de repente eu me senti como se tivesse levado uma bronca.


Portanto, estas são minhas resoluções para hoje:


1) Não vou:


- Deixar minha família me estressar.


- Sentir ciúme de Lilá nem deixar Simas me irritar.


- Ficar olhando o relógio, imaginando quando posso ir embora.


2) Vou:


- Ficar serena, amorosa e me lembrar de que todos somos elos sagrados no eterno ciclo da vida.


(Peguei isso da Cindy Blaine também.)


Mamãe e papai moravam em Twickenham, onde eu cresci. Mas agora se mudaram de Londres para uma cidadezinha em Hampshire. Chego à casa deles logo depois do meio-dia e acho mamãe na cozinha com minha prima Lilá. Ela e o marido, Simas, também se mudaram – para uma cidadezinha a uns cinco minutos da casa de mamãe e papai, de modo que todos se vêem o tempo todo.


Sinto uma pontada familiar ao vê-las lado a lado perto do fogão. Mais parecem mãe e filha do que tia e sobrinha.  As duas têm o mesmo corte de cabelo – se bem que o de Lilá tem mais luzes do que o de mamãe -, as duas usam blusas de cores fortes com um decotão bronzeado e as duas estão rindo. Na bancada noto uma garrafa de vinho branco, já pela metade.


- Parabéns! – exclamo, abraçando mamãe. Quando vejo um embrulho na mesa da cozinha sinto um pequeno arrepio de antecipação. Comprei o melhor presente de aniversário para mamãe. Mal posso esperar para entregar a ela!


- Olá! – diz Lilá em seu avental. Os olhos azuis estão muito maquiados, e em torno do pescoço ela usa uma cruz de diamante que não vi antes. Cada vez que encontro Lilá ela está com uma jóia nova. – Que ótimo ver você, Hermione! A gente não se vê muito. Não é, tia Rachel?


- É mesmo – confirma mamãe, me abraçando.


- Posso pegar seu casaco? – sugere Lilá, enquanto coloco na geladeira a garrafa de champanhe que comprei. – E que tal uma bebida?


É assim que Lilá sempre fala comigo. Como se eu fosse uma visita.


Mas não faz mal. Não vou me estressar. Elos sagrados no eterno ciclo da vida.


- Tudo bem – digo, tentando parecer agradável. – Eu pego. – Abro o armário onde os copos são sempre guardados, e me vejo olhando para latas de tomates.


- Estão aqui – Lilá, do outro lado da cozinha. – Nós mudamos tudo! Agora está mais arrumado.


- Ah, certo. Obrigada. – Pego a taça que ela me estende e tomo um gole de vinho. – Posso ajudar em alguma coisa?


- Não... – responde Lilá, olhando criticamente a cozinha em volta. – Tudo está praticamente pronto. Então eu disse a Elaine – acrescenta ela para mamãe: - “Onde você comprou esses sapatos?” E ela disse que na M&S! Eu não pude acreditar!


- Quem é Elaine? – pergunto, tentando fazer parte.


- Do clube de golfe – informa Lilá.


Mamãe não jogava golfe. Mas quando se mudou para Hampshire, ela e Lilá começaram juntas. E agora só fico ouvindo sobre partidas de golfe, jantares no clube de golfe e intermináveis festas com pessoas do clube de golfe.


Uma vez eu fui junto, para ver como era. Mas em primeiro lugar, eles têm todas aquelas regras estúpidas sobre o que você pode usar e que eu não sabia, e um velho quase teve um ataque cardíaco porque eu estava usando jeans. Por isso tiveram de arranjar uma saia para mim e um par daqueles sapatos feios e com grampos na sola. E então, quando fomos para o campo, eu não consegui acertar a bola. Não estou dizendo que não conseguia acertar a bola direito: eu literalmente não consegui fazer contato com a bola. De modo que, no fim, todo mundo trocou olhares e disse que era melhor eu esperar na sede do clube.


- Licença, Hermione... – Lilá enfia a mão por cima do meu ombro para pegar um prato.


- Desculpe – falo e saio da frente. – Então, não há mesmo nada que eu possa fazer, mamãe?


- Pode dar comida ao Sammy – responde ela, entregando-me um vidro de comida para peixe. Ela franze a testa, ansiosa. – Sabe, eu estou meio preocupada com o Sammy.


- Ah – digo sentindo um espasmo de alarme. – E... por quê?


- Ele simplesmente não parece o mesmo. – Ela o espia no aquário. – O que você acha? Você acha que ele parece bem?


Acompanho o olhar dela e faço uma cara pensativa, como se estivesse examinando as feições de Sammy.


Ah meu Deus. Eu nunca achei que ela notaria. Me esforcei ao máximo para conseguir um peixe igualzinho ao Sammy. Quero dizer, ele é laranja, tem duas barbatanas, fica nadando... Qual é a diferença?


- Provavelmente só está meio deprimido – digo finalmente. – Ele vai superar.


Por favor, não deixe que ela o leve ao veterinário ou algo assim, rezo em silêncio. Eu nem verifiquei se ele é do sexo certo. Os peixes dourados têm sexo?


- Há mais alguma coisa que eu possa fazer? - Pergunto, jogando uma quantidade copiosa de comida de peixe na água, numa tentativa de bloquear a visão dela.


- Nós já resolvemos praticamente tudo – diz Lilá com gentileza.


- Por que não vai dizer olá ao seu pai? – sugere mamãe, passando ervilhas pela peneira. – O almoço ainda vai demorar uns dez minutos.


 


Encontro papai e Simas na sala de estar, diante do jogo de críquete na TV. A barba grisalha de papai está muito bem aparada, como sempre, e ele está bebendo cerveja numa caneca prateada. A sala foi redecorada recentemente, mas os troféus de natação de Lilá ainda estão na parede. Mamãe lhes dá polimento regularmente, toda semana.


E minhas duas rosetas de montaria. Acho que mamãe meio que passa o espanador nelas de vez em quando.


- Oi, papai – digo, dando-lhe um beijo.


- Hermione! – Ele encosta a mão na testa, fingindo surpresa. – Você conseguiu! Sem desvios! Sem visitas a cidades históricas!


- Hoje não! – Dou um risinho. – Cheguei em segurança.


Houve uma ocasião, logo depois de mamãe e papai terem se mudado para esta casa, em que eu peguei o trem errado e fui para em Salisbury, e papai sempre brinca comigo por causa disso.


- Oi, Simas. – Dou-lhe um beijo no rosto, tentando não engasgar com a quantidade de loção após-barba. Ele está com calça de sarja e blusa rulê branca e tem uma grossa pulseira de ouro, além de uma aliança com um diamante engastado. Simas administra a empresa de sua família, que fornece material de escritório para todo o país, e conheceu Lilá numa convenção para jovens empreendedores. Parece que eles começaram a conversa elogiando o relógio Rolex um do outro.


- Oi, Hermione – responde ele. – Viu minha máquina nova?


- O quê? – Encaro-o inexpressiva, depois me lembro de um carro novo e brilhante na entrada, quando cheguei. – Ah, sim! Muito chique.


- Mercedes Série 5. – Ele toma um gole de cerveja. – Preço de tabela quarenta e duas mil libras.


- Nossa.


- Mas não paguei isso. – Ele dá uma tapinha na lateral do nariz. – Adivinhe.


- Hrmm... quarenta?


- Adivinhe de novo.


- Trinta e nove?


- Trinta e sete mil, duzentas e cinqüenta – diz Simas em triunfo. – E um CD player grátis. Passível de dedução de impostos – acrescenta.


- Certo. Uau.


Realmente não sei o que dizer, por isso me empoleiro na beira do sofá e como um amendoim.


- É esse o seu objetivo, Hermione! – observa papai. – Acha que vai conseguir um dia?


- Eu... não sei. Bem... aliás, papai... Eu tenho um cheque para você. – Sem jeito, enfio a mão na bolsa e pego um cheque de trezentas libras.


- Muito bem – aprova ele. – Isso pode ir para a contabilidade. – Seus olhos castanhos brilham quando ele põe o cheque no bolso. – Chama-se “aprender o valor do dinheiro”. Chama-se “aprender a andar com os próprios pés”.


- Lição valiosa – acrescenta Simas, assentindo. Ele toma um gole de cerveja e ri para o meu pai. – Só me diga, Hermione, qual é a sua carreira esta semana?


Conheci Simas logo depois de sair da corretora de imóveis e me tornar fotógrafa. Há dois anos e meio. E ele faz a mesma piada sempre que o vejo. Absolutamente todas as porcarias das ve...


Certo, calma. Pensamentos felizes. Tratar a família com carinho. Tratar Simas com carinho.


- Ainda é o marketing! – digo animada. – Já faz mais de um ano!


- Ah. Marketing. Bom, bom!


Há silêncio durante alguns minutos, exceto pelos comentários sobre o críquete. De repente papai e Simas gemem simultaneamente por alguma coisa que acontece no campo. Um instante depois gemem de novo.


- Certo – digo. – Bem, eu vou...


Quando me levanto do sofá, eles nem viram a cabeça.


Saio para o corredor e pego a caixa de papelão que trouxe. Então passo pelo portão lateral, bato na porta do anexo e empurro com cuidado.


- Vovô?


Vovô é pai de mamãe e mora com a gente desde a operação cardíaca, há dez anos. Na casa antiga em Twickenham ele tinha apenas um quarto, mas, como esta casa é maior, ele tem agora seu próprio anexo com dois cômodos e uma cozinha minúscula, grudado na lateral da casa. Está sentado em sua poltrona de couro predileta, com o rádio tocando música clássica, e no chão à frente estão umas seis caixas de papelão cheias de coisas.


- Oi, vovô – digo.


- Hermione! – Ele levanta a cabeça e seu rosto se ilumina. – Menina querida. Venha cá! – Curvo-me e dou um beijo nele, e ele aperta minha mão com força. Sua pele é seca e fria, e o cabelo está ainda mais branco do que na última vez que o vi.


- Trouxe mais umas Panther Bars para você – exclamo, mostrando minha caixa. Vovô é completamente viciado nas barras energéticas Panther, bem como todos os seus amigos do clube de boliche, por isso eu sempre compro uma caixa cheia quando venho em casa.


- Obrigado, amor. – Vovô ri de orelha a orelha. – Você é uma boa menina, Hermione.


- Onde eu coloco?


Os dois olhamos desamparados para a sala atulhada.


- Que tal ali, atrás da televisão? - Sugere vovô finalmente. Abro caminho pela sala, ponho a caixa no chão e depois volto, tentando não pisar em nada.


- Bom, Hermione, eu li um artigo muito preocupante no jornal um dia desses – começa vovô quando me sento numa das caixas. – Sobre a segurança em Londres. – Ele me dá um olhar sério. – Você não anda de transporte público de noite, anda?


- Hrm... quase nunca – respondo, cruzando os dedos às costas. – Só de vez em quando, quando há necessidade absoluta...


- Menina querida, você não deve! – Vovô parece agitado. – O jornal dizia que adolescentes com capuz e canivetes de mola espreitam no metrô. Bêbados quebrando garrafas e arrancando os olhos uns dos outros...


- Não é tão ruim assim...


- Hermione, não vale o risco! Só para não pagar uma corrida de táxi!


Tenho praticamente certeza de que, se perguntasse ao vovô quanto ele acha que é uma corrida de táxi em Londres, ele diria cinco xelins.


- Sério, vovô, eu tomo muito cuidado – eu o tranqüilizo. – E também ando de táxi.


Às vezes. Tipo uma vez por ano.


- Pois é. O que é isso tudo? – pergunto mudando de assunto, e vovô dá um suspiro fundo.


- Sua mãe limpou o sótão na semana passada. Eu só estou separando o que é para jogar fora e o que é para guardar.


- Parece uma boa idéia. – Olho para a pilha de lixo no chão. – Essas são as coisas que você vai jogar fora?


- Não! Eu vou guardar tudo isso! – Ele coloca a mão protetora em cima.


- Então onde está a pilha de coisas para jogar fora?


Há um silêncio. Vovô evita meu olhar.


- Vovô! Você tem de jogar alguma coisa fora! – exclamo tentando não rir. – Você não precisa de todos esses recortes de jornal velhos. E o que é isso? – Estendo a mão para além dos recortes e pesco um velho ioiô. – Isso com certeza é lixo.


- O ioiô de Jim. – Vovô estende a mão para o ioiô, com os olhos se suavizando. – O bom e velho Jim.


- Quem era Jim? – pergunto perplexa. Nunca sequer ouvi falar de um Jim. – Era amigo seu?


- A gente se conheceu no parque de diversões. Passamos a tarde juntos. Eu tinha nove anos. – Vovô está virando o ioiô nos dedos.


- Vocês ficaram amigos?


- Nunca o vi de novo. – Ele balança a cabeça, tristonho. – Nunca esqueci.


O problema do vovô é que ele nunca esquece nada.


- Bem, e esses cartões? – Pego um punhado de velhos cartões de Natal.


- Eu nunca jogo nenhum cartão fora. – Vovô me dá um olhar comprido. – Quando você tiver a minha idade, quando as pessoas que você conheceu e amou por toda a vida começarem a ir embora... você vai querer guardar qualquer lembrança. Por menor que seja.


- Entendo – respondo, sentindo-me tocada. Pego o cartão mais próximo, abro e minha expressão muda. – Vovô! Este é da empresa de Manutenção Elétrica Smith, de 1965.


- Frank Smith era um homem muito bom... – começa o vovô.


- Não! – Coloco o cartão com firmeza no chão. – Isso vai embora. E o senhor não precisa de um da... – Abro o próximo cartão. – Companhia de Gás Southwestern. E não precisa de vinte exemplares de Punch. – Coloco-os na pilha. – E o que é isso? – Enfio a mão na caixa de novo e pego um envelope de fotos. – O senhor quer realmente isso...


Alguma coisa me atravessa o coração e eu paro no meio da frase.


Estou olhando uma foto minha com papai e mamãe, sentados num banco de parque. Mamãe com um vestido de flores, papai com um chapéu ridículo, e eu no colo dele, com uns nove anos, tomando sorvete. Todos parecemos felicíssimos juntos.


Sem palavras, passo para outra foto. Eu estou com o chapéu de papai e nós estamos morrendo de rir de alguma coisa. Só nós três.


Só nós. Antes de Lilá entrar na nossa vida.


Ainda me lembro do dia em que ela chegou. Uma mala vermelha no corredor e uma voz nova na cozinha, e um cheiro de perfume estranho no ar. Entrei e ali estava ela, uma estranha, tomando uma xícara de chá. Estava usando uniforme de escola, mas mesmo assim parecia uma adulta para mim. Já tinha um busto enorme, brincos de ouro nas orelhas e fios claros nos cabelos. E na hora do jantar, mamãe e papai deixaram que ela tomasse uma taça de vinho. Mamãe ficava me dizendo que eu tinha de ser muito gentil com ela, porque sua mãe tinha morrido. Todos nós tínhamos de ser muito gentis com Lilá. Por isso ela ficou com o meu quarto.


Examino o resto das fotos, tentando engolir o nó na garganta. Lembro do lugar agora. O parque aonde a gente costumava ir, com balanços e escorregas. Mas era chato demais para Lilá, e eu queria desesperadamente ser como ela, por isso também falei que era chato, e nunca mais fomos.


- Toc-toc! – Levanto a cabeça com um susto e Lilá está parada na porta, segurando seu copo de vinho. – O almoço está pronto!


- Obrigada. Nós já estamos indo.


- E então, vovô! – Lilá balança o dedo reprovando vovô e aponta para as caixas. – Ainda não chegou a lugar nenhum com isso?


- É difícil – ouço-me dizendo defensivamente. – Há muitas lembranças aqui. Você não pode simplesmente jogar fora.


- Se você prefere assim. – Lilá revira os olhos. – Se fosse eu, ia tudo para o lixo.


Não posso ser carinhosa com ela. Não posso fazer isso. Quero jogar minha torta de melado em cima dela.


 


Estamos sentados em volta da mesa há quarenta minutos, e a única voz que ouvimos é a da Lilá.


- Tudo tem a ver com imagem – está dizendo ela. – Tudo tem a ver com a roupa certa, o olhar certo, o passo certo. Quando eu ando pela rua, a mensagem que dou ao mundo é: eu sou uma mulher de sucesso.


- Mostre à gente! – exclama mamãe cheia de admiração.


- Bem! – Lilá dá um falso sorriso de modéstia. – Assim. – Ela empurra a cadeira para trás e enxuga a boca com o guardanapo.


- Presta atenção, Hermione – pede mamãe. – Pegue algumas dicas!


Enquanto todos olhamos, Lilá começa a andar pela sala. Seu queixo está levantado, os peitos apontando para a frente, os olhos fixos a meia distância e o traseiro balançando de um lado para o outro.


Parece o cruzamento de um avestruz com um dos andróides de Ataque dos Clones.


- Eu deveria estar de salto alto, claro – objeta ela, sem parar.


- Quando Lilá entra numa sala de reuniões, vou contar, todo mundo entorta o pescoço – comenta Simas com orgulho, e toma um gole de vinho. – As pessoas param o que estão fazendo para olhar.


Aposto que sim.


Ah meu Deus. Sinto vontade de rir. Não posso. Não posso.


- Quer fazer uma tentativa, Hermione? – sugere Lilá. – Me copiar?


- É... acho que não. Acho que eu... captei o básico.


De repente dou uma pequena fungadela e a transformo em tosse.


- Lilá está tentando ajudar você, Hermione! – indigna-se mamãe. – Você deveria agradecer! Você é boa para Hermione, Lilá.


Ela sorri carinhosa para Lilá, que ri afetada de volta. E eu tomo um gole de vinho.


É, certo. Lilá realmente quer me ajudar.


Por isso, quando eu estava completamente desesperada por um emprego e pedi um estágio na sua empresa, ela recusou. Escrevi uma carta longa e cuidadosa dizendo que sabia que isso a colocava numa situação incômoda, mas que realmente agradeceria qualquer chance, mesmo uns dois dias fazendo mandados.


E ela respondeu com uma carta de recusa padrão.


Fiquei tão mortificada que nunca contei a ninguém. Especialmente a mamãe e papai.


- Você devia ouvir umas dicas profissionais de Lilá, Hermione – acrescenta papai, incisivo. – Talvez, se abrisse mais os olhos, estaria um pouco melhor na vida.


- É só uma caminhada – zomba Simas com um risinho. – Não é uma cura milagrosa!


- Simas! – exclama mamãe, meio reprovando.


- Hermione sabe que eu estou brincando, não sabe, Hermione? – comenta Simas com tranqüilidade, e enche sua taça com mais vinho.


- Claro! – respondo, obrigando-me a dar um sorriso alegre.


Espere só até eu ser promovida.


Espere só. Espere só.


- Hermione! Terra para Hermione! – Lilá está balançando a mão, cômica, diante do meu rosto. – Acorda, pateta! Nós vamos dar os presentes.


- Ah, certo – digo voltando a mim. Certo. Vou pegar o meu.


Enquanto mamãe desembrulhava uma máquina fotográfica dada por papai e uma bolsa do vovô, começo a ficar empolgada. Espero tanto que mamãe goste do meu presente!


- Não parece grande coisa – digo quando entrego o envelope cor-de-rosa. – Mas você vai ver quando abrir...


- O que pode ser? – murmura mamãe, parecendo intrigada. Ela rasga o envelope, abre o cartão florido e olha-o. – Ah, Hermione!


- O que é? – pergunta papai.


- Um dia num spa! – exclama mamãe deliciada. – Um dia inteiro sendo mimada.


- Que boa idéia! – aprova vovô, e dá um tapinha na minha mão. – Você sempre tem boas idéias para presentes, Hermione.


- Obrigada, meu amor. Que coisa boa! – Mamãe se inclina para me beijar, e eu sinto um calor por dentro. Tive a idéia há alguns meses. É um pacote realmente bom, para o dia inteiro, com tratamentos grátis e tudo.


- Tem almoço com champanhe – digo ansiosa. – E pode trazer os chinelos para casa!


- Que maravilhoso! - Responde mamãe. – Estou doida para ir. Hermione, é um presente lindo!


- Minha nossa – comenta Lilá, dando um risinho. Ela olha para o grande envelope creme que está segurando. – Acho que meu presente foi ligeiramente suplantado. Não faz mal. Eu mudo.


Ergo os olhos, alerta. Há alguma coisa na voz de Lilá. Sei que vai acontecer algo. Tenho certeza.


- O que você quer dizer? – pergunta mamãe.


- Não faz mal. Eu só... vou arranjar outra coisa. Não se preocupe. – Ela começou a guardar o envelope na bolsa.


- Lilá! – insiste mamãe. – Pára com isso! Não seja boba. O que é?


- Bem. É que... parece que eu e Hermione tivemos a mesma idéia. – Ela entrega o envelope a mamãe com outro risinho. Dá para acreditar?


Todo meu corpo se enrijece e apreensão.


Não.


Não. Ela não pode ter feito o que eu acho que ela fez.


Há um silêncio completo enquanto mamãe abre o envelope.


- Ah, minha nossa! – espanta-se ela, descobrindo uma brochura impressa em dourado. – O que é? O Spa Meridien?


Alguma coisa cai em sua mão, e ela olha.


– Passagens para Paris? Lilá!


Ela conseguiu. Arruinou meu presente.


- Para vocês dois – acrescenta Lilá, meio presunçosa. – O tio Brian também.


- Lilá! – delicia-se papai. – Você não existe!


- Deve ser bastante bom – comenta Lilá com um sorriso complacente. – Acomodações cinco estrelas... o chefe de cozinha tem três estrelas no Michelin...


- Não acredito – empolga-se mamãe, folheando a brochura. – Olha a piscina! Olha os jardins!


Meu cartão florido está esquecido no meio dos papéis de embrulho.


De repente me sinto à beira das lágrimas. Ela sabia. Ela sabia.


- Lilá, você sabia – deixo escapar, incapaz de me impedir. – Eu contei que ia dar um dia no spa para mamãe. Eu contei! Nós tivemos uma conversa sobre isso há meses. No jardim!


- Tivemos? – pergunta Lilá em tom casual. – Não lembro.


- Lembra! Claro que lembra.


- Hermione – interrompe mamãe em tom cortante. – Foi só um engano. Não foi, Lilá?


- Claro que foi! – exclama Lilá, abrindo os olhos numa inocência arregalada. – Hermione, se eu estraguei as coisas para você, só posso pedir desculpas...


- Não precisa pedir desculpas, Lilá, meu amor – responde mamãe. – Essas coisas acontecem. E os dois presentes são lindos. Os dois. – Ela olha meu cartão de novo. – Bom, vocês duas são grandes amigas! Não gosto de ver vocês discutindo. Especialmente no meu aniversário.


Mamãe sorri para mim, e eu tento sorrir de volta. Mas por dentro estou me sentindo de novo com 10 anos. Lilá sempre consegue me pegar desprevenida. Sempre conseguiu, desde que chegou. O que quer que ela fizesse, todo mundo ficava do seu lado. Era a mãe dela que tinha morrido. Todos tínhamos de ser bonzinhos com ela. Eu nunca, nunca podia ganhar.


Tentando me controlar, pego a taça de vinho e tomo um gole comprido. Então me pego olhando sub-repticiamente o relógio. Posso ir embora às quatro, se inventar uma desculpa sobre atrasos nos trens. É só uma hora e meia a mais. E talvez a gente assista à televisão, ou alguma coisa.


 - Um centavo pelos seus pensamentos, Hermione – indaga vovô, dando um tapinha na minha mão com um sorrisinho, e eu levanto a cabeça, cheia de culpa.


- É... nada – respondo, forçando um sorriso. – Eu não estava pensando em nada.


 


N/A: Sim, a Lilá é detestável. Eu sei! Huahuahuahua...

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