TRÊS
Três
Acordo na manhã seguinte com o sol ofuscando as pálpebras e um delicioso cheiro de café no ar.
- Bom dia! – ouço a voz de Draco, lá do alto.
- Bom dia – murmuro, sem abrir os olhos.
- Quer café?
- Quero, por favor.
Viro-me e enterro a cabeça latejante no travesseiro, tentando afundar no sono de novo por alguns minutos. O que normalmente eu acharia muito fácil. Mas hoje há algo me incomodando. Será que me esqueci de alguma coisa?
Enquanto escuto Draco fazendo barulho na cozinha e o minúsculo som da televisão ao fundo, minha mente tateia em busca de pistas. É manhã de sábado. Eu estou na cama de Draco. Nós saímos para jantar – ah, meu Deus, aquela viagem de avião medonha... ele foi ao aeroporto, e disse...
Nós vamos morar juntos!
Sento-me no momento em que Draco entra com duas canecas e um bule de café. Está lindo com um roupão branco felpudo. Sinto uma pontada de orgulho e me estico para lhe dar um beijo.
- Oi – diz ele rindo. – Cuidado. – E me entrega o café. – Como está se sentindo?
- Tudo bem. – Afasto o cabelo do rosto. – Meio grogue.
- Não me surpreende. – Draco levanta as sobrancelhas. – Ontem foi um dia incrível.
- Sem dúvida – confirmo com a cabeça e tomo um gole de café. – E então. Nós vamos... morar juntos!
- Se você ainda estiver a fim.
E é verdade. Estou.
Sinto-me como se tivesse ficado adulta de um dia para o outro. Vou morar com meu namorado. Finalmente minha vida está indo para onde devia!
- Vou ter que dar a notícia a Crabbe... – Draco sinaliza para a parede, na direção do quarto de seu colega de apartamento.
- E eu, a Ginny e Cho.
- E vamos ter de achar o lugar certo. E você vai ter de prometer que vai manter tudo arrumado. – Ele me dá um riso provocador.
- Até parece! – Finjo ultraje. – Você é que tem cinqüenta milhões de CDs.
- Isso é diferente!
- Diferente como, se é que posso perguntar? – Planto a mão no quadril, como um personagem de seriado de TV, e Draco ri.
Há uma pausa, como se os dois tivéssemos ficado sem gás, e tomamos um gole de café.
- Bom – diz Draco depois de um tempo -, preciso ir. – Ele está fazendo um curso de computação neste fim de semana. – Sinto muito, não vou poder ver os seus pais.
E sente mesmo. Quero dizer, como se já não fosse o namorado perfeito, ele gosta de visitar meus pais.
- Tudo bem – respondo, benevolente. – Não faz mal.
- Ah, e eu esqueci de dizer. – Draco me dá um riso misterioso. – Adivinha para que eu consegui bilhetes?
- Aah! – exclamo empolgada. – Hmm...
Estou para dizer “Paris!”.
- O festival de jazz! – Draco ri de orelha a orelha. – O Quarteto Dennisson! É o último show deles este ano. Lembra que a gente viu um show deles no Ronnie Scott’s?
Por um momento não consigo falar.
- Uau! – consigo, finalmente. – O... Quarteto Denisson! Eu lembro.
Eles tocaram clarinetas. Ininterruptamente, durante umas duas horas, sem parar para tomar fôlego.
- Sabia que você ia gostar. – Draco toca meu braço com afeto, e eu lhe dou um sorriso débil.
- Ah, gostei!
O negócio é que eu provavelmente vou acabar gostando de jazz um dia. Na verdade, tenho certeza de que vou.
Olho orgulhosa enquanto ele se veste, escova os dentes e pega a pasta.
- Você usou o meu presente – observa ele com um sorriso satisfeito, olhando para minha calcinha caída no chão.
- Ah... eu uso sempre – exclamo, cruzando os dedos às costas. – Ela é linda!
- Tenha um ótimo dia com sua família. – Draco vem até a cama e me beija, e então hesita. – Hermione?
- Sim?
Ele se senta na cama e me olha sério. Meu Deus, os olhos dele são tão lindos!
- Tem uma coisa que eu queria dizer. – Ele morde o lábio. – Você sabe que nós sempre falamos francamente sobre nosso relacionamento.
- É... sim – concordo, meio apreensiva.
- É só uma idéia. Talvez você não goste. Quero dizer... você é que decide.
Olho perplexa para Draco. O rosto dele está ficando rosado, e ele está realmente sem graça.
Ah, meu Deus. Será que ele vai começar a mostrar alguma tara? Será que ele quer que eu vista alguma fantasia ou sei lá o quê? Eu não me importaria de bancar uma enfermeira. A mulher-gato do Batman. Seria maneiro. Eu arranjaria umas botas brilhantes...
- Eu estava pensando que... talvez... a gente poderia... – Ele pára sem jeito.
- Sim? – Coloco a mão em seu braço, dando força.
- A gente poderia... – Ele pára de novo.
- Sim?
Há outro silêncio. Quase não consigo respirar. O que ele quer que a gente faça? O quê?
- A gente podia começar a se chamar de “querido” e “querida” – desabafa, num jorro sem graça.
- O quê? – respondo com a voz chapada.
- É só que... – Draco fica mais rosado ainda. – Nós vamos morar juntos. É um tremendo compromisso. E eu notei recentemente que a gente nunca usa nenhuma... palavra carinhosa para chamar o outro.
Encaro-o, sentindo-me deslocada.
- Não?
- Não.
- Ah. – Tomo um gole de café. Pensando bem, ele está certo. A gente não usa. Por que não?
- Então, o que você acha? Só se você quiser.
- Sem dúvida! – concordo, rapidamente. – Quero dizer, você está certo. Claro que a gente deveria. – Pigarreio. – Querido.
- Obrigada, querida – ele se abre em um sorriso amoroso, e eu sorrio de volta, tentando ignorar os minúsculos protestos dentro da cabeça.
Isso não está direito.
Eu não me sinto uma querida.
Querida é uma pessoa casada, com pérolas e um carro com tração nas quatro rodas.
- Hermione? – Draco está me encarando. – Alguma coisa errada?
- Não sei bem! – Dou um riso sem jeito. – Só não sei se eu me sinto uma “querida”. Mas... você sabe. Eu posso acabar me acostumando.
- Verdade? Bem, a gente pode usar outra coisa. Que tal “amor”?
Amor? Ele está falando sério?
- Não – respondo. – “Querida” é melhor.
- Ou “meu doce”... “docinho”... “anjo”...
- Talvez. Olha, a gente não pode deixar isso para depois?
O queixo de Draco cai, e eu me sinto mal. Qual é, eu consigo chamar meu namorado de “querido”, pelo amor de Deus. É isso que é ser adulta. Só vou ter de me acostumar.
- Draco, desculpe. Não sei o que há de errado comigo. Talvez eu ainda esteja meio tensa por causa daquele vôo. – Seguro a mão dele. – Querido.
- Tudo bem, querida. – Ele sorri outra vez para mim, com a expressão ensolarada de volta, e me dá um beijo. – Vejo você mais tarde.
Está vendo? É fácil.
Ah meu Deus.
Tanto faz. Não importa. Imagino que todos os casais tenham esse tipo de momento incômodo. Na certa é perfeitamente normal.
Demoro quase meia hora para ir do apartamento de Draco em Maida Vale a Islington, onde moro. E quando abro a porta encontro Ginny no sofá. Está rodeada de papéis e tem a testa concentrada. Ginny trabalha demais. Algumas vezes realmente passa do ponto.
- Em que está trabalhando? – pergunto com simpatia. – Aquele processo de fraude?
- Não, é essa matéria – comenta Ginny abstratamente, e levanta uma revista colorida. – Diz que desde a época de Cleópatra as proporções da beleza são as mesmas, e que há um modo científico de saber o quanto a gente é bonita. A gente toma um monte de medidas...
- Ah, sei! – exclamo, interessada. – Você tirou quanto?
- Estou fazendo as contas. – Ela franze a vista para a página outra vez. – 53... menos 20... são... Ah meu Deus! – Ela olha a página, consternada. – Tirei só 33!
- Qual é a nota máxima?
- Cem! Tirei 33, em cem!
- Ah, Ginny. Isso aí é uma merda.
- Eu sei – responde Ginny, séria. – Eu sou feia. Eu sabia. Você sabe, no fundo, durante toda a vida eu sempre soube, mas...
- Não! – exclamo tentando não rir. – Eu quis dizer que a revista é uma merda! Não se pode medir a beleza com alguma tabela estúpida. Olha pra você! – Faço um gesto em direção a Ginny, que tem os maiores olhos azuis do mundo, uma pele clara e estupenda e é francamente estonteante, mesmo que a quantidade de sardas seja um pouco demais. – Puxa, em quem você vai acreditar? No espelho ou numa revista estúpida e insensata?
- Numa revista estúpida e insensata – insiste Ginny, como se isso fosse perfeitamente óbvio.
Sei que ela está meio brincando. Mas Ginny está com pouca auto-estima desde que seu namorado Dean lhe deu o pé na bunda. Na verdade estou meio preocupada com ela.
- Isso é a proporção áurea da beleza? – pergunta nossa outra colega de apartamento, Cho, batendo no piso da sala com os saltos altos. Está usando jeans rosa-claros e uma blusa branca e justa. Ela vem de uma família tradicional chinesa e, como sempre, está perfeitamente bronzeada e arrumada. Em teoria, Cho tem um emprego numa galeria de esculturas. Mas parece passar a vida depilando, repuxando e massageando partes do corpo e saindo com banqueiros cujo salário ela sempre verifica antes de dizer sim.
Eu me dou bem com Cho. Mais ou menos. Só que ela tem a mania de começar todas as frases com “Se você quiser uma pedra no dedo” e “Se você quer morar num endereço com SW3” e “Se você quiser ser conhecida como uma anfitriã realmente boa”.
Quero dizer, eu não me incomodaria em ser conhecida como uma anfitriã realmente boa. Você sabe. Só que não é bem esse o item principal na minha lista de prioridades.
Além disso, a idéia de Cho para uma anfitriã realmente boa é convidar um monte de amigos ricos, decorar todo o apartamento com coisas cheias de frescura, encomendar um monte de comida gostosa em bufês e dizer a todo mundo que ela é que fez, e depois mandar as colegas de apartamento (eu e Ginny) ao cinema e ficar afrontada quando elas ousam se esgueirar de volta no meio da noite e preparar um chocolate quente para tomar.
- Eu também fiz esse teste – informa ela, pegando sua bolsa Louis Vuitton cor-de-rosa. Seu pai lhe deu de presente quando ela rompeu com um cara depois de três encontros. Como se estivesse de coração partido.
Veja bem, ele tinha um iate, então acho que ela ficou mesmo de coração partido.
- Quanto você tirou? – pergunta Ginny.
- Tirei 89. – Ela se borrifa com perfume, joga o cabelo preto e comprido para trás e sorri para si mesma ao espelho. – Então, Hermione, é verdade que você vai morar com o Draco?
Olho-a boquiaberta.
- Como você sabe?
- É o papo que corre na rua. Crabbe ligou para Goyle hoje, falando de críquete, e contou a ele.
- Você vai morar com o Draco? – pergunta Ginny incrédula. – Por que não me contou?
- Eu ia contar, claro. Não é maravilhoso?
- Mau passo, Hermione. – Cho balança a cabeça. – Tática muito ruim.
- Tática? – exclama Ginny, revirando os olhos. – Tática? Cho, eles estão namorando, e não jogando xadrez.
- O namoro é um jogo de xadrez – retruca Cho, passando rímel nos cílios. – Mamãe diz que a gente sempre tem de olhar adiante. Tem de planejar estrategicamente. Se der o passo errado, você se ferra.
- Besteira – retruca Ginny em desafio. – Namoro é encontro. Encontro de almas gêmeas.
- Almas gêmeas... – ecoa Cho, desconsiderando o argumento, e me olha. – Só se lembre, Hermione, que se você quer uma pedra no dedo, não vá morar com o Draco.
Seus olhos dão um olhar rápido, pavloviano, para a fotografia sobre a lareira, em que ela está ao lado do príncipe William num jogo de pólo de caridade.
- Ainda está se guardando para a realeza? – pergunta Ginny. – Quantos anos mesmo ele é mais novo do que você, Cho?
- Deixa de ser boba! – reage ela bruscamente, como rosto tingido de vermelho. – Às vezes você é tão imatura, Ginny!
- De qualquer modo, eu não quero uma pedra no dedo – respondo.
Cho levanta suas sobrancelhas perfeitamente arqueadas como se dissesse “sua coitada ignorante”, e pega a bolsa.
- Ah – acrescenta ela de súbito, com os olhos se estreitando. – Alguma de vocês duas pegou emprestado meu casaco Joseph?
- Não – respondo inocentemente.
- Eu nem sei qual é – Ginny dá de ombros.
Não posso olhar para Ginny. Tenho certeza de que a vi com ele.
Os olhos escuros e puxados de Cho estão examinando nós duas como se fossem algum tipo de radar.
- Porque eu tenho braços muito finos – avisa ela – e não quero que as mangas fiquem frouxas. E não pensem que não vou notar, porque vou. Tchau.
No minuto em que ela saiu, Ginny e eu nos entreolhamos.
- Merda – diz Ginny. – Acho que deixei no trabalho. Ah, tudo bem, eu pego na segunda. – Ela dá de ombros e volta a ler a revista.
Certo. Então a verdade é que de vez em quando nós duas pegamos emprestadas as roupas de Cho. Sem pedir. Mas, em nossa defesa, ela tem roupas demais, quase nunca nota. Além do mais, segundo Ginny, é um direito humano básico pegar roupas emprestadas de colegas de apartamento. Ela diz que praticamente faz parte da constituição britânica não-escrita.
- E, de qualquer modo – acrescenta Ginny -, Cho tem uma dívida comigo, por eu ter escrito uma carta ao conselho sobre aquelas multas de estacionamento. Sabe, ela nem me agradeceu. – Ginny ergue o olhar de um artigo sobre Nicole Kidman. – Então, o que você vai fazer mais tarde? Quer ver um filme?
- Não posso – respondo relutante. – Hoje vai ter o almoço de aniversário da minha mãe.
- Ah, é. – Ela faz uma cara simpática. – Boa sorte. Espero que seja legal.
Ginny é a única pessoa no mundo que faz alguma idéia de como me sinto quando vou à casa dos meus pais. E nem ela sabe de tudo.
N/A: Postarei 3 capítulos hoje. Um por ontem, um por hoje e outro porque estou feliz! Hehehehe! No capítulo 5, deixarei comentários e agradecimentos!
Beijos!
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