Sem sorte
Pela décima sétima vez, lá estava eu com uma escovinha que Viviane me dera, esfregando o chão que já estava espelhado. Eu já estava exausta, as pontas dos meus dedos enrugadas, minhas unhas estavam todas ruídas.
- Esfregue bem esse chão – dizia a voz azeda.
Ela estava de pé ao meu lado segurando um copo de suco de uva.
- Mas eu já esfreguei dezessete vezes – protestei –, ta impecável, um espelho!
Olhei para ela a tempo de observar o seu sorriso maléfico. O copo de suco escorregou de suas mãos como pluma e caiu no chão fazendo o barulho cortante dos estilhaços. Alguns cacos arranharam minhas pernas e meu braço esquerdo.
- Agora não esta mais – disse ela sorrindo – A propósito, eu quero outro suco, e vê se coloca mais gelo, queridinha.
Ela se retirou da sala, sua sandália de salto agulha tamborilando no chão espelhado.
- Não – disse a mim mesma – Não quero mais essa vida. Não. Não. Não e não.
Meus olhos começaram a arder. Eu chorava.
- Não! – gritei.
Abri os olhos subitamente, já arregalados. Acordei com o meu próprio grito de desespero. Eu respirei fundo até me recompor.
- Foi só um pesadelo, foi só um pesadelo – repeti a mim mesma a fim de me acalmar, minha voz sonolenta, rouca e falhada – Eu não quero uma madrasta. Que droga.
A porta do meu quarto abriu bruscamente.
- O que houve, Angie? – perguntou o meu pai preocupado.
- Eu tive um pesadelo horrível!
Sua expressão mudou para calma e meio divertida. Ele encostou-se à soleira da porta e cruzou os braços.
- Fantasmas?
- Não. Uma coisa muito, muito pior do que isso – eu estremeci ao lembrar, era mil vezes pior do que as piores coisas do mundo – E era real – completei.
Meu pai se aproximou de mim, sentou na beirada da cama e afagou meus cabelos.
- Não fique assim – consolou-me ele –, são apenas pesadelos.
- Eu queria que fosse. Eu queria que os fatos da minha vida não o realizassem, mas é bem provável que realize – olhei para seus olhos – Talvez no verão – disse erguendo uma sobrancelha.
Ele parou pouco para refletir o que eu dissera.
- Você quer me contar?
- Não, pai. Você sabe bem melhor do que eu.
Ele suspirou e não disse mais nada. Beijou o alto da minha testa e murmurou “boa noite”.
Olhei para o relógio digital que havia na mesinha de cabeceira da minha cama. Já passava das três da manhã.
Eu voltei a deitar, mas não consegui dormir. O que eu faria se já estava completamente sem sono? Eu vou dar uma de Dylan agora?
Eu pensei bem no assunto e não era má idéia.
Tranquei a porta do meu quarto. Abri a janela e tirei as meias. Pus um pé hesitante em um dos galhos da árvore. Como eu ia fazer isso? Era loucura demais? Agora o Dylan não estava lá embaixo para me segurar se fosse preciso. Ah, vai, não deve ser tão difícil assim. Eu segurei firme um galho e apoiei o meu outro pé. Eu respirei fundo.
Eu fui andando devagar, de galho em galho, um descuido e... Escorreguei. Minhas mãos ainda firmes. Meu coração acelerou e foi á garganta. O galho fez um estalo.
Ai meu Deus! Ai meu Deus! Ai meu Deus!
Nada de pânico. Eu consegui voltar um pé para o galho da árvore.
- O que você esta fazendo ai? – sussurrou a voz perfeita.
- Admirando o céu estrelado – disse ofegante. Eu consegui voltar à árvore e me recostei ao tronco.
Ele deu uma risada baixa.
- Vem cá – disse ele estendo a mão para mim.
Os olhos azuis cristalinos à luz da lua. Eram hipnotizantes. Eu dei um meio sorriso e involuntariamente estendi a mão. Ele a segurou firme. Depois estendeu o outro braço para passar em minha cintura.
Lá estava eu. No quarto dele, no colo dele. Sua pele era macia e seus músculos rígidos. Por um momento eu me perdi naqueles olhos. Era como se eu estivesse sonhando. Como se eu estivesse viajando e seus olhos fossem o meu paraíso particular.
Eu me reencontrei e com o mínimo esforço eu desci de seu colo. Seus braços ainda me envolviam.
Ele sorriu. O que ofuscou minha mente, mas eu consegui sorrir de volta. Ele olhou por sobre meu ombro.
- A noite realmente esta linda – comentou ele. Ele me apertou em seus braços e encostou o rosto no meu ombro olhando lá fora.
Dava para sentir seu perfume, era como uma droga, um vicio. Um cheiro agradável e suave.
- Por que você não falou comigo hoje? – indaguei.
- Estava ocupado – disse ele tranquilamente.
Eu me afastei um pouco para olhar para o seu rosto.
- Fazendo o que?
Ele franziu o cenho.
- Coisas.
- Que tipo de coisas? – insisti.
- Relaxa Ann – disse ele sorrindo descontraidamente – Não era nada demais – sua expressão era inocente.
Seja lá o que ele estava aprontando... eu acho que não era bom.
- A propósito – continuou ele – É surpresa.
Agora ele acabou comigo! Fiquei com aquele friozinho na barriga, uma curiosidade extrema. Surpresa. Então se ele contasse estragaria tudo. Então a intrometida aqui resolveu ficar de bico calado. Mas era uma surpresa boa ou ruim? Do jeito que o Dylan era... Há!
Eu me soltei de seus braços e me virei para a janela.
- Aonde você vai? – disse sua voz angustiada.
- Dormir.
- Fica mais um pouquinho – pediu ele fazendo beicinho, os olhos suplicantes. Ai, caramba! Ele não precisava disso.
- Mas eu to com sono – disse já agoniada. Eu queria e não queria. Era irresistível.
Ele suspirou.
- Tudo bem – concordou ele, mas ainda desanimado – Posso te levar até lá então?
- Do que vai adiantar? Vai me carregar nas suas costas? – disse revirando os olhos.
Ele deu de ombros, parou na minha frente e se agachou, mais ou menos, na minha altura.
Eu ri sem acreditar. Subi em suas costas e me agarrei bem a ele.
- Se segura bem porque não vai dar para eu te apoiar, ta bem? – disse pulando janela a fora. Ele apoiou no primeiro galho.
- Ta bem – minha voz falhando de medo.
Ele conseguiu fazer isso bem mais rápido do que eu. Parecia um profissional – também, pra quem faz isso quase todo dia.
Ele fez questão de me botar na cama, me cobrir e me dar um beijo de boa noite no alto da testa – como o meu pai fazia todas as noites. Ele ainda ficou no meu quarto um bom tempo, sentado na beirada da minha cama afagando meu cabelo e meu braço, cantarolava músicas que eu mal conhecia. Talvez fosse de sua autoria própria. Eu perguntaria se não estivesse com tanto sono. Seus dedos pareciam ter mágica, e toda a magia estava vazando por toda a minha pele.
Me deixava fraca.
Eu caí no sono. Eu caí no céu, estava deitada nas nuvens.
***
Na escola tinha um monte de gente pra lá e pra cá. Estavam organizando tudo para a feira disciplinar. E quem teve que levar o golfinho gigante era eu! Um micro deslize nos meus movimentos e já era a imaculada escultura cinza de isopor.
Por que sempre deixavam a pior parte para mim? Sempre era eu que tinha que passar por esses constrangimentos. Eu atravessava a multidão com dificuldades, às vezes dando giros pra poder desviar.
Até que alguém me salvou, eu não senti mais o peso do isopor no meu ombro.
- Valeu, Jerry.
Ele sorriu e deu uma piscadela para mim.
- Amigo é para essas coisas.
Ele consegui fazer o trajeto mais rápido do que eu. Eu já estava me preocupando com a competência extrema dos meninos.
A grande parte do trabalho já estava feita. Só faltava o golfinho. Nós iríamos falar sobre quase todos os animais marinhos, como eles vivem e o que eles comem. A escultura de golfinho por quê? Porque achamos que era uma coisa interessante o lance dos golfinhos e das baleias serem mamíferos e viver de baixo d’água. E vários peixes. Havia peixes para a gente representar um por um. Ainda bem que eles eram petrificados. Senão... Eca.
Eu respirei fundo e voltei a chacoalhar minhas mãos que estavam ficando tensas de novo.
- Calma Ann – disse Isa tentando me acalmar.
- É – concordou Ellen –, vai dar tudo certo.
- Eu to tentando meninas, acreditem. Mas só no fato de pensar um grupo de gente parada na minha frente me dando toda atenção, esperando eu dizer uma coisa que os deixe feliz, ou satisfeitos com a apresentação... Isso me da náusea!
Ellen riu.
- Você é tão esquisita – comentou ela.
Eu a fuzilei com os olhos.
- Por quê?
- Sei lá... – ela deu de ombros – Você sempre foi o tipo de menina radical, que faz o que der na cabeça. Um tipo de menina inibida, e ta com medo de um grupinho de pessoas.
Eu pensei bem sobre o assunto. Era verdade. Eu nunca tive medo de nada, por que então eu tinha medo de pessoas? Só podia ser a paranóica da Angellyne. Não tinha nada que eu pudesse temer.
Não daria tempo para discutir com Ellen, o primeiro grupo já havia chegado.
- Também te adoro – murmurei para ela.
Ela sorriu em resposta.
Foi aquele mesmo tédio. Você ter que apresentar um por um, coisinha por coisinha. Eu era a última a falar, e a única que tinha mais coisa para falar. E nem era papelzinho pra decorar na mente tudo o que eu falaria, era separado por assuntos e eles me deram três.
Cara, eu sou muito explorada.
Quando chegou minha vez de falar me deu branco. Travei total.
Eu improvisei. E acho que disse algumas coisas que não tinham nada a ver com os assuntos. Pelo menos o grupo disse que nós estávamos de parabéns. Parabéns pelo fracasso, talvez.
Cinco pares de olhos me metralharam.
- Eu improvisei – disse na defensiva.
- Percebemos – disseram eles em coro.
- Ah, qual é! Vocês me deram a maior parte pra comentar. Quem teve a maioria das idéias fui eu. É muita coisa pra mim! Eu fui muito explorada por vocês.
Todos os meninos fizeram um coro de “ouuun” e me abraçaram.
- Nós deveríamos parar com isso – refletiu Kevin.
- Parar de explorara crianças? – falou Matt ironicamente.
- Por que criança? – indagou Jerry.
- Porque ela tem menos de um metro e sessenta – disse Matt.
Eles riram.
- Parem! São um e sessenta e dois – corrigi – E se afastem de mim porque eu to estressada com vocês.
Com meus braços eu empurrei cada um para um lado. E me sentei na cadeira dobrável de ferro.
Eles fizeram beicinho. Como cachorrinhos pedindo desculpa.
Isa e Ellen gargalharam.
De repente eu caí de bunda no chão, e ainda bati a cabeça na parede. Calma, eu não morri. É que a maravilha da cadeira dobrável dobrou junto comigo, então eu cai.
Já é bem previsível, né? Eles riram. Mas me ajudaram a levantar. E eu também comecei a rir de mim mesma. Ainda bem que mais ninguém viu. Tudo entre amigos, tudo numa boa.
Será que essas coisas só acontecem comigo? Que droga. Eu fiquei meia hora rindo, eu chorei de tanto rir. Talvez fosse angústia. Fala sério. Que mico.
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