Casa mal assombrada
O meu final de semana foi aquele mesmo tédio de sempre. A fofa da Viviane fez questão de infernizar minha vida. E por mais de tudo que eu falasse o meu pai não acreditava em mim, ele dizia algo como “Filha, eu sei que é difícil você aceitar a Viviane como sua madrasta, mas você vai se acostumar” e sorria para mim. Eu ficava pasma de tão horrorizada. Como ele podia ser tão cego? Eu já fui submetida a ameaças, mas ele insistia em dizer que isso tudo é psicose minha. Eu não sei mais o que eu faço. Será que eu preciso de mais argumentos? Será que a Viviane precisa me matar pra ele acreditar em mim?
Ao contrario da Holly. Ela era tão diferente, simpática, dócil, gentil, bonita, engraçada e eu me dava tão bem com ela, ela parecia uma irmã mais velha para mim. O que o meu pai viu na Viviane que não viu na Holly?
Ah, Holly me levou pra conhecer o apartamento dela, ela tinha uma gata de pelos caramelos que se chamava Lizz. Nós vimos um filme de romance que nos fez chorar de emoção, comemos pipoca, brigadeiro, pizza, batata-frita, torta de chantilly e mais um monte de besteiras calóricas sem se importar muito com o nosso corpo.
- Eu não consigo engordar e nem emagrecer – dissera ela, ainda com a boca lambuzada de chantilly – Então eu nem ligo.
A Holly disse que trabalha com essas coisas de moda – então ela não tinha nada a ver com o trabalho do me pai. Ela era estilista e me mostrou vários desenhos de vestidos de noiva, um mais lindo que o outro. E aos poucos eu fui me interessando. Pintamos as unhas, enquanto uma pintava os pés da outra a outra pintava as próprias mãos. Nós lemos revistas e ela me contou os micos e gafes que ela cometeu enquanto cursava moda em Paris.
- Quantos anos você tinha quando foi para lá? – perguntei.
- Eu era nova, tinhas uns dezenove anos – disse ela, a incerteza em sua voz fazia com que a idade fosse um chute.
E de repente todo o meu passado passava na minha frente como flashes. Eu refleti.
- Você ta com trinta e seis agora? – disse, minha voz saiu como um sussurro.
- Sim – disse ela tão simplesmente, com inocência no tom de voz que eu não eu podia acusá-la por ter trinta e seis.
Mas pensa bem. Não é coincidência demais? Ela foi para Paris com dezenove anos. Minha mãe me teve muito nova, ela devia ter dezessete. Eu quase completara dois anos quando ela foi embora.
Dessa vez não é paranóia minha.
***
Já de volta à minha rotina... Segunda-feira. Fui pra escola como sempre – com minhas pernas – como eu ia todos os dias. O Dylan não estava no portão me esperando com seus olhos ofuscantes.
Hoje os professores se reuniram para planejar a feira de ciência que seria mais ou menos no começo de novembro – faltavam apenas algumas semanas – e a nossa turma ficou com a parte de biologia. A turma foi divida em sete grupos de seis. O meu grupo foi composto por Jerry, Ellen, Kevin, Isa e Matt. Não dirigi sequer uma palavra ao Dylan nesse dia. Ele também não falou comigo, mas nós trocamos olhares estranhos quando nos cruzávamos, como se ele quisesse me dizer alguma coisa em silêncio.
A gente combinou de fazer os trabalhos na casa do Kevin – já que ele era o mais quieto – só de implicância. E porque todos nós adoramos o Kevin, e também porque ninguém nunca foi na casa do Kevin. Mistério.
- Como será que deve ser a casa do Kevin? – disse Isa, olhando pro nada.
- E se for um casebre? – sugestionou Ellen – Tipo, um barraco mesmo. E se ele não tiver casa?
- Ai gente, pára de tomar sugestões precipitadas – interrompi o blábláblá das duas – Vai que ele tem um casarão. Uma mansão!
Agora até eu fiquei curiosa.
- Pára de tomar sugestões precipitadas! – disse as duas em um uníssono, fazendo voz de taquara rachada para me irritar.
- Ta! Ta! Mas as minhas, pelo menos, são positivas! – rebati.
Eu confesso que eu não fui nem um pouquinho diferente das meninas. Ficamos duas horas discutindo sobre a casa dele. Ninguém sabia sequer onde ele morava, então ele teria que nos esperar na escola, para de lá, ir para a misteriosa casa dele.
Ficamos três dias em uma curiosidade inquietante, agonizante.
Até que finalmente chegou o dia, a hora.
Ele morava em uma rua normal, por fora sua casa era normal. Ele pediu para nós esperarmos do lado de fora. Os outros meninos já haviam chegado, mas porque ele pediu pra gente – eu, Ellen e Isa – ficar do lado de fora esperando?
- O que será que acontecendo, hein? – disse Ellen já inquieta.
- Ele deve estar escondendo os corpos do Jerry e do Matt.
- Cale boca, meninas! – intervir.
Eu não sei qual é o problema de Ellen e Isadora, o porquê de elas serem tão pessimistas e macabras. Elas me deixam apavorada.
Ele abriu o portão.
- Podem entrar – disse Kevin sorrindo.
Nós continuamos estateladas, de olhos arregalados, olhando pra ele como se ele tivesse cometido um crime.
Eu dei um passo hesitante à frente. Se não fosse eu, as meninas continuariam ali paradas a tarde toda.
- São os meus cachorros – disse Kevin – Eu os prendi lá atrás, porque eles são meio... desequilibrados.
As meninas assentiram, ainda olhando para ele, o condenando. Eu as fuzilei com os olhos e entrei na casa. Foi apenas mais um surto de paranóia minha, não só minha, Ellen e Isadora que começaram.
Matthew e Jeremy estavam na varanda pintando a escultura de golfinho feita de isopor. Eles estavam vivos! E a casa do Kevin era linda. Talvez ele só evitasse visitas por causa dos cachorros carnívoros dele que não paravam de latir. Quantos seriam? Parecia um canil. Exagero. Apenas três latidos diferentes. Fila, rottweiler e pitbull. Não que eu seja uma expert em cachorros, simplesmente era fácil de distinguir.
Será que era um dom? Ridículo.
Foram horas e horas trabalhando. Jerry e Ellen trocavam olhares e risinhos. Eu achei isso muito estranho. Eles estavam perto demais e ele não parava de sussurrar coisa no ouvido dela. Tá! Eu não estou com ciúmes dos meus amigos. Mas se eles namorassem... seria horrível! Eles formam um casal fofo, mas seria horrível. Ellen não teria mais tempo para mim, ele não seria mais o meu professor particular. To sendo egoísta?
Eu nunca gostei dos namorados de Ellen. Mas quando o namorado dela é um amigo meu... Ai complica a coisa toda!
Paranóia. Paranóia. É só paranóia. Eles não estão namorando. É só amizade que esta colorindo. Um dia ela vai desbotar e vai voltar tudo ao normal.
Tentei me convencer disso. Olhei para os outros e vi que eles estavam tão incomodados como eu.
- Eu vou beber água – disse já levantando. Não queria ficar ali de vela para os dois. Na verdade, um castiçal, eu, Isa, Kevin e Matt.
- Eu também – disse Matt levantando-se logo atrás de mim.
- E eu vou ao banheiro – disse Isadora.
Kevin ainda ficou ali sentado, hesitando.
- E-e eu vou mostrar onde ficar o banheiro – disse ele por fim.
Quando chegamos a sala, nos jogamos no sofá de couro bege e começamos a rir, bem baixinho para que eles não escutassem.
- Eles estão...? – disse Matt, fazendo gestos com as mãos.
- Adoraria saber – respondi a sua pergunta incompleta. Me joguei para trás, recostando no encosto fofo de couro e bocejei.
O jeito era esperar. Sei lá, deixar eles lá sozinhos. Se abraçando. Se beijando. Argh! Caramba! Se ela estivesse gostando do Jeremy ela me contaria. Num contaria? Contaria sim. Eu sei que contaria...
- O que vocês estão fazendo aqui?
Arregalei os olhos e me levantei num pulo quando reconheci a voz aguda.
- Er... Ellen... Nós estávamos... – eu gaguejei.
- Discutindo sobre o trabalho – disse Matt. Sua expressão era tranqüila, ele brincava com o celular nas mãos.
- É. Discutindo sobre o trabalho – concordei.
- Então vocês são telepáticos? – disse Ellen já irritada – Porque eu não ouvi vocês falarem nada desde que vieram para cá.
Eu a peguei pelo braço e a levei até cozinha. Tinha muita coisa para ela esclarecer, muita coisa para eu perguntar.
- Você e o Jerry estão... – disse fazendo gestos com as mãos.
Ela ergueu uma sobrancelha, suspirou e baixou a cabeça.
- Ellen, você já pensou nas conseqüências? – bronqueei – Já pensou no quanto eu vou sofrer? Poxa, você e o Jerry são os meus melhores amigos. Agora eu vou perder os meus melhores amigos porque eles estão namorando.
Ela olhou para mim. Seu olhar não era mais de culpa e sim de revolta.
- Então você sabe o que é ser “abandonada” – ela fez aspas no ar – Agora você sabe o que é ser esquecida pela sua melhor amiga por causa de um garoto idiota.
Eu engoli a seco. Ela também pareceu não se agradar com o que ela falava.
- Essas coisas acontecem, Ann – continuou ela – Mas nenhum garoto idiota vai destruir nossa amizade, não é? – ela sorriu – Sempre haverá milhares deles por aí, mas amiga como você eu não encontro em lugar nenhum.
Logo senti meus olhos molhados.
- Mas o Jerry não é idiota... – comentei tentando me descontrair, mas acabei chorando.
Eu ouvi um silvo baixo de seu riso e depois nos abraçamos tão forte, mas tão forte que poderia sentir nossos ossinhos estalando.
Amigas são amigas, namorados a parte.
Teria que me acostumar com isso.
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