Uma nova mulher



Assim que abri a porta da sala, vi meu pai conversando formalmente com uma mulher, eles estavam sentados no sofá. Não era a Viviane e nem uma das minhas eliminadas candidatas a ser madrastas.


- Abelhinha – cantarolou meu pai, sorrindo.


- Paizinho – cantarolei, contribuindo o sorriso.


A mulher estranha sentada ao lado de meu pai sorriu, me cumprimentando. Retribui o sorriso de volta sendo simpática. Ela era bonita. Cabelos dourados levemente encaracolados, os olhos num tom mel claros, os traços faciais delicadamente esculpidos, uma beleza única que não precisara de maquiagens. E pela primeira vez, não tive uma súbita má impressão sobre ela. Não pela beleza, mas eu não sentia nenhuma energia maléfica vinda dela. Pelo menos não naquele momento.


Fui para o meu quarto terminar os exercícios que tinha pra casa. Havia muito a fazer, eu não devia deixar acumular tanto. Vi que a porta do meu quarto estava entreaberta, eu sempre a deixava fechada.


- Pai! – gritei, do alto da escada. – Você estava procurando alguma coisa no meu quarto?


- Não, filha. Por quê?


Se não era ele...


- Nada. Deixa pra lá.


Voltei. Acho que eu estava fazendo tempestade em uma gota. Qual o problema da porta do meu quarto abrir sozinha? Assim que abri dei um pulo de susto. Pus a mão em meu peito, meu coração acelerava freneticamente.


- Dylan? – disse ainda sem consegui me recompor. Eu ofegava.


Ele estava sentado na beira da minha cama olhando uma foto bem antiga de nós dois. Quando ainda éramos crianças. Na época eu tinha sete e ele oito. Era a única foto de nós dois juntos. A outra era dele, em uma bela manhã quando abri o portão, tirei a foto antes mesmo que ele percebesse, deu tempo de pegar o meu sorriso perfeito, o meu rosto perfeito, em completo, o meu menino perfeito. Aquela havia sido a primeira foto que eu tirei com a minha câmera digital nova que eu ganhara no meu aniversário do ano passado.


- Angie – ele sussurrou meu nome entre um sorriso, em sua voz veludínea que me fazia sair de órbita.


- O que faz aqui? – disse sorrindo.


Sentei à beira da cama, ao lado dele.


- Eu vim te ver, mas você não estava aqui.


- Há quanto tempo? – senti meus olhos caírem. Eu não gostava de deixar ninguém esperando por mim.


- Há alguns minutos – disse ele voltando seus olhos para a fotografia – Você era bonitinha – ele sorriu.


Eu soltei um riso abafado.


- Era.


- Era – disse ele concordando.


Ele riu.


Eu franzi os lábios.


- Agora – ele suspirou –, você é linda – disse ele olhando para mim. Seus olhos cintilavam, sorrindo.


Eu sorri e senti minhas bochechas queimarem. Corei, como sempre. Senti cócegas na barriga, eram as borboletas que haviam voltado.


- Então – começou ele, interrompendo meu surto de paixonite aguda – Onde você foi?


- Na casa do Jerry – sussurrei torcendo para que ele não ouvisse direito e mudasse de assunto.


- O que você foi fazer lá? – ele me fuzilou com os olhos, ou melhor, ele me bombardeou com os olhos.


- Estudar para física – disse inocentemente.


- Arrã. Sei que física – disse ele desconfiado, num tom repugnante.


Ele parecia meu pai falando agora. Julgamentos precipitados.


- Aff – resmunguei – Eu te pediria se você não passasse a maior parte do seu tempo com a Rachel – cuspi o nome dela, como ela fizera com o meu da outra vez – E aquelas outrazinhas – acrescentei.


Ele bufou.


- Ah, pára – disse ele juntando as sobrancelhas, já impaciente.


Revire os olhos, cruzei os braços e franzi os lábios.


- Pede pra eu parar porque sabe que é verdade – disse num tom petulante.


- Pára – insistiu ele.


Eu o ignorei.


- Você passa tanto tempo com ela que às vezes até se esquece de mim. Se sente culpado e vem correndo pra minha casa só pra amenizar a situação – eu fiz uma careta.


Ele segurou meu rosto com as duas mãos, olhou em meus olhos. Seus olhos eram suplicantes.


- Pára – implorou ele.


- Mas você que começou – resmunguei, como uma criança.


Ele avançou mais dois centímetros. Apesar de seu rosto estar bem perto do meu, apesar de eu sentir sua respiração em minha pele. Ele parecia pensar duas vezes antes de agir.


- Já parou? – disse ele por fim.


Eu assenti. Ele deslizou suas mãos de meu rosto.


- Tenho dever pra fazer.


- Eu já fiz o meu. Quer ajuda? – ofereceu-se ele.


Eu sorri.


- Adoraria.


Fiz cuidadosamente, todos eles – com o Dylan do meu lado era difícil de pensar. Ele ficou só me observando enquanto eu fazia, ele me corrigia às vezes e também me ajudava bastante, ele brincava com uma mecha de meu cabelo distraidamente e sorria toda a vez que eu olhava pra ele.


A pressa é inimiga da perfeição que é inimiga da preguiça que é inimiga da vontade de fazer as coisa e que é mais inimiga ainda de mim. Então fiz questão de não errar nenhum detalhe como apenas um sinal negativo.


Depois o Dylan se virou e fitou o teto. Acho que ele se entediou de me ver estudando. Ele se levantou e inclinou-se pros meus pés, tirou minhas meias e fez uma bolinha com elas. Voltou a deitar e ficou jogando a bolinha de meias pro alto.


Eu já terminara meus exercícios. Me virei, também fitando o teto, a bolinha subindo e descendo para as mãos do Dylan. Peguei a bolinha antes que ela voltasse para a mão dele e a escondi entre minhas duas mãos. Quando ele virou para mim, eu sorri maliciosamente. Ele riu dando um beijo no alto da minha testa. Pensei estar sentindo minhas borboletas voltarem de novo, mas eram seus dedos que faziam cócegas em mim. Eu me esperneava na cama, chorando de rir.


O Dylan ficou na minha casa até umas 19h00min, depois a mãe dele o chamou para jantar. Eu desci até a cozinha.


- Hmmm – disse respirando fundo – Que cheiro bom.


Meu pai fez o jantar hoje. Meu prato preferido: lasanha.


Meu pai não respondeu, apenas sorriu orgulhoso de si mesmo.


Um assunto martelou em minha cabeça agora. Eu não sabia por onde começar. Joguei a primeira pergunta que veio a minha cabeça e a pergunta que qualquer um faria se estivesse no meu lugar.


- Quem era aquela mulher? – perguntei instintivamente.


- Ah – ele sorriu – É a Holly, minha colega de trabalho.


Holly. Por que esse nome era tão familiar para mim? Ah, nada a ver! Quantas Holly num existe nesse mundo!


O jantar tava delicioso. A mussarela repuxava, e eu gamava nisso. Nem me lembro de quantas vezes repeti, só sei que meu estomago estava quase explodindo quando parei.


***


Segunda-feira! Hoje eu acordei tão animada! Ainda eram 06h00min da manhã, resolvi me arrumar lentamente hoje e verificar minhas tarefas de casa em casa mesmo. Tomei o café-da-manhã com o meu pai lendo o jornal. Assim que a campainha tocou, eu ainda estava secando a tigela de cereal, larguei a tigela emborcada na pia, peguei minha mochila e sai correndo.


Assim que o vi, abracei-o bem forte. Aquela mesma visão deslumbrante que eu costumava ver todas as manhãs. Você sabe... Os cabelos, a pele, os olhos...


- O que aconteceu com seu olho?


Havia um corte no canto alto de seu nariz, bem perto do olho esquerdo. O corte parecia recente. É claro! Estive com ele ontem e não tinha nada marcado em seu rosto.


Tentei juntar o caso ao acaso que ocorrera ontem. Sobre os gritos.


- Eu caí – disse ele desviando os olhos de mim.


Aquilo me deixou muito aborrecida. Eu sabia que ele estava mentindo. Ele desviou os olhos de mim! E isso me fez lembrar-se da última vez que ele mentiu para mim. Eu tinha nove anos e ele já completara dez.


Eu procurava desesperada em minha mochila.


- Viu meu chiclete Dylan? – perguntei ainda procurando-o em minha mochila.


Houve uma pausa. Eu olhei para ele. Ele estava mastigando. Larguei minha mochila de lado e fui até a mesa que ele estava sentado.


- Dylan, você viu o meu chiclete? – perguntei com a expressão séria.


Ele parou de mastigar e desceu os olhos para a mesa.


- Não – disse ele, quase um múrmuro, já que sua boca estava ocupada.


- Que pena... – fingi decepção – Eu ia dar pra você – disse com inocência nos olhos.


De repente ele começou a tossir.


- Que foi Dy?


- Me engasguei – disse ele pausadamente tentando se recuperar do engasgo.


 - Calma Dy – disse dando tapinhas nas costas dele – Não fica nervoso.


Ele conseguiu se controlar da tosse.


- Não to nervoso.


- Uhum – disse encarando ele com um olhar desconfiado. Vi que ele sabia que não podia mentir pra mim, mesmo sendo por causa de um chiclete.


- Eu vi na sua mesa, mas não sabia que era seu – confessou ele. – Desculpa – disse ele de cabeça baixa.


Eu dei um tapinha no braço dele. Ele olhou para mim. Eu sorri e dei um abraço nele.


Senti alguma coisa escorregar pelo bolso de trás da minha calça enquanto ainda o abraçava. Eu pus a mão e senti um plástiquinho que embrulhava uma bala. E pelo formato era uma das minhas preferidas. A de leite condensado recheada de chocolate. Senti o seu rosto sorrindo.


Esse flashback aconteceu em apenas dois segundos em minha cabeça. Por mais incrível que pareça.


- Foi o meu pai – disse ele num jato de palavras, quase um sussurro. Pensei não ter ouvido direito. Mas agora ele olhava pra mim.


- Seu... pai... fez isso com você? – gaguejei incrédula.


- É – disse ele – Mas foi apenas um acidente – ele completou imediatamente, agora de cabeça baixa.


Eu respirei fundo e de repente senti minha mão se contrair em um punho, senti meu sangue borbulhar, minha mão se contraia cada vez mais, devagar. Eu não estava com raiva do Dylan, por ter mentido pra mim. Sei que ele ia contar a verdade. Instinto de sintonia? Talvez não fosse o que eu estava sentindo, era o que ele sentia. Raiva.


Hoje tivemos aula de Educação Física. Jogamos voleibol. Apesar de eu ter sido péssima, Dylan – que fazia dupla comigo no jogo – mandou super bem. Fez várias defesas e os cortes dele eram magníficos. No final do jogo, quando ganhamos de dois sets a um, ele enrolou um papel imitando a tocha olímpica cantando “We're the champions” em coro comigo e correndo envolta da quadra. Eu morri de rir, e o resto da turma também.


Cheguei em casa meio exausta. Vi o meu pai sentado ao sofá conversando com a mesma moça do dia anterior. Desta vez eu a cumprimentei formalmente. Inclinei-me um pouco por sobre o sofá para dar um beijo na testa de meu pai. Desinclinei-me e virei um pouco pra falar com ela.


- Oi, meu nome é Angellyne – disse sorrindo e estendendo a mão num comprimento. Eu era péssima nessas coisas de formalidade, mas fiz o máximo que pude.


- Holly – disse ela entre um sorriso e apertando minha mão num gesto de cumprimento. O sorriso dela era tranqüilizador e suave – Prazer em conhecê-la – ela acrescentou, empolgada.


De repente eu me lembrei.


Eu nunca vou me esquecer da Ho...


Holly?


O cabelo, os olhos, o sorriso dela... Era a imagem que eu tinha em mente, o anjo dos meus sonhos, a imagem da minha mãe. Só podiam ser semelhanças, meras semelhanças. Eu estava ficando paranóica, com certeza! As lembranças que eu tinha da mamãe eram poucas, mas eram o suficiente para eu se lembrar do rosto dela. As lembranças que o tempo levou junto com vento, as lembranças que jazerão para sempre em meu coração.


Cortei meus pensamentos com um sorriso simpático.


- O prazer é todo meu – agora sou eu com surto de educação.


Olhei para o meu pai e vi que ele estava impressionado comigo. Ele devia estar se perguntando: Por que a Angie não foi assim com a Viviane? E eu responderia. Porque eu não fui com cara da fofa da Vivi, e ainda por cima, ela me ameaçou, papai.


Holly levantou do sofá ainda com os olhos em mim.


- Como você cresceu – a voz dela falhou um pouco no final, ela segurou minhas duas mãos, seus olhos lampejando para mim – Você ta linda – disse ela num tom encantado.


Eu sorri, mas ao mesmo tempo achei muito estranho ela falar comigo daquele jeito. Como se me conhecesse há muito tempo. Como se me conhecesse desde criança pra comentar o quanto eu cresci e quanto eu fiquei bonita...


- Obrigada – sorri e deixei essa passar.


Meu pai cortou o silêncio.


- Ah, filha, você num deve lembrar muito da Holly – disse meu pai – Ela costumava ficar com você quando eu tinha de trabalhar até tarde.


Eu sorri e voltei a olhar para a Holly, então era isso, meras semelhanças.


Depois meu pai começou outro assunto com ela que eu não fazia idéia do que se tratava, era do trabalho dele. Subi pro meu quarto e tomei meu banho. Eu não tinha mais nada pra fazer, havia terminado todos os deveres da escola. Resolvi sair.


Quando pus a mão na maçaneta meu pai interrogou.


- Vai aonde mocinha?


- Andar por ai... – abri a porta e sai.


Peguei minha bicicleta que estava ao lado do caro de meu pai. Por um momento fiquei observando a bicicleta esportiva e meio arranhada jogada na parede e o Vectra preto do meu pai estacionado classicamente.


Tirei a bicicleta da garagem e a levei ao cicle que não era muito longe, por isso fui à pé mesmo. Antes de sair eu agradeci ao senhor Anderson e montei na bicicleta.


Aos poucos eu fui acelerando o ritmo, meus cabelos chicoteando meu rosto com o vento que minha velocidade produzira. Fui nesse ritmo ao longo da ruazinha vazia e deserta, depois fui um pouco mais devagar pedalando para lugar nenhum, na rua movimentada de carros e pessoas. Até que uma placa de cor verde vivo na porta da lanchonete Jenk’s me chamou a atenção. Precisa-se de garçonete

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