Tropeços e esbarros



Mais uma segunda-feira de manhã monótona, com pessoas monótonas e aulas monótonas. Talvez.


Nos corredores da escola, na hora do intervalo. O que mais se ouvia falar era sobre o show que teve na sexta – e que foi um máximo! Mal elas sabiam que eu entrei no camarim deles, que eu falei eles cara-a-cara e que eu fui levada para casa no Porche deles – e Ellen também. É a primeira vez que eu estou me gabando. Normal. Tem pessoas que se divertem a custas dos outros com isso. E por falar em pessoas assim, eu me esbarrei em uma.


- Ai, desculpa.


- Não olha pra onde anda! – disse ela com arrogância. Nada especial. Bem típico da Katie.


Ela estava acompanhada de suas duas fies seguidoras, a Sabrina e a Lindsay.


- Qual o seu problema? – tentei afrontar.


- Você não entendeu garota?! Qual o seu problema? – rebateu ela erguendo um dedo para mim.


- Urgh!


Eu dei um empurrão no braço dela que estava na minha frente e passei bufando. Aff hein! Não tinha sentido nem motivo pra discutir com a Katie, era perda de tempo, era inútil demais. Estava andando com tanta raiva que esbarrei em alguém, de novo.


- Calma mocinha – disse ele e me segurando para eu não cair – Se ficar andando assim pode furar o chão – ele sorriu.


Por uma fração de segundos me perdi naqueles olhos verdes e naquele sorriso, talvez eu só estivesse surpresa. Eu ri – de mim mesma. Continuamos andando pelo corredor, agora estava mais calma.


- É Katie, né? – disse Jeremy me fitando, como se ele pudesse ler meus pensamentos.


- É – fiz uma careta meio desanimada – Ela adora fazer isso.


Ele assentiu uma vez com a cabeça. O silêncio constrangedor brotando entre a gente. Ainda bem que ele fez questão de interromper isso.


- Ta precisando de ajuda em alguma matéria?


Eu franzi o cenho. O que ele quis dizer com isso? Como assim?


- Como assim? Eu sou uma das alunas em destaque – nem me gabei. Só estava sendo realista.


- Mas não em física.


- É – gemi, nunca fui muito boa em física –, eu nunca fui um exemplo de boa aluna em física. Mas como você soube?


Ele ergueu a resma de papéis que carregava na mão. Era os testes de física... Eu franzi os lábios.


- Então?


- Ta, eu preciso de ajuda – admiti.


Nós rimos. Ele me abraçou com um braço e nós ficamos o intervalo todinho conversando. Era fácil gostar do Jeremy, ele era simpático e engraçado. Durante nossa conversa descontraída, percebi que eu não era a única que tinha a síndrome do miojo.


Depois da aula, já novamente nos corredores da escola eu me esbarrei em alguém de novo.


- Angie! Eu to precisando falar com você – disse Isadora sorrindo.


- Trigonometria? – tentei adivinhar, assustada.


Ela riu.


- Não bobinha. É a festa que vai rolar mês que vem na escola – disse me entregando um folheto amarelo.


- Todo mês agora é festa na escola?


- É. Ultimamente a Srª Dulce Button ta bem animadinha.


Nós rimos.


- Até mais Ann – disse ele já apressando os passos.


Eu olhava o folheto que ela me dera, andando distraidamente. Mais uma vez eu esbarrei em alguém. Qual é? Essa é minha rotina de hoje? Bati o meu recorde já. Valeu!


- Ellen!


Ela sorriu e me abraçou, depois me fitou.


- Seu pai brigou com você por ter chegado tarde da noite em casa? – perguntou ela, parecia realmente estar preocupada.


- Um sermão normal de um pai normal – dei de ombros.


No final do corredor, perto da porta da saída, logo vi o Dylan sorrindo vindo em minha direção. Olhei para trás para ver se não era ninguém que estava a poucos passos de mim. Ellen me cutucou e foi como se eu pudesse ler os olhos dela: “ele ta olhando pra você mesmo boba”. Acho que eu e Ellen tínhamos telepatia visual.


- Te vejo mais tarde – disse ela com um sorriso malicioso enquanto apressava seus passos.


Dylan abriu os braços, mais uma vez eu olhei para trás meio hesitante antes de corresponder a qualquer movimento. Eu o abracei. Os finais de semana pareciam mais longos e chatos quando eu não o via. Ele deu um beijo na minha testa.


- Como você ta minha Angel?


- Estou bem – disse sorrindo para ele.


Estou bem melhor agora pra ser mais específica. Só a presença do Dylan me fazia bem, era uma coisa meio estranha de se dizer. Talvez nem a todo o momento. Percebi a expressão do rosto dele mudar assim que minha desmoronou um pouco. Por que eu tinha que voltar a esse assunto? Já tava acabado. Já passou. Eu tentava convencer a mim mesma disso. Sem sucesso.


- Você mentiu pra Ray? – estremeci comigo mesma nessa pergunta, estremeci mais ainda ao pensar na resposta.


- Não exatamente de um modo frio. Sabe... Eu gosto da Ray, mas eu não sabia o quanto ela gostava de mim.


Eu ergui uma sobrancelha, não sabia onde ele queria chegar me dizendo isso.


- Bom – continuou ele assim que percebeu minha expressão de insatisfeita – Talvez não tanto quanto ela, mas, é claro que eu vou gostar de quem gosta de mim. A menina gosta de mim, eu vou falar que odeio ela? Não né? Porque a pior coisa é amar e não ser amado. Concorda comigo?


Ele estreitou os olhos, esperando ser aprovado. Eu não disse nada, adiantei os meus passos deixando-o para trás.


- Vem cá Ann – disse ele pegando no meu braço me forçando a virar pra ele – Além do mais, o importante não é eu e ela, o mais importante pra mim é eu e você. – agora ele me encarava nos olhos, eu permanecia calada, agora porque os seus olhos me deixavam sem fala. Ele segurou meu rosto com as duas mãos e apertou meu nariz me fazendo rir.


***


Estávamos indo para aquele lugar de novo. Onde as sombras fracas das árvores abraçavam a pequena campina verde. Aquele lugar incrível. Desta vez nós andamos mais um pouco, até uma pequena estrada de terra que dava não sei aonde.


- Vamos correndo até o final da estrada? – disse ele sorrindo como uma criança que acabou de ter uma idéia fantástica.


- Érr... – abaixei uma alça da minha mochila – Aonde isso vai dar?


- Em lugar nenhum. Você só vai descobrir se você for – disse ele já largando sua mochila atrás de um dos arbustos. Não tinha com o que se preocupar. Praticamente ninguém ia lá.


Larguei minha mochila junto com a dele.


- Pronta? – ele desafiou-me.


- Vai comer poeira – eu disse rindo.


Logo disparando, correndo, ele veio atrás de mim tentando acompanhar os meus passos que estavam pouco a frente dele. Eu não fazia a mínima idéia pra onde estava indo, mas a magnífica idéia de correr pra lugar nenhum parecia tão fascinante, a sensação de liberdade, poder correr de braços abertos. Deixando a brisa golpear meu rosto e levantar meus cabelos. Até que ele me alcançou e segurou minha mão. E nós fomos correndo juntos até o tal lugar nenhum. Nós saímos da estrada – ainda correndo – e fomos bosque adentro. Depois de correr muito ele diminuiu os passos e nós fomos caminhando, ele ainda segurava minha mão. Eu não sei se era a mão dele... mas a minha suava a frio.


O lugar era mais lindo que a campina, um lugar tão lindo, quase impossível de acreditar que aquele lugar realmente existia. As flores silvestres eram de cores mais variadas, árvores de folhas verdinhas, troncos retorcidos. O riacho que serpenteava entre as pedras viscosas. A beleza era tão estonteante que eu até fiquei meio tonta. Logo a minha frente havia um tronco inclinado para o riacho, e em um dos seus galhos uma corda.


- Olha – disse pro Dylan, apontando para a corda. Aproximei-me mais da corda, mas ela estava fora do meu alcance, olhei em minha volta pelo chão, procurava por um galho ou qualquer coisa que me ajudasse a pegar a corda. Peguei um galho grande que estava dentre as folhas secas. Com a corda já em minhas mãos, dei um puxão, parecia firme. Eu olhei pro Dylan com aquela carinha de uma criança que acabou de ter uma idéia.


- Tem certeza? Deve estar aí há muito tempo – observou ele.


Dei mais um puxão na corda agora me inclinando um pouco para trás.


- Não acho que vai arrebentar.


No momento em que eu ia voltar meus olhos para ele vi que ele já estava bem perto de mim, perto, perto, tipo, bem pertinho, a ponto de eu sentir o cheiro de sua pele e detalhar cada traço perfeito, a matiz de seus olhos – que agora me encaravam intensamente – era cintilante.


- Deixa eu ir primeiro então – disse segurando minhas mãos envolvidas na corda.


Eu soltei a corda e passei para as mãos dele. Eu não disse nada porque ele absorveu todas as minhas palavras, inclusive minha respiração.


Ele deu alguns passos para trás para tomar impulso, se grudou na corda e soltou seu corpo. Ele foi de um lado ao outro, pude ver seus pés tocarem nas relvas dos outro lado do riacho. Ele inclinou sua cabeça para trás, olhou para o céu estreitando os olhos por causa do sol. Ainda balançava. Depois ele voltou.


- Isso foi incrível! – disse ele sorrindo – Você precisa experimentar. Tome – disse ele entregando a corda em minhas mãos.


O que eu vi não parecia ser tão fantástico, mas já que é assim. Repeti os mesmos movimentos dele. Passos para trás, impulso, gruda na corda e solta o corpo. Eu soltei. Parecia estar voando. Quando inclinei minha cabeça para trás para ver o céu, estreitando meus olhos por causa da luz do sol que perfurava as folhas das árvores. Eu estava voando! Senti os meus pés baterem na relva. Eu sentia uma leve tontura enquanto balançava. Uma pressão na cabeça, uma sensação boa. Voltei. Procurava o chão sob meus pés que estava difícil de achar, até que o Dylan me pegou nos braços e me pôs no chão.


- Isso foi incrível! – repeti o mesmo.


Ele deu uma risada abafada.


- Então. Quer ir ao outro lado?


- Você não acha que nós já viemos longe demais?


- Se a gente chegou até aqui, o que custa ir ali?


Eu franzi os lábios e ergui uma sobrancelha.


- Você que sabe.


Ele pegou a corda e deu impulso para balançar de novo. Mas desta vez ele não voltou. Ele sumiu.


- Dylan! – gritei.


Ele não respondeu.


Eu peguei a corda de volta e me impulsionei para balançar, me atirei nas relvas ainda úmidas pelo o orvalho da manhã.


- Dy?- chamei seu nome mais uma vez, mas ele também não respondeu.


Fui andando vagarosamente pelo labirinto de árvores graúdas. Eu só ouvia o som das folhas secas sob meus pés.


- Dylan?


Agora meu coração disparava de medo. Minhas pernas bambeavam e um nó se formando em minha garganta. Comecei a suar frio. Até que senti um par de mãos grossas que vendava meus olhos e minha boca. Eu não via, mas podia sentir que ele me arrastava, eu tentava gritar, mas meu grito saia submergido demais para que eu mesma ouvisse. No fundo uma risada irônica e irritante. Ele me soltou.


- Não teve graça, palhaço! – disse, o meu tom de voz furiosa – Eu me assustei de verdade – admiti ainda furiosa.


Ele ainda ria, suas mãos escorregaram para a minha cintura. Cruzei os braços e fechei a cara enquanto assistia ele rindo.


- Desculpa. Eu não resisti – ele reprimiu o riso e fez carinha de anjo. Não me convenceu, por mais linda que fosse.


Ele apertou mais os seus braços em minha cintura.


- Não fica assim vai.


Eu não respondi nada, só abaixei os olhos.


Ele me apertou mais um pouco, agora com apenas um de seus braços em minha cintura. Com a outra mão livre, ele acariciava o meu rosto.


- Desculpa? – disse ele naquele tom de voz melosa veludínea que me fazia delirar.


Eu retorci meus lábios. Tinha outra opção? Ele era irresistível. Permaneci calada, acho que meus atos valem mais do que minhas palavras. Pra quê gastar saliva? Pousei minha cabeça no ombro dele. Ele me abraçou ainda pela cintura e encostou seus lábios em meu pescoço. Eu arrepiei. Rezei pra que ele não tivesse percebido isso. Mas percebeu. Ele afagou meu braço arrepiado, dando uma risada baixa. Depois eu levantei a cabeça tentando me libertar de seus braços que já se afrouxavam em minha cintura.


- Vamos? – disse já alguns passos diante dele.


Ele assentiu e me seguiu.


***


O pátio da escola estava desertamente vazio – uma raridade. Nós fomos para casa caminhando. Eu, apenas com uma alça da mochila em um ombro, deixando todo o peso da mochila no meu lado esquerdo. Eu “roubei” o mp4 do Dylan, já que eu tinha esquecido o meu em casa. As músicas eram previsíveis, eu sabia o gosto dele.


- Você ainda a usa! – disse ele apontando para o meu pulso direito.


Eu olhei pelo canto do olho. Era a tal pulseirinha da amizade que ele me dera quando eu tinha apenas seis anos. Ainda estava em meu pulso. Cheia de pingentes dourados e ainda radiantes.


- Na verdade, eu nunca a tirei – sorri para ele.


Realmente nunca a tinha tirado desde que ele me dera. Nove anos com uma pulseira. Nove anos de amizade.


Ele passou os dedos nos pingentes da pulseira, um sorriso entre os lábios. O sorriso infantil de uma criança que acabou de ganhar o presente dos sonhos. O meu sorriso infantil preferido.

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