Odeio isso, de coração



O Dylan me deixou na porta de casa, mas nada aconteceu, ele simplesmente disse “tchau” e beijou minha mão, o que me deixou meio encabulada.


Eu entrei em casa, coloquei meu skate num canto, meu pai ainda não tinha chegado, então subi pro meu quarto. Tirei o tênis, a meia, a calça e blusa – é claro que a janela estava fechada né – e sentei na beirada da minha cama. Meu corpo estava gelado e úmido, as roupas molhadas eu coloquei no cesto do banheiro. Enquanto estava ali sentada eu fiquei pensando em tudo que o Dylan me disse: Eu nunca mentiria pra você, Angie; só você me faz sorrir quando eu to chorando; te amo muito Angie. Essas frases ficaram latejando na minha cabeça, então fui tomar um banho quente pra ver se minha cabeça esfriava um pouco – ta, eu sei, eu sei, tomar banho quente pra esfriar a cabeça, nada a vê, mas digamos que é pra eu relaxar um pouco, bem melhor assim.


Depois do banho, estar quentinha e sequinha, não tinha mais nada pra fazer. E eu não ia fugir de novo.


- Borboletinha! – ouvir meu pai me gritar lá de baixo.


Desci correndo, doida para abraçar ele, já que esse final de semana ele me deu pouca atenção por causa da Viviane. Acho que meus olhos lampejaram quando vi meu pai, e num pulo abracei-o e tendo a desagradável visão por sobre o ombro dele. Viviane.


- Oi queridinha – disse ela, meu pai me soltou e deu um beijo na minha testa.


- Oi – tentei ao máximo ser simpática.


Fiquei ali parada perto da porta enquanto assistia a cena nauseante de Viviane tirando o casaco do meu pai. Bufei, revirei os olhos e sai. Fiquei sentada na pilastra da varanda respirando o ar puro e gélido. Depois de algumas horas Viviane apareceu na soleira da porta.


Ela sentou-se bem pouco distante de mim, se ajeitando pra não cai pra trás.


- Cadê meu pai? – perguntei por fim.


- Dormiu – ela riu, aquela risada seca de uma hiena desnutrida.


Ela continuou ali sentada, balançando as pernas, inquieta, me fitando.


- O que você pensa de mim? – perguntou ela ainda com os olhos fixos em mim.


O que ela quer dizer com isso?


- Como o quê? – disse desinteressada em qualquer coisa que ela dissesse.


- Como pessoa. – ele deu de ombros.


- Bom – comecei sem saber por onde começar –, você é bonita, tem um cabelo bonito...


- Eu quero dizer como sua madrasta – ela me interrompeu. Eu permaneci calada, eu não queria pensar nisso, madrasta, éca – Eu vou me casar com o seu pai daqui a algumas semanas e queria saber o que você pensa sobre mim como pessoa.


A palavra “casar” soava tão assustadora para mim naquele momento. Eu estremeci.


- Quer saber a verdade... Em minha opinião um casamento não se resume só em divisão de finanças e você não deveria me pressionar com isso – disse num tom de petulância.


- Seu pai te sobreestime – disse ela se inclinando pra mim.


Eu ergui uma sobrancelha.


- Prefiro aceitar como elogio – disse debochadamente.


- Você acha que eu não amo o seu pai?


- E o dinheiro dele se inclui? – disse num tom de petulância.


- Você tem que se convencer de que não é mais a única na vida de Robert Woncler, querida.


- Eu sou a coisa mais importante da vida dele – gabei-me –, você acha que ele vai me trocar por você? – desafiei-a


- Olha aqui queridinha – disse ela erguendo um dedo pra mim – Eu vou me casar com o seu pai daqui a quinze dias queira você ou não. E espero que você não continue nessa audaciazinha. – ela me olhou maleficamente de cima a baixo – Não pense que eu não enxergo além desse rostinho angelical – disse ela gesticulando para o meu rosto – Eu amo o seu pai e juro infernizar a sua vida a partir do momento que eu disser: Eu aceito.


Quem ela pensa que é pra falar assim comigo?


Soltei uma risadinha ironicamente irritante.


- Rá. Isso é uma ameaça?


- É só um aviso – a voz dela era sombria.


Nesse mesmo estante meu pai apareceu na soleira da porta. Ela contrafez um riso olhando para mim maleficamente.


- Sua filha é adorável Rob – disse ainda sorrindo pra mim.


Ela se levantou, abraçou o meu pai e o beijou escandalosamente. Depois de tudo que ela me disse, esse seria o momento exato em que eu sairia correndo pro meu quarto, me jogar na minha cama e começar a chorar de desgosto da vida, seria covardia, eu poderia dar um soco na cara dela naquela hora, eu me rebaixaria. Eu simplesmente desviei os olhos daquela cena e olhei pro nada, porém com meu pensamento bem longe. Juro infernizar a sua vida a partir do momento que eu disser: Eu aceito. Refleti bastante sobre essa frase. Na primeira oportunidade ela iria me mandar pro colégio interno! É claro que ela ia arrumar um jeito de se livrar de mim mais cedo possível. A partir do momento que eu disser: Eu aceito.


- Se ela disser – murmurei pensando ainda no que ela tinha falado.


- Disse alguma coisa abelhinha?


- Não, nada – disse me levantando.


Eu saí dali e subi pro meu quarto, me joguei na minha cama, só faltava eu chorando de tédio. Mas o tédio estava tão cúmulo em raiva que minha vontade era de quebrar alguma coisa.


***


Na terça-feira depois da escola. Eu estava exausta, cheguei em casa e fui direto pro meu quarto, tomei banho, me joguei na minha cama e fiquei escutando música. Depois de algumas horas, levantei e quando abri a janela o Dylan estava lá. Assim que ele me viu, deu um sorriso largo e empolgante.



Eu sorri meio confusa, na escola ele falou comigo, mas não muito, ele também ficou com a tal da bactéria e eu fiquei com os meninos, e de vez enquanto o Dylan me encarava como se fosse me matar, eu nem ligava, um ciúmes cobrindo o outro.  Escrevi:




Meu dia estava tão chato que eu me entregaria a qualquer coisa para sair da rotina dele.



Eu levantei pra trocar de roupa, na verdade, só a calça. Meu pai ainda não tinha chegado, então eu deixei um bilhetinho na geladeira escrito:  – ignore minha letra.


Eu saí – foram apenas quatorze passos de distancia –, quem atendeu a porta foi tia Cameron – não, ela não é minha tia de verdade, mas com o costume e a convivência eu acabei adotando ela.


- Angie! – ela disse sorrindo e abrindo os braços pra me abraçar.


Quanto tempo eu não via a tia Cameron, quer dizer, eu a via praticamente todo dia, mas não passava do “bom dia” ou “boa tarde”. Eu a abracei bem forte, tava morrendo de saudade dela.


- Entre querida, entre – disse ela gesticulando pra eu entrar.


A casa continuava a mesma desde quando eu tinha seis anos, é claro que renovaram a pintura, mas o ambiente era o mesmo, é como se eu voltasse a ser criança. O Dylan já estava descendo quando entrei, e lá vinha ele todo perfeito descendo aquela escada como um príncipe e sorrindo pra mim. Não, me diga que eu não fiz cara de boba agora.


Tia Cameron foi pra cozinha fazer a pipoca, e o Dylan veio até a mim me cumprimentar, deu um beijo na minha testa e depois foi colocar o filme. Mordi o lábio, estava meio nervosa, tava com um friozinho na barriga – sim, porque o Dylan é perfeito de todas as formas, até pra ligar a televisão.


Eu fui pra cozinha – eu novamente me sentia incrivelmente à vontade como era quando eu era criança -, tia Cameron estava tentando programar o micro-ondas. Eu fiquei ali enquanto o Dylan passava os trailers. Cameron me perguntou sobre tudo, tanto tempo sem conversar com ela que a gente tinha assunto até o amanhecer.


- Já começou o filme – anunciou Dylan lá da sala.


- Pode ir, já ta acabando aqui – disse Cameron.


Assenti uma vez e fui pra sala. Sentei no sofá, ainda meio insegura. Dylan sentou no meu lado, passou um braço por sobre meu ombro. Ele reprimiu um riso.


- O que foi?


- Relaxa Angie – ele disse ainda reprimindo o riso com um sorriso.


Ai, droga! Eu estava tensa, super-nervosa, não sei por que e ele percebeu isso. Eu juro que tentei ao máximo relaxar. Depois de alguns minutos a mãe dele chegou com a pipoca, também se sentando no sofá e colocando o pote de pipoca no meu colo já que eu estava no meio.


A gente viu um filme de comédia. Chegou ao meio do filme e eu não agüentava mais, minha barriga doía de tanto gargalhar, parecíamos três hienas descontroladas.


O telefone tocou e a mãe do Dylan foi atender.


- Alô?... – ela deu uma pausa – Não, não... Ta bom, então, to indo pra ai... Tchau. – ela desligou o telefone.


- Quem era mãe? – perguntou Dylan sem desgrudar os olhos da televisão.


- Ah, é a Bianca. Ela ta meio enrolada com uns probleminhas lá na loja, e pediu minha ajuda – disse ela enquanto pegava a bolsa e as chaves – Vocês se importam? – ela olhou pra mim.


- Er... – olhei pro Dylan pra ver a reação dele, ele estava tranqüilo – Não.


- Ta bom então – ela sorriu – Até mais tarde crianças.


Ela saiu.


Por um momento eu me senti literalmente uma criança. O filme de comédia já tinha acabado. O Dylan levantou-se pra trocar o DVD.


- Gosta de filme terror? – disse ele olhando pra mim com um sorrisinho cáustico enquanto trocava o CD-DVD.


- Acho que sim – dei de ombros


De repente lembrei-me do último filme de terror que eu vi com Ellen, da até pra concluir tudo sem que eu diga nada – gritos, gritos e mais gritos. Na verdade, eu gritava mais por causa dos gritos dela que eram realmente apavorantes, daí ela gritava mais por causa dos meus gritos e um grito cobria outro.


Dylan passou os trailers e deixou no menu inicial.


- Sabe fazer bolo?


- Não. Mas tenho noção do é fazer um bolo – disse enquanto levantava. É sério que ele queria fazer um bolo? Ou era só uma pergunta improfícua?


Ele sorriu pra mim e foi pra cozinha. Eu continuei ali em pé parada, ainda me perguntando: é sério que ele quer fazer um bolo?


Ele voltou pra soleira da porta da cozinha.


- Vem cá – ele gesticulou com a mão me chamando.


Sem comentários. Eu derreti nesse “vem cá”. Que ódio, depois de tudo, por que ele tinha que ser tão amável? Eu fui pra cozinha. Já estava em cima da mesa: ovos, uma caixa de leite, margarina, fermento em pó...


- Cadê o trigo? – perguntei. Ele já pegava a tigela.


- Trigo? – perguntou ele meio confuso.


Fala sério! Ele pegou tudo, menos o trigo. O que é um bolo sem o trigo? Seria o mesmo que pavê – eu acho.


- Porque um bolo precisa de trigo – respondi ainda meio incrédula pelo fato de ele não saber de que um bolo precisa de trigo.


Ele fez uma careta como se o trigo fosse coisa de outro mundo, então ele começou a procurar o trigo nos armários que ficavam acima da pia. Eu sentei na cadeira esperando ele. Ele pegou o saco de trigo, uma barra de chocolate e chocolate em pó e os colocou em cima da bancada. Depois de tantos momentos melodramáticos e ameaçadores, fazer bolo parecia divertido. Eu levantei mais animada.


- Espera ai só um minutinho – disse ele enquanto voltava pra sala.


Segundos depois começou a tocar uma música animada. Dylan voltou pra cozinha, pegou a tigela, eu peguei uma colher de pau na gaveta de talheres. Trigo e fermento. Enquanto eu dosava a quantidade de trigo pra ir pra tigela, sem querer o saco de trigo virou em cima do Dylan. Eu comecei a rir, a cara dele ficou toda branca, parecia uma vela, também caiu um pouco no cabelo dele, já que eu estava em pé e ele sentado na cadeira da bancada. Ele sacudiu um pouco o cabelo pra sair o excesso de trigo. Eu poderia pedir desculpas, mas eu estava rindo tanto que eu não falar.


 Ele pegou um punhado de trigo na mão – não acredito que ele vai fazer isso – e assoprou em mim – ele fez! Logo eu fiquei séria e ele começou a gargalhar.  Eu revidei. Daí, ficamos nessa guerrinha de trigo, bem agradável, o ritmo da música ajudava muito. Duraram alguns minutinhos só, se não ia acabar o trigo. Peguei o ovo pra quebrar na beira da tigela, minhas mãos ficaram com aquela mistura homogênea, nojenta, porém uma boa textura. Acho que trigo e ovos faziam bem à pele. Depois de alguns minutos de bagunça total, e quase dez minutos mexendo o bolo com a colher. Finalmente terminamos e despejamos num tabuleiro redondo e colocamos no forno.


- Agente vai ter que limpar isso tudo, né? – perguntei com uma pontinha de desanimação na minha voz.


- É, a alegria acabou – ele sorriu.


Ele levantou-se, pegou duas vassouras que estavam em um dos cantos da cozinha. Deu uma na minha mão e depois começou a varrer, na maior animação. Tai uma cena que eu jamais imaginei que iria assistir: Um menino varrendo a casa. Eu o ajudei – é claro –, não foi tão tédio assim. Teve uma hora em que minha vassoura bateu com a dele, ele implicância bateu de volta. Previsível? Sim. E começou mais uma guerrinha – de vassouras agora. Ele com todo cuidado para não acertar em mim, enquanto eu – sem querer, é claro – dei umas boas vassouradas em sua perna.


Eu tinha repulsa ao gostar tanto do Dylan assim. Ele era lindo, divertido, romântico, era meu melhor amigo então me conhecia como ninguém – além do meu pai. É quanto eu amo e preciso dele. Tudo o que ele faz me faz rir, ele me faz bem, eu me sinto feliz perto dele, eu queria não gostar disso por um momento.


Depois de arrumar a cozinha todinha, a gente foi pra sala ver o filme. Dez minutinhos depois o alarme do fogão apitou, eu levantei para tirar o bolo do forno – se é que poderia ser chamando de bolo.


Eu queimei minha mão na forma.


- Ai, caramba! – disse pressionado o dedão na queimadura, como se isso fosse adiantar alguma coisa, só piorou – Caramba, caramba, caramba! Ai!


- Vem cá, deixa eu ver – disse Dylan calmamente segurando meu punho, analizando minha mão – Espere ai.


Ele soltou meu punho e acho que foi para geladeira, já eu fui correndo para a pia molhar minha mão. A água fria de pouco adiantava.


- Me da sua mão.


Ele segurou meu punho delicadamente e pressionou um cubo de gelo na queimadura. A sensação gélida era gostosa.


- Melhorou? – sussurrou ele.


- Ta bem melhor – disse sorrindo.


Eu me perdi nos olhos dele por um momento, absorvendo o cheiro de chocolate que vinha do bolo.


- Pelo jeito deve estar uma delícia – comentei.


- O quê? – disse ele repuxando o canto dos lábios em um sorriso.


- O bolo.


- Ah! – ele riu.


O cheiro realmente estava bom. Ele colou o bolo em cima da bancada enquanto eu derretia a barra de chocolate em banho-maria, depois despejei o chocolate derretido em cima do bolo. Meus dedos estavam um pouco sujos de chocolate, eu distraidamente cocei minha bochecha e sujou um pouquinho. Logo me surpreendi quando o Dylan beijou minha bochecha.


- O que isso? – perguntei ainda surpresa.


- Um beijo – ele deu de ombros –, dãã.


- Eu sei – disse rindo, corei.


Ele cortou o bolo em cubinhos. Não acredito que a gente fez um bolo, e tava uma delícia mesmo. Até que a bagunça valeu à pena. Ele colocou em um prato os cubinhos e os colocou na mesinha de centro da sala. Eu me sentei no sofá e ele apertou o play, continuando o filme.


O filme era apavorante, do tipo: sangue e tripas. E é claro que eu não desgrudei do Dy. Fiquei agarradinha nele, e acho que ele sentiu medo mais dos meus gritos do que do filme. Por um lado foi ótimo.


Infelizmente depois daquele dia maravilhoso e tudo de bom eu tive que voltar pra casa. Já passava das nove e meia da noite. Meu pai já tinha chegado, ele estava em seu mini-escritório trabalhando.


- Boa noite pai – disse passando em frente à porta de sua saleta.


- Boa noite – sua voz era meio desanimada, num tom carente.


Voltei dois passos para traz, encontrando a porta de sua saleta novamente. Entrei e dei um abraço bem apertado nele. Senti seu rosto enrijecer em um sorriso.


- Vê se dorme ta bem – eu sorri –, carente – murmurei.


- Também te amo – sibilou ele -, abusada – murmurou ele no mesmo tom.


Nós dois rimos e eu fui pro meu quarto.

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