Me enterrem!



06h20min da manhã e meu celular berrando. Fala sério, hoje é sábado! Sobre o que me esqueci de dizer do ringtone infernal: eu não conseguia dormir de novo, por que ele era parecido com alguma espécie mal identificada de rock metálico, então aquilo me perturbava de manhã. Mas fiquei rolando na cama durante umas três horas.


Levantei, escovei os dentes, pus um casaco de moletom e desci. Assim que desci as escadas e cheguei à sala senti aquele cheiro estranho, porém familiar e azucrinante. O cheiro forte de perfume italiano. Impossível! Só se ela veio aqui. Assim que cheguei à cozinha, lá estava ela como se já fosse de casa.


- Bom dia filhinha – disse meu pai sorrindo – Dormiu bem?


Viviane sorriu pra mim, maleficamente.


Fiz uma careta, meu pai entendeu que num estava com saco nenhum pra agüentar aquilo.


- Tenho uma boa noticia pra você. – disse meu pai entusiasmado.


- Meu funeral é semana que vem? – murmurei baixo. Parece que realmente meu pai não ouviu ou ele ignorou. Eu preparava meu cereal.


- Eu e a Viviane – ele respirou fundo e segurou a mão dela sobre a mesa – já marcamos a data do nosso casamento para o ano que vem. No verão.


Bati com a garrafa de leite em cima da pia, só de raiva. Que bom, pelo menos meu “funeral” seria no verão. Travei o queixo. Ainda sem olhar pra eles.


- Ótimo – disse entre os dentes, sarcasticamente. Agora tudo o que peço é: me enterrem!


Ainda sem sair do lugar, girei e olhei pra eles, estava encostada na bancada da pia. Eles não falaram mais nada, pelo menos não para mim. Mas eu continuei ali parada, entre cada colherada eu pensava: como eu ia me acostumar com ela? A cascavel deve estar feliz por ter envenenado meu pai agora. Mas pensando por outro ponto de vista, meu pai vai se casar com ela e eu sei – pelo menos acho que sei – que ele não seria capaz de se casar com uma mulher qualquer. Será que a Viviane era tão amável assim? Geralmente em todos os contos de fada a madrasta é a bruxa. Mas essa é a vida real. Seria diferente?


Tomei coragem e sentei-me à mesa. Os dois olharam pra mim surpresos, meu pai sorriu. Eu dei um breve sorriso tímido pra Viviane, acho que não foi um dos meus mais sinceros sorrisos, mas foi o máximo que pude fazer – o mesmo posso dizer pra ela que retribuiu meu sorriso, hesitante.


Sábado, acordar e ir tomar café-da-manhã com aquela cara azeda da Viviane – ai ai, jurei a mim mesma que ia parar, respira Angie, respira – sentada a mesa, eu fingindo ser a boa menina – anjo agora é o meu sobrenome – e me comportando como se ela fosse da família. Aff – é tudo o que eu tenho a dizer.


E domingo, dia dos pais. Eu ia sair pra comprar alguma coisa pra ele, mas ele não deixou, ele falou que não precisava porque eu era o presente eterno da vida dele. Que lindo!


***


Na segunda-feira de manhã. Viviane não estava mais lá, meu pai deve ter levado ela de carro pra casa ontem à noite.


Minha mesma rotina de sempre. A diferença é que hoje eu acordei com a sensação de que ia acontecer uma coisa ruim, seria possível ficar pior do que já estava? Mas mesmo assim segui minha rotina despreocupada.


- Bom dia pai – disse quando ele apareceu na soleira da cozinha. Eu já terminara meu café, já estava lavando a tigela.


- Bom dia meu raio de sol – disse meu pai ainda bocejando – Se comportou bem esse final de semana – ele sorriu.


- Não foi fácil, acredite – fui pra sala pegar minha mochila.


Eu já ia saindo quando ele disse sorrindo:


- Continue assim – ele realmente estava satisfeito com o meu comportamento no final de semana.


Assenti uma vez e sorri.


Peguei um guarda-chuva – por que estava chovendo dãã. Assim que abri o portão vi aquele menino sentado na calçada, olhando pro horizonte do nada, com aqueles cabelos marrons chocolate à chuva.


- Dylan? – chamei ainda sem acreditar que ele estava me esperando pra ir pra escola.


Ele olhou para mim, aquele sorriso lindo de sempre, os belos olhos semi-serrados por causa da chuva, os pingos de chuva que escorriam de seu cabelo.


- Você ta todo molhado, vem pra cá – disse gesticulando pra ele vim para debaixo do guarda-chuva junto comigo.


Ele veio sorrindo e cantarolando: You can stay under my umbrella...


Eu ri.


O legal foi que o guarda-chuva era pequeno – só dava pra uma pessoa – e eu tive que ir agarradinha com o Dylan pra escola. E quando ele falava comigo, falava ao pé do meu ouvido de tão agarradinhos que estávamos.


Chegando à escola, já debaixo de uma cobertura. Enquanto eu tinha certas dificuldades para fechar o guarda-chuva ele ria, até que eu desisti, ele o pegou da minha mão e fechou facilmente. Nós sentamos em um banco, ele com um braço sobre meu ombro me abraçando, conversávamos sobre coisas banais. Até que veio uma garota em nossa direção.


- Er... Dylan – ela hesitou um pouco ao falar com ele quando me viu ali – Katie quer falar com você.


Dylan olhou para mim e logo voltou os olhos pra ela. Ela era uma das lideres de torcida e uma das amiguinhas do Dylan, a Rachel.


Fala sério! O que a Katie queria com ele agora?


- Ta, pede pra ela esperar um pouco – disse Dylan por fim.


Cruzei os braços e fechei a cara pra ele, só de pirraça. Ele olhou pra mim com angustia afagando minhas costas.


- Angie... – a voz dele estava meio arranhada


- Tudo bem, vai lá falar com a sua namoradinha – disse ainda com a cara fechada, sem olhar pra ele.


Ele ainda abriu a boca pra falar algo, mas eu ignorei. Então ele se levantou e foi lá falar com a sua adorada Katie. Eu só fiquei observando de longe cada detalhe.


Ele chegou lá friamente com a expressão ríspida. Ela que começou a falar, parecia mais que estava implorando. Não, não acredito que ele vai voltar pra ela. De longe ele parecia angustiado, segurou-a pelos ombros e olhou dentro dos olhos dela – queria eu um olhar penetrante desses –, ele disse alguma coisa e depois balançou a cabeça em negativo – ta, eu não quero mais um olhar desses.


- Angie! – gritou Ellen chegando do nada. Eu dei um pulo do banco, de susto – Só faltam cinco dias! – disse ela com um histerismo animador.


 - Er... – tentei racionalizar e agregar sobre o que ela estava falando – Que bom... – disse sorrindo, mesmo sem entender nada – Do que você ta falando?


Ellen me metralhou com o olhar, aquele olhar de tacar tijolos, pedras e doninhas. Assustador. Ela suspirou e se acalmou.


- O Show do TH – disse ela pausadamente.


Droga! Tinha até me esquecido.


- Você está mesmo com o dinheiro do ingresso – perguntou-me Ellen, agora os olhos dela não me metralhavam mais.


- Já sim – disse sorrindo, agora era verdade, eu realmente estava animada. Prometi a mim mesma que essa seria a ultima vez que eu pediria dinheiro a meu pai. Sabe como é que é né, quinze, dezesseis, vinte anos e eu pedindo dinheiro a meu pai? Tipo, nada a vê.


Antes de tocar o sinal, eu e Ellen ficamos tagarelando, tagarelando e tagarelando – sobre o show.


Olhei rapidamente para o Dylan e (O QUE?!) ele estava abraçado com o Rachel. O abraço dela parecia consolador demais, apesar das suas trigésimas intenções. Não sei por que, mas aquilo me deu uma raiva tão grande, pude sentir o sangue latejando nas minhas veias e contraindo minha mão em um punho. Juro que ia dar um soco naquela Rachel.


Agora implorando por dentro: me enterre, me enterre!


- Angie – a voz dela parecia preocupado – Você ta bem?


Eu bufei e depois desviei os olhos, mas mesmo assim ela percebeu.


- Que vaca. – disse Ellen, incrédula.


- Me tira daqui antes que eu faça alguma coisa muito errada. – disse ainda ríspida.


Finalmente o sinal tocou e Ellen me tirou dali.


Agora eu estava enterrada.


***


Não sei por que eu fiquei tão furiosa quando vi o Dylan abraçado com aquela... aquela... aquela bactéria. Aquela garota é tão medíocre. Argh! Passei todas as aulas com esses pensamentos martelando na minha cabeça. No intervalo o Dylan nem falou comigo, ficou perambulando pra lá e pra cá com a Rachel. Mas eu também não fiquei por baixo, passei o intervalo com os meninos – Kevin, Rupert, Yuri e Matthew.


Em um dos corredores vazios da escola, escutava vozes, parecia do Dylan e da Rachel.


- Há quanto tempo? – disse ela


- Há muito tempo - disse ele – Desde que te vi pela primeira vez.


É claro que eu evitei que eles percebessem minha presença intrusa.


- Mas você sabe que eu num gosto daquela... Angellyne. – credo, ela praticamente cuspiu meu nome, isso me deu tanto ódio, meu sangue começou a ferver de novo, sentia borbulhar.


- Mas é só você Ray, eu juro. Eu também não gosto dos garotos com quem você anda, me irrita. Só você faz meu coração sorrir. Eu te amo Rachel.


Eu tive que engolir a seco essa. Absorvi todo o oxigênio que pude pra não poder chorar e também pra não poder gritar. Não queria ouvir mais nada. Ta vendo Angie, nisso que dá ser enxerida, disse a mim mesma.


Fui pra casa correndo, por que não podia prender a respiração por tanto tempo, ela começava a escapar e as lagrimas escorriam pelo meu rosto, contornando minha bochecha.


Quando cheguei em casa não havia ninguém. Que bom, se não meu pai ia ficar me interrogando. Subi pro meu quarto, joguei a mochila pra um lado e o tênis pro outro, agora não havia mais necessidade de prender a respiração, nem o grito e nem as lagrimas. Soltei a respiração e gritei o máximo que meus pulmões podiam, e meu grito não foi tão alto, por causa do choro minha garganta estava arranhada demais. Sentei num canto do meu quarto, abracei as minhas pernas e comecei a chorar.


O Dylan não podia fazer aquilo comigo, não podia. Que droga! Que ódio! Pra quê se apaixonar, pra quê?! Pior é uma paixão mal correspondida. “Eu te amo”. Eram só palavras da boca pra fora, ou melhor, do papel pra fora, eram apenas palavras mal escritas.


Eu nunca deveria pensar o que há no coração dele, sempre soube que nunca estive lá, ele era apaixonado pela Katie, agora a Rachel, ele deve ter uma queda por líderes de torcida. Eu nunca tive a mínima chance.


Enquanto chorava de cabeça baixa eu percebi, aquela pulseirinha com vários pingentes – golfinhos, corações, estrelinhas, bonequinhas – lindos e miúdos.
 


Estava de tardinha, era o dia do meu aniversário, completaria oito anos. Estávamos no parque, eu estava no balanço enquanto ele me empurrava dando impulso, até que ele parou.


- Olha Angie, eu num tinha dinheiro pra comprar presente – disse ele de cabeça baixa, num tom tímido – Eu trouxe essa pulseira – ainda de cabeça baixa, ele me entregou a pulseira.


- Ual, Dy – eu disse – É linda! – acho que ele não esperava por essa reação, ele olhou para mim surpreso.


- Você gostou? – ele sorria – Sério?


- Eu adorei – eu dei um pulo do balanço e o abracei – Obrigada! – dei um beijo no rosto dele. Na época eu nem reparei muito nisso, mas ele corou e deu aquele sorriso lindo, depois me ajudou a colocar a pulseira.
 


Eu ri. Aquele mesmo riso abafado, sem humor. A lembrança passada costumava ser feliz, por conseqüência do presente tão nebuloso agora as lembranças me assombravam. O silêncio do meu quarto zunia em meus ouvidos todas as lembranças.


Do que adiantaria eu ali encolhida no canto do meu quarto chorando por um garoto que mal gostava de mim. Às vezes eu queria alguém que estivesse ao meu lado em um momento desses, só pra me dar um tapa e me fazer acordar dessa nostalgia aguda.


Eu levantei, precisava me distrair. Desci e peguei meu skate, sai de casa, sem rumo. Precisava de ar, precisava de qualquer coisa que não me fizesse lembrar o Dylan – como se isso fosse possível.


E já estava um pouco longe de casa. Estava na beira da praia. Parei, sentei na calçada e coloquei o skate do meu lado admirando a vista em minha frente. A brisa do mar era fria, já chovia bem pouco, deixei os pingos de chuvisco deslizar sobre meu rosto, eram tão gelados que pareciam micros agulhinhas me perfurando. Aquilo estranhamente me acalmava. Erguei meu rosto pro céu e fechei os olhos.


- Angie?


Droga! Essa voz só pode ser da minha cabeça, aquela voz vibrante soando meu nome. Abri os olhos pra escapar das utopias da minha mente.


- Oi – ele estava sorrindo e ele estava ali no meu lado. Fala sério, eu to vendo coisas agora? Por que ele tinha que esta ali quando eu estava ali? Por que ele não estava com a Rachel dele? Aff.


- Oi – respondi friamente, sem olhar pra ele. Mas percebia que ele me encarava, analisava.


- O que aconteceu? – ele perguntou preocupado


Ainda tem coragem de perguntar! Que idiota. Eu não respondi, aquela pergunta me deixou transtornada.


- Você me ama? – perguntei, eu sei que dependente da resposta dele isso me feriria muito.


- Sim – ele sorriu, eu desviei o olhar, aquele sorriso era tentador demais – Te amo muito Angie. – ele pôs a mão sob meu queixo virando meu rosto, fazendo com que eu olhasse pra ele diretamente.


Estava me entorpecendo de novo com aqueles olhos.


Desviei meu rosto.


- Isso é o que você diz pra todas – eu ri sarcasticamente, apesar do nó na garganta de ter dito aquilo. Pior ainda, era um fato.


Ele bufou e voltou os olhos pro mar, como se estivesse procurando por uma resposta. Então ficamos nesse silencio constrangedor só por alguns minutos.


- Não é assim, Angie – sua voz estava meio fraca.


- Não? – repeti ainda com um pequeno tom de sarcasmo – E qual a diferença?


- Que pra ela... o que eu digo... pra mim são apenas palavras. Agora, quando eu digo pra você... é de coração, te juro.


Essas palavras pareciam convincentes pros meus ouvidos, mas meu coração ainda estava dividido entre as minhas evidencias e os meus sentimentos, minha mente negava tudo, racionabilidade aguda. Acreditar ou não? Acreditar e ser feita de boba de novo?


- Se você mente pra ela, por que não estaria mentindo pra mim agora? – minha voz era firme e fria.


Ele riu ironicamente.


- Você acha que depois de tanto tempo eu mentiria pra você?


- Há uma possibilidade, por que não?


Ele se virou pra mim, pondo suas mãos sobre meus joelhos, e uma de suas mãos mais uma vez sob meu queixo.


- Você acha que eu sou cafajeste o suficiente pra mentir pra você? – sua voz era suave, ele segurou meu rosto, seu olhar era penetrante como se interpolasse em minha mente e embaralhasse todos os meus pensamentos – Eu nunca mentiria pra você, Angie. Poxa. Quem esteve comigo quando... – ele pausou.


Eu sabia qual era. A lembrança com certeza não era uma das melhores, acho que foi a pior coisa que aconteceu com o Dy, foi perder o herói dele. Pode se dizer o mesmo de mim, sabia a exata dor que ele sentia, eu perdi minha heroína.


- Melhor resumindo – continuou ele –, quem esteve comigo nas piores situações me apoiando e me consolando? Quem sempre esteve ao meu lado enxugando minhas lagrimas com sorrisos? – ele deu um breve sorriso meio torto – Só você me faz sorrir quando eu to chorando. – seus olhos lampejaram, estavam quase transbordando, e tudo que ele falava se acumulava em nó em minha garganta, a vontade de mandar ele cala boca e abraçá-lo forte. Eu sorri, um sorriso tímido, prezo.


 - Seu sorriso é lindo, Angie, até quando você o reprime – a voz dele agora era fraca demais para eu entender claramente a frase, mas isso fez o meu sorriso acender, foi algo automático, quase incontrolável.


Eu o abracei forte. Daí que eu percebi que estávamos encharcados por causa da chuva. Mas eu não estava dando a mínima pra chuva naquela hora. Eu queria relaxar, mas meu coração ainda doía. Põe-se em meu lugar, era tudo muito pesado pro meu coraçãozinho – ver o que ele fez; ouvir o que ele me disse.


Ele me afrouxou um pouco dos braços dele, segurou minhas mãos.


- Melhor a gente ir pra casa. – ele já levantara, ainda segurando minhas mãos me ajudando a levantar também.


Levantei e não respondi nada, enxuguei minhas lágrimas que mal dava pra perceber por causa da chuva que também molhava meu rosto.


Fomos caminhando apesar de ser um pouco longe, eu fui com o skate na mão, ele com a mão nos bolsos do casaco. Como estivéssemos bloqueados um do outro de alguma forma. Ficamos nesse silêncio constrangedor e só trocamos alguns olhares indecisos.


Só queria dizer uma coisa: Ainda assim – depois de tudo dito, comprovado e feito – eu acho que nunca deveria pensar o que há em seu coração. Uma coisa que eu não disse.

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