Autonomia



Já estava de noite quando o meu pai chegou do trabalho por volta das 19h20min. Eu estava na sala sentada no sofá vendo qualquer programa, trocava de canal de cinco em cinco minutos. Meu pai largou a bolsa na sala e foi para a cozinha beber um copo d’água.


- Angie, filhinha – ele já estava na sala em pé ao meu lado ainda com o copo d’água.


- Pai, vai ter uma festa lá na escola no finalzinho do mês. Eu posso ir?


- Quem vai?


- Todos da escola, claro.


- Hum... Até lá eu vou pensar.


- Ta – Ótimo! Chega no dia, eu com tudo planejado para ir e ele não deixa!


Olhei para ele, ela parecia interessado no documentário sobre animais selvagens que passava na TV. Interrompi o interesse dele.


- E outra coisa paizinho...


- Iii, lá vem – disse ele num tom baixo me interrompendo


Ele sabia que toda vez que o chamava de “paizinho” era porque boa eu não ia pedir, provavelmente uma coisa que eu de alguma forma já sabia que ele diria não.


- Sabe o que é pai – disse de cabeça baixa – O show do Tókio Hotel vai ser dia 14 outubro... – pausei


- E...?


- E que eu queria a sua ajuda pra me ajudar a achar algum trabalho ou qualquer coisinha que ajudasse conseguir R$450 até lá.


Meu pai se sentou ao meu lado pondo o copo vazio na mesinha de centro, segurou as minhas mãos, olhou para baixo – parecia que estava rindo – e voltou os olhos para mim:


- Eu posso te dar esse dinheiro florzinha, quando você quiser.


- É pai, eu sei, mas, poxa, – bufei – eu já tenho quinze anos, até quando eu vou ter que depender de você?


Ele sorriu, me abraçou encostando minha cabeça em seu peito e suspirou:


- Minha borboletinha Angie, será que você pode deixar de ser autônoma de vez enquanto?


Eu sorri. Acho que sinceramente o meu pai sentia falta de cuidar de mim. Ele saia de casa bem cedinho pra trabalhar – engenharia civil – e só voltava à noite. Eu aprendi a ser independente aos sete anos de idade, já sabia lidar com o meu cabelo e me arrumar, ia para a escola com o Dylan, a mãe dele nos levava, ela era legal, Cameron era o nome dela.


***


Passaram-se três semanas, as três semanas mais normais e mais broxantes da minha vida. O Dylan quase não falava comigo, ia pra escola com a namorada dele e também voltava com ela. Sempre que abria a janela do meu quarto não via ele; calça jeans, sem camisa e os cabelos ainda molhados. De manhã quando abria o portão... Ainda lembro-me do rosto dele e seus cabelos castanhos chocolate reluzentes ao sol, e seus olhos azuis que chamejavam como um oceano. Sentia saudade disso.


Uma vez, nos corredores da escola, ele vinha andando em minha direção sorrindo todo perfeito, o sorriso que eu costumava ver todas as manhãs, eu hesitei um pouco a sorrir de volta. Ele não sorria pra mim, era a Katie que estava um pouco mais atrás de mim. Eles só se abraçaram, eu via a garota sortuda que ela era, mas ela mal sabia dar valor a isso, era o que mais me irritava. Ela tinha tudo aquilo que eu tinha que viver sem.


Meu pai saia quase todas as noites com Viviane, às vezes ela ia lá em casa, mas eu nunca fiquei na sala fazendo recepção pra ela, sempre que meu pai abria a porta e eu sentia aquele cheiro forte de perfume italiano eu tratava de subir logo pro meu quarto, não suportava ela. Uma vez meu pai pediu para que eu ficasse lá embaixo com eles, meu pai tinha encomendado uma pizza, então nós ficamos na sala vendo filme de comédia, comendo pizza e bebendo coca-cola, até que estava divertido, a não ser quando eu tentava falar com meu pai e a Viviane vinha cheia de denguinho, como se quisesse roubar a atenção dele de mim, eu tentava ignorar se não daria um soco naquela cara de porcelana artificialmente plastificada que ela tinha – efeito botox.


Então, durante essas três semanas eu tive que me virar sozinha: almoço, casa, janta, escola, tudo sozinha, tudo mesmo.


Já faltava apenas uma semana pra festa da escola e duas semanas para o show do TH. Eu só precisava de uma roupa ou um vestido descente pra festa – óbvio que eu não ia de all star e calça jeans.


Peguei minha bicicleta e fui dar uma volta, aproveitei pra passar na casa de Ellen.


- Angie amiga! Entra, Entra – disse ela toda entusiasmada com minha presença assim que abriu o portão.


Sorri e entrei colocando minha bicicleta no canteiro.


Já fazia tanto tempo que eu não ia a casa dela, mas nunca tinha esquecido aquele jardim onde nós brincávamos de bonecas quando éramos crianças. Lembro-me do cheiro de terra molhada e as gotículas de garoa na grama.


A cadela que ela tinha ainda estava ali, um ano pros cachorros passam mais rápido do que para a gente, da ultima vez que eu vim aqui a cachorra dela tinha dois anos, agora deveria estar com três e meio ou já quatro. Seus pelos ainda eram macios, bem pretinhos, os olhos inocentes com certo instinto de caça.


- Angie, Angie – disse ela enquanto eu entrava na sala – Eu consegui o dinheiro com o meu pai! – ela estava com os olhos brilhantemente empolgados, esse show era tudo pra ela.


- Jura? – disse animada – Eu também, amiga!


Ela deu um largo sorriso, logo retribui e nós nos abraçamos, aquele abraço esmagadinho de estalar todos os ossinhos de uma alacridade esplêndida.


Depois ela me levou pro quarto dela pra me mostrar as roupas novas que ela tinha comprado e que eu ainda não tinha visto. Comentei sobre com o que eu iria para festa então ela promoveu um “desfile”. Experimentei algumas roupas dela – que caia muito bem em mim já que vestíamos o mesmo numero. Vesti uma blusa preta com detalhes de stress e lantejoulas prata, uma calça comprida de jeans escuro, um vestido vermelho com alguns detalhes em preto e branco, outro vestido – agora branco com detalhes bordado de uma linha amarela que dava a impressão de ser bordado a ouro. Todas as roupas eram deslumbrantemente lindas, um visual desleixado e elegante ao mesmo tempo, ousado e comportado, o que eu achei discretamente lúbrico, encantador.


Voltei pra casa exausta, já cansada de tanto experimentar roupas. Encostei minha bicicleta no murinho, entrei e a casa estava vazia, subi correndo pro meu quarto.


Encima da cômoda do lado da minha cama estava meu consolador mp4. Pus os fones em meus ouvidos enquanto ligava, fui passando música por música, queria uma musica meio agitada que não me fizesse dormir, apesar de estar cansada.


Não sabia se eu estava cantarolando, o volume estava tão alto em meus ouvidos que mal ouvia minha própria voz. Mas era isso que eu queria agora, me apagar um pouco do mundo – já que o Robert e o Dylan já tinham feito isso por mim – e esquecer-se de problemas alheios.


Olhei para a janela e vi Dylan ao celular andando de um lado para outro de seu quarto, parecia inquieto, sentei na beirada da minha cama, ainda o observando, pelo o que parecia ele estava discutindo com alguém, provavelmente com a Katie. Pelo o que concluí, ele deve ter falado ou feito algo que a deixou chateada, do jeito que ela se estressava por qualquer coisinha.


Depois de uns dois minutos, ele olhou para o celular e murmurou alguma coisa, ela deve desligado na cara dele como sempre, quando ele me viu ali parada o observando ficou meio sem graça, deu um sorrisinho de lado, abaixou a cabeça e coçou a nuca ainda inquieto, sentou na beirada da cama.


Respirei fundo e peguei o caderno de desenho que já estava no meu lado:



Ele fez uma carinha de desapontamento, dava pra ver que ele não estava nada bem:




Um apoio cínico. Realmente lastimava por ele. Ele era tão apaixonado pela Katie, mas a própria não via isso. A falta de palavras me deixou meio acanhada. Ele tinha discutido com a Katie, já era mais 10% nos meus cálculos pra ele terminar com ela, já por outro lado, isso o deixava mal, e por isso eu me sentia meio masoquista. Ele suspirou e sorriu pra mim:



Eu sorri, nem reparei na minha expressão de bobinha apaixonada, e voltei a escrever, ele já havia se levantado, eu olhei pensativamente para o que eu escrevera.



Eu respirei fundo, mas não tive coragem de levantar aquela página, ele já tinha fechado a cortina de sua janela.


Até quando? Acho que pra ele sempre serei apenas uma amiga, logo eu, a garota que queria ser o centro do mundo dele. O que eu deveria fazer para ele perceber isso? Nada era o suficiente.


Eu tentava sorri quando o via com ela – ou com outras garotas –, e atuar como se estivesse tudo bem, mas com certeza ele não sabe o que estar apaixonada por uma pessoa que mal sabe do tal amor secreto.


Nos meus sonhos era comum ver nós dois juntos – eu e ele – constantemente. Eu não deveria ligar pra isso, eram apenas sonhos... Sonhos que pouco sentido fazia.

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