As bruxas sem poderes










 



Encontrava-me em Hogwarts naquele momento. No lugar que sempre admirei, e na aula mais complicada: Transfiguração. Na minha frente, um pergaminho enorme recheado de questões do NIEM, enquanto uma pena marrom se encontrava em minha mão. Coberta por pontos de interrogação, levantei levemente minha cabeça e olhei ao redor. A professora se encontrava na mesa a frente de minha carteira e vários alunos da Grifinória esquentavam a cabeça para resolver as questões. Pelo amor de Deus, o que eu estava fazendo ali? Só tinha doze anos!


Um estalo. A cena mudou. Encontrava-me no pátio da escola agora, sentada em um banco de pedra qualquer, com duas pessoas ao meu lado. Um menininho de óculos e olhos verdes conversava e sorria o tempo todo, ao mesmo tempo em que uma menininha de cabelos esvoaçantes se encontrava mergulhada em um livro antigo.


 - Rosa, por favor, para de ler um pouco e ria com a gente! – pedia o garoto em meio a um sorriso. “A gente” quem? Só ele estava sorrindo. Eu simplesmente, me encontrava completamente perdida e confusa entre os dois.


 - Não Alvo. Ainda tenho de decorar mais dez poções para a próxima prova, e desta vez quero tirar nota máxima.


 - Não importa. SunShine e eu vamos jogar quadribol, não vamos? – perguntou de olhos brilhantes o menino de nome Alvo.


Um sorriso enorme tomou conta de meu rosto e meus olhos também brilharam. Quadribol?!  Seria burrice negar, afinal era o melhor jogo existente. Comecei a responder apressada e animadamente.


 - Mas é cla...! – Mas fui interrompida.


A escola inteira chacoalhou, as pessoas ao meu redor congelaram abruptamente e um barulho irritantemente estressante tapou meus ouvidos. Mas que droga! Que barulho era aquele? Que tremedeira era aquela? E que som horrível era aquele que lembrava tanto o meu... Despertador?


 


 


Abri meus olhos. Encontrava-me em um pequeno quarto de paredes de madeira pintadas toscamente de amarelo, deitada em uma cama de madeira e coberta com um edredom branco florido. A parede, o qual meu leito ficava encostado, estava coberta de rabiscos e garranchos feitos por uma criança de cinco anos – mais especificamente, eram meus rabiscos e garrranchos. Encostado a parede do outro lado do quarto, estava um antigo guarda-roupa corroído por traças, completamente abarrotado de livros da J.K. Rowling, desde a série Harry Potter até Os Contos de Beedle, o Bardo, e bem ao lado deles, um violão que “herdara” de meu suposto avô paterno. Mas o principal daquele quarto era exatamente o que me fizera voltar à realidade – a mesinha de madeira ao lado da cama, que chacoalhava com a tremedeira e o barulho irritante que meu despertador fazia sem parar. Ergui a mão sonolenta e bem vagarosa, procurei o relógio pela mesa por alguns instantes e quietei-o pelo botão superior.


Por um momento fiquei imóvel em minha cama; minha mão sobre o despertador empoeirado, fitando o teto por alguns instantes. Tinha sido um sonho; apenas mais um sonho meu, simples, vivente da fantasia de minha mente. Parecia algo tão real às vezes, mas ao mesmo tempo tão confuso e desanimador. Por mais que deseja-se, por mais que sonha-se, nunca, jamais tocaria nem mesmo em uma pedrinha minúscula vindo do castelo de Hogwarts. Nunca.


Queria tanto livrar-me daquela vida... Viver uma diferente, melhor, mas impossível. Queria poder viver como uma criança normal, bruxa ou não, sem ter de enfrentar as mesmas dificuldades matutinas de meu trabalho (isso mesmo, trabalho), sem ter aquela sensação ruim que tivera sempre a partir dos dez anos de idade, em que me sentia vigiada as escondidas por vinte e quatro horas e, o melhor, sem ter segredos vitais a esconder de todos.


Elevei minhas mãos, levemente, acima de minha cabeça cansada, as observei por alguns segundos e suspirei pesadamente.


Vários já haviam me perguntado por que agia de modo tão estranho, às vezes. Por que me viam olhando para os lados de repente. Por que me pegavam emburrada para o nada. Por que me pegavam correndo, fugindo de algo inexistente. E, principalmente, por que tinha vezes que sorria para o nulo ao meu ombro. Toda vez evitava contar para não comprovarem que eu tinha pirado – naturalmente não tinha, mas era o que o povo pensava!


Não quis perder mais tempo. Arranquei o edredom de cima de meu corpo e pulei para fora da cama tão rápido que nem eu mesma acreditei. Por que perder tempo com meus sonhos tolos?, pensei, Não tenho tempo a perder. Acostumada a acordar às cinco horas da manhã com o mesmo som do relógio, fui até a porta de meu banheiro em passos pesados, arrastando minha velha camisola roxa pelo chão de madeira gasta, dando um pequeno bocejo no meio do caminho; que preguiça eu sentia. Que vontade de retornar ao meu sonho infantil. Que vontade de ter amigos. Que vontade de viver feliz. Ah não, sonhando de novo. Se concentra! Sem peninha, sem peninha , refleti persistente, enquanto dava pequenos socos na própria testa.


Caminhei mais um pouco, desviando-me da segunda cama na passagem e chutando coisas velhas largadas no chão de madeira, completamente empoeirado. Botas velhas, papéis, tocos de lápis, canetas secas e cadernos despedaçados se encontravam espalhados pelo chão imundo, tão sujos e arrasados que pareciam ter sido fabricadas à meio século atrás e esquecidas pelo mundo. Era como eu me sentia às vezes; exatamente como as tralhas jogadas em meu quarto velho. Ah...! Chega de se lamentar! É hora de trabalhar, e rápido!, pensei, novamente me advertindo, mas... CREQUE! Algo havia quebrado.


A princípio achei que tinha esmagado mais uma de minhas canetas frágeis e a transformado em caquinhos minúsculos como sempre, todavia, ao parar na porta velha do banheiro e olhar para meus pés quase completamente cobertos pela camisola enorme, não me deparei com nada. Dando um passo para trás, querendo ter certeza e dando uma olhadela por cima do ombro, encontrei o caminho livre. Além de achar isso muito estranho (como poderia quebrar alguma coisa em um canto vazio?), sem mais nem menos, um ruído de algo se arrastando ao chão chamou-me a atenção, fazendo-me virar abruptamente para ver o que fizera o som intrigante.


Nada. Absolutamente nada, além do próprio ar. Baixei os olhos ligeiramente e deparei-me com algo estranho: a quase um metro e meio de distância, uma caneta que tinha visto no caminho, completamente inteira, agora se resumia em dezenas de caquinhos de plástico espalhados pelo chão. Mas aquela caneta estava inteira a menos de dois minutos atrás. Como pode ter quebrado quando só eu estou no quarto, a um metro e meio de distância da coisa? Não sabia, mas a atitude mais sensata que conseguir pensar em tomar foi... Me apressar a escancarar aquela porta velha do banheiro, me enfiar lá dentro o mais rápido possível e ficar o tanto de tempo que fosse plausível, bem longe de alguma coisa que eu não fazia ideia do que era.


Assim que, em um pulo, atravessei o portal, fechei-o o mais rápido possível e respirei fundo encostada no mesmo, tentando botar na minha cabeça que não tinha havido nada de mais e arriscando em pensar que só tinha... tinha acontecido qualquer coisa para a minha caneta mais nova, dura e seca se quebrar em pedaços sozinha. Ao mesmo tempo, pude ver a aparência do banheiro meu.


Chão de madeira como o do quarto, o velho toalete continha um velho pano de chão rasgado usado como tapete, grudado a uma pia pequena cor de carmim bem adiante da porta pequena de entrada. Havia um pedaço de espelho sujo grudado na parede um pouco acima dela, o que dava a nítida aparência de um banheiro pobre. Na pia se encontrava um potinho azul, guardando uma escova e uma pasta de dente velhas e um pente de cabelo qualquer. Ao lado de tudo isso, um box de pedra apertado, bem ao lado de um velho sanitário.


Depois de alguns segundos, direcionei-me até a pia pequena para minha higiene matinal; lavar o rosto, escovar os dentes, pentear o cabelo, trocar de roupa (blusa e calça jeans rasgada na barra, dobradas e largadas à um canto), pegar minha mochila e um livro de meu armário, saindo do banheiro, e descer a escadaria de minha casa direto para a cozinha.


Bem, até agora você já deve estar imaginando como é o restante de minha casa, não? Pobretona e velha como o meu pequeno quarto. Acontece que é completamente, totalmente e definitivamente ao contrário.


Ao abrir a porta corroída de cupins de meu quarto, tive imediatamente uma visão esplendorosa do interior da moradia.


No final da escadaria bamba do sótão, lugar onde se encontrava meu quarto, seguia-se um piso de mármore enorme e uma escada e corrimão do mesmo material, que reluziam como o raio de sol, borrando minha visão por causa de um enorme lustre de cristal caríssimo, que balançava sem parar até com a mínima brisa que saísse das enormes janelas de parapeitos dourados e vidraças exageradamente coloridas e gigantescas, nas paredes pintadas classicamente com branco perolado e um pêssego extremamente enjoativo. A casa tinha dois andares. O sótão e o primeiro e segundo andar. Meu aposento era pequeno, mas em compensação os andares seguintes eram enormes. Tão grandes que parecia que metade do maracanã podia entrar na casa. Para terem uma ideia, farei uma breve discrição de cada um dos andares e é claro, do quintal dos fundos.


Primeiro andar (Térreo): O maior de todos. Inteiramente de mármore, todas as janelas ficavam por lá, com sua cor e estrema magnitude. Lá ficava a maior parte dos cômodos da casa; a sala de visitas, conhecida como sala principal, a sala de jantar, onde jazia uma enorme e longa mesa de pedra clássica com base de madeira com três janelas que tinham como paisagem o enorme quintal dos fundos. Depois vinha a cozinha, local que eu mais freqüentava e a biblioteca, um lugar enorme, com dois computadores Windows Vista e grandes estantes lotadas de livros. Era normalmente freqüentada pelo meu pai gênio, Edgar, sendo também um dos vários lugares que eu era proibida de freqüentar. Depois, tinha  a sala da TV, bem ao lado do cômodo anterior, onde se encontrava um grande sofá vermelho e uma poltrona, ambos bem a frente do grande aparelho de plasma, onde se agrupava ao lado vários DVDs e porta retratos da família nas estantes e paredes cor de laranja.


Segundo andar: Andar onde se encontrava todos os três quartos da família com portas de madeira, esculpidas a mão luxuosa e caprichosamente, cada qual escondendo enormes interiores com camas e armários esplendorosos com objetos, roupas, prateleiras e tudo mais, completamente e extremamente caríssimos e da marca mais cara possível. Bem ao canto se encontrava um brilhante órgão de primeira classe sob o chão de mármore escorregadio, e ao seu lado, aquela escada bamba de madeira velha e pequena, completamente insignificante para o resto de minha família, onde ficava aquele meu quartinho imundo no porão.


Da porta dos fundos para fora: Era lá que ficava o quintal, que mais parecia um enorme jardim botânico. Pelo menos quinze árvores e plantas frutíferas de maçãs, nozes, amoras pretas e etc.. Mais parecia um vale, na minha opinião. Ficava com água na boca só de olhar pela janela todas aquelas frutas deliciosas; que fome que me dava. Mas era proibida de sequer tocar em suas árvores. “Você pode contaminá-las” minha mãe dizia quando percebia o brilho de meus olhos ao olhar pela janela. Lá também ficava a lavanderia, meu segundo lugar mais freqüentado. Lavava, secava e passava toda a montanha de roupas naquele mínimo lugarzinho com varal longo. Detestava fazer isto, mas tinha de fazer. Não queria passar fome por não ter executado minhas tarefas diárias. “Se não cozinhar, passar, lavar, limpar, secar e não deixar esta casa enorme um brinco, não comerá nem uma ervilha, por uma semana”. Este era o principal argumento de minha família: a força da fome.


Desci a escadaria grandiosa toda pelo longo e frio corrimão, que dançava em torno das escadas longas e escorregadias, com a mochila azul em minhas costas. Era uma das minhas únicas diversões do dia. Escorregar um corrimão inteiro em uma velocidade sem controle e saltar no fim dele sempre fora muito divertido para mim. Cá entre nós, era uma das poucas coisas boas em uma casa grande como aquela. Quando finalmente o corrimão teve o seu fim, saltei imediatamente e corri de imediato para a cozinha.


Até agora deu pra perceber a situação de minha família: a mais rica das redondezas. Claro, você deve estar pensando que uma casa rica como essa deve, com certeza, ter pelo menos uma empregada ou duas para fazer os trabalhos de casa para os moradores daquele esplendoroso lugar. Pois é, eu era a empregada. Eu e mais Judite, uma senhora de cachos curtos e brancos que sempre me ajudara em momentos difíceis; era como uma avó bondosa para mim, mas só vinha depois que eu ia para a escola, e por isso nos víamos raramente naquela casa. Para encontrá-la, só indo em sua casa num pequeno intervalo de tempo, entre uma corrida e outra, podia vê-la mais facilmente.


Mas não podia pensar mais nisso. Meu dia seria agitado como sempre; trabalho, trabalho e trabalho. Atravessei a cozinha luxuosa na velocidade de um raio e parei num traço fortíssimo bem a frente do fogão de quadro bocas largas. Olhei para o relógio florido na parede alaranjada do cômodo que eu odiava. Cinco e meia da manhã. Bolas, tinha me atrasado demais. Tive que acelerar o processo do café da manhã e, para quebrar a monotonia de sempre, joguei a mochila no sofá da sala de TV ao lado, estalei os dedos e disse meio que espontaneamente:


 - Operação “Café da manhã da família Kingsplay” em ação!


No instante seguinte, pulei para o armário de panelas cinzentas brilhantes e retirei a qual sempre usara para aquela ocasião. Coloquei-a em cima de uma das bocas do fogão e corri para a geladeira enorme, retirando com rapidez, uma caixa de leite já aberta e meti o conteúdo na panela o mais rápido possível, ligando o fogão em seguida. Depois, dei um salto em direção a dispensa e retirei todos os alimentos necessários, que a família tinha questão de ter a mesa: bolachas de chocolate e morango para o meu irmão, um pote de achocolatado, café, açúcar, alguns pedaços de bolo industrializado, feijão... Epa! Feijão não. Biscoitos de maisena, rocambole de goiaba, chocolate e morango, alguns pedaços de torta e cheese cake derretido e por fim umas torradas.


Peguei tudo de uma vez, carregando tudo em seguida em direção à mesa em seguida, com certa dificuldade, tenho de admitir, soltei tudo bem encima dela e comecei a ajeitar tudo ligeiramente. Disparei para o armário de copos e pratos em seguida e aguarei alguns talheres numa gaveta próxima e arumei-os depressa ao lado dos alimentos. Fui para o fogão, desliguei-o e em disparada, agarrei a panela de leite deixando alguns pingos se esparramarem pelo chão e preenchi cada copo com o leite quente. Afastei-me um pouco da mesa depois de ter feito tudo para checar a mesa de café da manhã.


Copos, ok; pratos e talheres, ok; bolachas, achocolatado, café, açúcar, bolo, biscoitos de maisena, rocamboles, torta e cheese cake, ok; leite, ok. Céus, está faltando alguma coisa. Mas o quê?...


Mas é claro, pensei dando um tapinha em minha testa, O pão! Como pude esquecer o principal?


Corri em direção ao forno e toquei em sua porta.


 - Ai! – exclamo baixinho chacoalhando a mão no ar ao senti-la queimar – Porcaria de forno quente – reclamei, enquanto apanhava uma luva em um suporte e a colocava em uma das mãos. Tinha a intenção de ver o interior do eletrodoméstico. Normalmente era lá que guardávamos os pães para o café da manhã matutino e mais alguns pratos quentes. Abrangia a pequena esperança de que teria pão para se comer, não tendo eu ter necessidade de ir à padaria da cidade grande para conseguir algo para satisfazer a fome da família. Abri vagarosamente a porta do forno imenso, enquanto suplicava baixinho.


 - Por favor, tem pão. Têm pão. Têm pão – repetia em murmúrios nervosos e pidões – Por favor têm pão...? – e abri os olhos receosamente, que até pouco permaneciam fechados em pedidos.


Vazio. Necas de piribitibas. Nada, além de alguns pratos usados e vazios.


 - Essa não...! – gemi para mim mesma e virando-me rapidamente para o relógio. Cinco e quarenta. Tinha de estar em meu trabalho escolar as cinco e cinqüenta e cinco. Perderia muito tempo indo a cidade para comprar pão; acabaria me atrasando e recebendo umas bastonadas da diretora – Porcaria – e fechei a porta fortemente e comecei a tirar a luva que amarrara pelas cordas no pulso – Melou tudo. Terei de ir à cidade de novo. Será possível? Essa família come como um bando de avestruzes! – e joguei com força a luva que acabara de desamarrar para cima do suporte a minha frente.


Virei-me extremamente mal-humorada. Meus estudos diminuindo, pior minha qualidade de vida, e ambos não eram lá aquelas coisas. Quando acabara de dar um único passo à frente, deparei-me com uma visão assustadora.


Uma mesa que estava lotada de alimentos industrializados e cheios de gordura trans, tinha acabado de ser trocada por uma porção enorme de frutas, cereais, alguns biscoitos integrais, bolo de fubá não-industrial, sucos diversos, e, é claro, uma boa quantidade de pães quentinhos e dourados dentro de uma grande cesta de palha, tinham acabado de brotar bem a minha frente. Soltei um gritinho e levei uma das mãos à boca. De onde surgira tudo aquilo? Não fazia ideia. Mas... Nada se encaixava. Toda aquela comida não poderia, simplesmente, ter aparecido do nada enquanto eu estava de costas para ela. Ou podia?


Não parei para pensar. Olhei para o relógio por uma fração segundo e, ainda assustada com o que acontecera sem motivo, disparei-me para agarrar a mochila do sofá na sala ao lado e metê-la nas costas, correndo feito louca da porta para fora, pulando a cerca de pedra do quintal da frente e apressando-me pela estradinha de pedra sem nome, que era minha moradia.


As coisas haviam mudado de uns tempos pra cá, é claro, mas quase não podia se notar a diferença. O parquinho da antigamente ainda estava lá, mas tão vazio e esquecido quanto um deserto. O escorregador, não escorregava; os balanços tinham se arrebentado; a gangorra e o gira-gira, ambos estavam enferrujados e o pequeno túnel de brinquedo, tão utilizado para imaginar viagens ao centro da terra, estava infestado de aranhas e imundice. Tinham sido trocados pela tecnologia da época. Ninguém mais brincava lá fora.


As casas daquela ruazinha que não mudara nada, que continuava feita de pedras e barro, estavam completamente diferente uma das outras. Cada uma mais colorida e maluca do que a vizinha; vermelho, laranja, roxo, verde, azul-celeste, parecia mais um arco-íris do que uma ruazinha esquecida pela cidade grande. Sem contar as estruturas tortas e contorcidas de algumas. Eu detestava tudo aquilo. Era uma coisa tão anos 60, 70 (que me perdoe quem viveu nesta época), sei lá. Uma coisa do tipo. Mas não era as casas da estrada que me atraiam: era o que a passagem ocultava.


Escondida em meio às moitas que ultrapassei às pressas, próximas a casa cinco, existia uma estradinha de terra batida, que virava o terror com a chuva da noitinha. Entorno dela, envolvendo-a por todo o longo caminho que ela fazia, havia macieiras. Macieiras enormes, cheias de maçãs verdes, maduras e algumas até estragadas. Ultrapassando as plantas que cobriam aquele caminho, andei um pouco, observando atentamente cada uma enquando passava, até que parei e escalei a que julguei ter os melhores frutos na vista, subindo até o galho mais alto da árvore mais alta. É claro, não estou dizendo que foi fácil.


Ganhei vários arranhões tentando subir aquela árvore da casca escorregadia, quase impossível de se saquear. Rasguei e desfiei minha mochila em um galinho mínimo da copa, queimei a mão em uma taturana enorme que até hoje não sei como não consegui enxergar (provavelmente, resultado de minha pressa) sujei meu tênis com algumas formigas que me deram uma grande porção de picadas nas pernas, sem contar uma maçã enorme que recebi na cabeça como um bônus.


Quando finalmente consegui alcançar o topo da macieira, girei a cabeça em busca da fruta com a melhor aparência possível e arranquei quase imediatamente, e com certa dificuldade, uma fruta no meio das sobras da folhagem fechada. Tentei puxar minha mochila das costas para guardar o meu almoço do dia, mas algo me impediu de tomar tal ação. Minha mochila se prendera em um segundo galho ainda mais grosso e forte. Mas que droga, pensei na hora e virei-me rapidamente para tentar soltá-la e enfiar minha maçã dentro dela, mas ao fazer isso, encarei algo me fez assustar-me muito.


Já no segundo puxão dado por mim, deparei-me com um pequeno fio de luz, que atravessava a folhagem fechada e iluminava minimamente em linha vermelha, meu apelido, SunShine, muitas vezes usado como nome de nascença, costurado por mim mesma na mochila azul gasta. Assim que avistei tal luz, tratei de abrir o mais rápido possível um buraco por entre as folhas douradas, para ver a paisagem ao longe.


 - Caracas! – exclamei ao ver a situação do céu àquela hora. O sol já estava nascendo no horizonte por trás de montanhas. Isso só podia significar uma coisa: – Estou atrasada! Tenho de correr! – e arranquei a mochila de vez daquele galho, abrindo-a em disparada, guardando meu almoço e pulando do topo da macieira enorme, caindo fortemente com os pés no chão.


Agradeço até hoje por aquela estradinha de terra batida ser um atalho muito bom para o colégio, por isso fui correndo feito louca pelo caminho, quase que em desespero em chegar à escola na hora marcada. Dependia daquilo.


O quê? Eu não contei? Não podia chegar atrasada para não diminuir meu tempo de estudo noturno, por que, se atrasada, acabava fazendo menos trabalho durante a manhã e a tarde, o que significava também, uma boa bronca da diretora da escola, Madame Caftellen; a maior megera esquelética quatro-olhos que já conheci na minha vida. Tudo isso, enquanto o meu irmão mais novo, Erick Kingsplay, um menino bochechudo de dez anos que vivia com os cabelos pretos sempre muito desarrumados, estudava normalmente com os melhores materiais, sem mexer um músculo sequer, tornando-se um menino mimado pelos pais e folgado.


Depois de cinco, dez minutos, dei-me de encontro com um muro de pedra enorme, com um grande portão de grade cinzento como portal dos fundos, dando num lugarzinho qualquer onde se amontoava montes de sacos de lixo mal cheirosos, que eu era obrigada a passar por cima todo dia útil. Era uma nojeira, mas depois de anos passando por lá, fingia ser uma simples corrida de obstáculos de uma olimpíada internacional. Adorava usar a imaginação. Era a minha maior diversão. Era uma das únicas maneiras de animar minha rotina matinal.


Depois de pular cinco ou seis sacos, vi-me encarando uma esguia e larga porta cor de pele imunda, portal inicial para o meu emprego contra o estatuto da ECA, passagem inicial para a exploração infantil, entrada para o pior emprego de faxineira de uma escola imensa já existente e com a pior diretora já conhecida neste mundo, portal para uma prática infantil completamente ilegal, do qual parte do mundo luta contra... Também conhecida como porta dos fundos da cozinha.


Tirei minha mochila das costas e enfiei a mão em um dos vários bolsos externos e depois de alguns segundos, acabei achando um molho enorme de chaves, abarrotado dos objetos que tilintavam. Procurei por alguns instantes a chave da porta e quando finalmente a encontrei, me livrar de uma dúzia de moscas que rodeavam minha cabeça, entrando de um salto para os fundos da cozinha, finalmente pude respirar um pouco, observando o interior do lugar que era obrigada a ver todo santo dia.


Uma área grande era aquela, que lembrava muito minha cozinha. Todos os eletrodomésticos pintados de branco, desde armários até a maior das geladeiras cheia de suprimentos, era estilo antigo, feita de madeira cuidadosamente esculpida à mão e pintadas com facilidade. Mais a frente, encontrava-se um balcão enorme, lotado com o bufê variado que continha desde a mais saudáveis das saladas até o mais gordurosos dos lanches de fast-food . Bem à frente, tinha-se uma vista clara de um refeitório imenso, com sete mesas de madeira compridas e largas, prontas para receber todos os quatrocentos e setenta e sete alunos daquela escola que mais parecia um castelo!


Uma escola que parecia um castelo...


Droga, toda vez que me lembrava deste pequeno detalhe, me tornava pesarosa, pois lembrava da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, e me lembrava ainda mais, que todos os meus sonhos, Harry Potter, Rony Weasley, Hermione Granger e todo o restante relacionado, não passava de um universo inexistente; um universo que pertencia à escritora J.K. Rowling. Um universo que, mesmo de existi-se, eu nunca, jamais chegaria a vê-lo e vivê-lo, pois não era bruxa (se bem que, às vezes chegava a duvidar disso). Todo aquele mundo estava preso em um livro que eu pegara escondido de meus pais super religiosos, e que trazia também às escondidas para a escola, para pelo menos, ler uma linha se quer. Adorava ler; adora livros; adorava Harry Potter. Mas, infelizmente, o único jeito de entrar em Hogwarts era em meus sonhos tolos. Meus devaneios que estavam se moendo aos poucos com aquela vida. Aquela porcaria de vida de exploração infantil.


Tinha doze anos agora, estava me esquecendo de dizer, ou seja, mesmo querendo, não tinha chance alguma de sequer ver aquela escola de perto; as crianças iam para lá com onze! Não havia nenhuma mísera esperança para mim.


 - Srta. Sabrina Caulim Kingsplay! – uma voz ao longe ressoou pelo salão – ISSO LÁ É HORA PARA SE CHEGAR?! VENHA JÁ À MINHA SALA!!


 - Ah não... – gemi numa expressão clara de pesar, escorregando um pouco à porta com a mão cobrindo o rosto – De novo não... ESTOU INDO MINHA SENHORA! ESTOU INDO!


Cortei a cozinha enorme a cozinha e o salão imenso às pressas das pernas fracas, mas que permaneciam firmes e cobertas de picadas doloridas, passei por seis salas de aula e virei à esquerda na secretaria.


Dei de cara com uma porta de madeira grande e larga, cor azul marinho, de maçaneta do mais puro e reluzente prata, onde se encontrava cravada à prego uma plaquinha branca de letras formais e pretas com os dizeres:


 


Diretoria da Escola The Times World.


Madame Victoria Kristen Caftellen


 


Engoli a seco e bati à porta.


 - Entre – mandou uma voz firme no interior daquela sala.


Assim que girei a maçaneta lisa de prata e adentrei em passos vagarosos, pude ver o interior do escritório.


Um aquário enorme se encontrava bem ao lado do portal de entrada, cheio de peixes bizarros e amedrontadores que eu detestava; uma enorme prateleira amarelada requintada estava lotada de inúmeros livros, calendários, agendas e toneladas de papéis e documentos diversos, desde contratos de negócios à contas ultrapassadas. Três vasinhos de violetas enfeitavam a sala, infestando-a com seu aroma que já me enjoava. Janelas brancas de cortinas roxas também tinha lá, mas o que mais me chamava a atenção era a escrivaninha escura lotada de porta-lápis e apontadores com um lixinho no lado, duas cadeiras pretas diante dela e atrás, a principal: um grande banco virado de costas para mim, com alguém sentado lá. Desse alguém só se via o topo da cabeça de uma mulher com grandes cabelos lisos vermelho-berrante, espessos, cujas presilhas enormes prendiam-nos a força enquanto uma mão pálida e magra, de unhas postiças enormes cor de goiaba, segurava firmemente o braço curvo do assento de espaldar alto.


 - Sabrina Kingsplay? – perguntou uma voz profunda e feminina, por mim já bem conhecida.


 - Eu mesma...


 - Sente-se agora – mas quando dei um passo, ela ergueu a mão magra – Não. Melhor não, ou a próxima pessoa que se assentar, morrerá infectada.


Que ódio, pensei com aspecto feroz no rosto e um formigamento estranho surgiu nas minhas unhas de dedos magros, mas ambos desapareceram em um piscar de olhos quando a cadeira girou-se para mim, revelando a aparência da mulher oculta.


Com as pontas dos dedos magros juntas e as pernas finas cruzadas, Madame Caftellen tinha a pele tão branca quanto a lua cheia, um rosto magro, olhos verdes flamejantes, boca incolor e cabelos vermelho-fogo extremamente lisos que caiam até a cintura da moça de trinta e cinco anos. Mas que conseguia se comportar como uma de cinquenta, tipo megera esquelética.


Suas costas estavam ligeiramente curvas, mas seus olhos pequenos penetrantes por trás de seus grandes óculos pretos e arredondados fitavam meu rosto tão fortemente que, mesmo acostumada com aquele olhar, tive a sensação que este furava meu cérebro através dos globos oculares.


 - Você – iniciou em uma voz fortemente fria – se prejudicou novamente.


Permaneci com o um olhar firme ao dela. Depois de alguns segundos, ela voltou-se para o encosto da cadeira de couro preto e segurou firmemente os braços da mesma. Prosseguiu em tom de desdém.


 - Tão insolente... Lembro-me até hoje do tempo em que eu a amedrontava apenas com um olhar meu. Pois saiba Sabrina – Quantas vezes tenho de dizer que é SunShine?! –, que graças ao seu atraso, novamente seu tempo de estudo miserável será reduzido dez minutos, ou seja, terá apenas cinquenta minutos de aula. Fique sabendo que disse o resultado assim, de uma conta tão prática e simples como esta, pois tenho certeza que a senhorita não tem sequer capacidade para resolver um mais um. Isto é pateticamente óbvio.


Mulher ordinária. Eu a detestava. O que ela pensava? Que eu era uma jumenta? Apesar daqueles professores de quinta categoria não ensinarem droga nenhuma em menos de uma hora, eu estudava sozinha e sabia muito mais do que ela pensava. Franzi firmemente a testa para ela, e em seu rosto surgiu um sorrisinho desprezível.


 - Ora, ora. Vejo que tornou a me desafiar. Que pena. Acho que terei de tirar mais dez minutos do seu tempo, afinal, este foi o contrato que foi feito com seus pais, não é?


Minhas mãos se apertaram em punhos vermelhos. Como ela poderia? Ela me insulta e pensa que passo ilesa? Não, ela não pensava isso. Ela sabia que eu reagiria desta maneira por ter personalidade forte; o verdadeiro interesse dela era me prejudicar nos estudos que tanto me importava. Segurei-me para não falar o que queria, pois sabia que isto pioraria a situação, e para o desapontamento da diretora, permaneci calada a força. Encaramo-nos por alguns momentos, meus olhos castanhos nos verdes penetrantes, tentando ao máximo evitar lançar um olhar desafiador.


 - O quê? – questionou em tom de deboche – Não irá fazer nenhuma tentativa de me impedir? – Permaneci em silêncio diante a provocação – Pois bem, isto significa que, se eu disser que acabei de tirar mais dez minutos, reduzindo o tempo para trinta minutos, você também não ligará, não é? – e sorriu desdenhosa e satisfeitíssima em me prejudicar.


Não consegui segurar o ódio; franzi fortemente a testa e forcei as palavras de raiva, loucas para sair aos berros, morrerem dificilmente em minha garganta apertada, o corpo começando a tremer em tentativa de segurar. Caftellen tornou-se ainda mais detestávelmente sorridente e vitoriosa.


 - Saia... – disse com desprezo - E pelo amor de Deus, cubra essas marcas horrorosas – mandou firmemente, não podendo esconder certa alegria, e tornou a girar sentada à cadeira.


Saí em passos controlados pelo o chão de pedra branca que mais lembrava a pele de minha diretora, quase amassei a maçaneta de prata e segurei-me para não bater com força a porta daquela sala detestável por mim. Assim que cheguei à cozinha escolar expelindo fumaça de raiva, chutei violentamente minha mochila que havia largado no chão antes de ir à diretoria, fervendo de raiva.


 - Droga! – exclamei enquanto socava raivosa a parede da cozinha – Aquela vaca! Trinta minutos a menos! Mulher nojenta! Lá se foi meu estudo de restos! Lá se foi a matemática! Lá se foi o inglês! As aulas podem ser uma porcaria na maioria das vezes, mas eu consigo extrair alguma coisa de importante delas, sempre! E aquela porcaria de mulher estragou tudo! – e bati com força a porta dos fundos, a mão completamente aberta.


Um assombro fora o resultado trágico de tal agressão. Meu segredo acabara de escapar, literalmente.


Assim que minha mão encontrou-se em choque com a madeira, das minhas unhas pouco ruídas, garras enormes, escuras como a meia-noite, duras como aço e afiadas como facas de filmes de terror, brotaram em um estalo de meus dedos magros, cortando o ar sonoramente. Fervi na hora.


 - E ainda isto! Porcaria de unhas! Isso sempre acontece quando sinto ódio! Desde que nasci! Perco o controle!  – e rosnei enfurecida, retraindo as garras rapidamente com apenas um movimento muscular da mão direita, a qual batera quase amassando a porta de fundo.


Sentei-me no chão de pedra. Detestava tudo aquilo. Aquela escola. Aquele trabalho. Aquela diretora. Aquela família que me desprezava. Aquela vida. Queria que tudo mudasse. Queria viver como uma pessoa feliz, como uma pessoa que tivesse uma família descente, que me dá-se amor e carinho, pouco se importando se eu era adotada ou não, ou sequer paga-se o meu colégio como pagava para meu irmão: com dinheiro do próprio bolso. Eu tinha de trabalhar para pagar uma hora mísera de estudo, mas a qual eu muito me importava.


Virei o olhar acidentalmente para o lado, pensativa, e deparei-me com a mochila azul esparramada no chão frio. Entristeci-me um pouco ao ver aquela cena; lembrara do conteúdo que havia dentro dela. Ergui o braço lentamente e inclinei um pouco o corpo para o lado direito; agarrei a mochila devagar; a abri em meu colo e tirei o que mais gostava: um livro. Mas não era um livro qualquer; era um diferente; fruto de um trabalho de alguém cuja vida fora difícil: Harry Potter.


Pois é; eu era fanática por aquela série, e cá entre nós, sou até hoje. Fazia-me voar na imaginação, em um mundo diferente, um universo desigual. O único lugar que me sentia bem era aquele. Pegara escondida de uma biblioteca a série inteira de livros. Sentia-me mal por isto, tenho de admitir; tinha vezes que eu metia a coleção inteira na mochila pretendendo devolver para a mesma biblioteca, mas sempre recuava de volta para casa quando chegava às portas de meu destino, pois sentia que já era tarde demais; tudo virara parte de mim. Estava ligada àquelas histórias; não poderia me livrar delas. Não mais. Desde então, todo o dia matinal de trabalho, eu levava um livro para ler escondida. Escondida, pois era proibida de ler. Somente ouvir e trabalhar.


 


 


 - O que você está fazendo?


 - Lendo um pouco, senhora. Já terminei minhas tarefas por enquanto, então decidi ler Harry Potter.


 - Ler? Você disse ler?! Dê-me imediatamente isto aqui! Já!


 - Não! Espera! Não pode fazer isso!


 - Claro que posso garota tola! Eu mando em você! Agora largue isto! Quero queimá-lo!


 -Não! Queimar não!


 - Sim, queimar! É a única maneira de mantê-la longe disto! Agora vou deixar uma coisa bem clara: nunca mais leia, ouviu bem?! Por que acha que os professores não lhe dão nada para leitura? Cada livro que leste, é uma fonte de conhecimento a mais para sua cabeça oca, sua empregadinha babaca! Você não merece inteligência! Agora diga adeus ao seu livro idiota!


 - Não! Não! Espera, por favor! Não!


 


 


E foi assim que Harry Potter e a Ordem da Fênix acabou indo parar direto na lareira.


Eu tinha oito anos e ainda estava aprendendo a ler na época daquela lembrança. A primeira vez que tinha visto a série fora na biblioteca de um vizinho que me emprestara o exemplar que pegou fogo no mesmo dia pela Cruela Devil. Lembro-me disto até hoje, principalmente por que levei umas bastonadas do Sr. Godwana depois que contei o que acontecera com o seu livro.


Apesar de tudo, não desisti da leitura; fucei todas as bibliotecas municipais e particulares da região durante várias semanas, só a procura da série que me fisgara, e toda vez que encontrava, pegava as escondidas da bibliotecária, pois não tinha dinheiro nem para pagar um cachorro-quente. Sem contar que também escondia tudo de minha suposta família. Eles me detestavam apenas por ser adotada e por isto não me dava nenhum prestígio, nem mesmo para pagar uma ervilha, por isso evitava mostrar estar mais feliz com os livros, por que na certa os tirariam de mim.


Abri vagarosamente Harry Potter e a Pedra Filosofal sobre meu colo. Adorava aquele livro; principalmente o capítulo um. Adorava imaginar a cena em que Harry é deixado na porta dos Dursley. Claro, nunca fora feliz lá, nunca recebera nenhuma palavra de carinho nem nenhuma cortesia, mas eu gostava de imaginar. Comparava minha vida com a dele, apesar de ser apenas uma ficção. Eram um pouco parecidas, sabiam? Está bem, eram muito parecidas.


Deixei sair um suspiro enquanto folheava as folhas daquele livro. Que pena que era tudo uma história irreal. Hogwarts não existia. Harry não existia. Nada daquilo existia em nenhuma parte do mundo, nem mesmo na América, que diziam ser um lugar diferente daqui. Uma pena...


Ouvi passos perto de mim, subitamente.


Desviando-me do livro, procurei nervosa alguém ou alguma coisa pelos arredores da cozinha. Nada vi.


 - E mais isso – falei pesadamente, voltando o olhar para o livro aberto.


Desde os dez anos de idade eu me sentia extremamente vigiava e isso muitas vezes me perturbava fortemente. Se bem que, de vez enquanto, parecia sentir uma mão em meu ombro que me consolava. Era estranho aquilo. Extremamente estranho. Às vezes eu pensava estar ficando maluca; estar imaginando coisas, tendo, quase, alucinações, mas assim que notava não haver nada ao meu redor, deixava esse pensamento esvair de minha mente e deixar-me em paz por diante.


 - SunShine? – uma voz em tom de alerta cortara meus pensamentos.


Como se um estalido acontece-se, num piscar de olhos voltei para a cozinha, ainda sentada no chão frio. Vi-me encarando uma mulher morena, de olhos pequenos e verdes, gorducha, de mãos lotadas de sacolas, sendo um pouco mais alta que eu, com cabelos crespos e pretos que tinham grande semelhança a uma palha de aço amarrada forçadamente em um rabo-de-cavalo de elástico gasto e esfiapado. Era dona Joana, outra funcionária da escola com grande fama de cozinheira de mão cheia. Sempre fora muito gentil comigo, mas agora me observava dificilmente pelos olhos quase cobertos pelas bochechas cheias, com um olhar receoso.


 - SunShine, minha filha, lendo este livro de novo? – advertiu, enquanto chacoalhava as muitas sacolas em suas mãos.


 - Ah! Nada não, senhora, eu só...


 - Ai, ai, ai, quantas vezes tenho de dizer para não chamar-me por senhora – advertiu carinhosamente.


 - Ah, desculpe – dizia enquanto pegava rápido a mochila e encaixava o livro dentro – Bem, eu não estava lendo, dona Joana, eu só estava...


 - Vendo para sonhar – concluiu-me com um sorriso branquíssimo.


Por um momento encarei-a imóvel com a mochila em mãos. Logo, não pude deixar de comentar.


 - Você sabe das coisas, heim? – e joguei a mochila em uma cadeira gasta próxima, pasma, enquanto ela começava a rir livremente dando-me as costas e andando até o outro lado da cozinha.


 - Ora, ora, Sun... Eu a conheço há anos. A você e a esta sua resposta de sempre: “Estou apenas vendo” – imitou-me risonhamente, parando em um outro canto perto á uma das geladeiras (lá tinha três) – Querida, desde que tinha cinco anos de idade você dá esta mesma desculpa. Pelo menos apresente alguma coisa nova – terminou dando uma última risada calorosa e largando as sacolas lá mesmo.


Durante todo o tempo em que a morena se ocupava em falar, curiosa, não pude deixar de acompanhar cada passo dela ao seu lado, tentando ao máximo “xeretar” o conteúdo dos sacos enormes, dando pulinhos enquanto caminhava e esticando o pescoço sempre que podia. Quando finalmente parou, resolvi solucionar aquele mistério, afinal não era todo dia que dona Joana trazia seis ou sete sacolas para o trabalho. O máximo era uma sacolinha minúscula com uma rede de cabelo e um pote de comida para o almoço, do qual sempre me obrigava a pegar um pouco, toda vez que trazia uma maçã para comer – o que era todo dia.


 - Dona, o que tem aí dentro afinal? – perguntei por fim, desistindo de descobrir por conta própria.


 - Eta menina curiosa! – exclamou enquanto tornava-se a fitar-me com as mãos na cintura e um sorriso fechado – Não sabia que “a curiosidade matou o gato”?


 - Bem, – comecei em defesa – matar, não matou, mas que lhe custou a língua, custou. O tonto do gato do Sr. Fregg, quis sentir o gosto do forno depois de terem tirado o frango assado. Resultado: a família teve língua de gato para o jantar também.


Joana deu uma forte gargalhada, contornando-me e indo em direção ao bufê escolar.


 - Ai, toda vez que me lembro desse incidente, lembro ainda mais dos gritos dos Fregg. “Que gato idiota!” “O que ele pensou? Que o gosto ficaria lá dentro?!” “Sem contar que odeio língua de gato, pai!” – ela brincou – Ninguém conseguiu dormir direito naquela noite, com medo de seus animais seguirem o “exemplo” dado pelo Listra. Foi a coisa mais absurda que já vi na vida.


- Sem contar o nome, que não é nem um pouco criativo. Mas diz dona, qual é o conteúdo das sacolas? – insisti quase que pateticamente, a curiosidade borbulhando dentro de mim.


 - Nada de seu interesse, pode apostar. A não ser que esteja interessada em inúmeros produtos de limpezas para o estoque e alimentos extras para o bufê e despença. Incluindo aspargo.


 - Iéca! – gemi contorcendo a cara – Odeio aspargo, Joana. Ainda não sei por que continuam oferecendo tal alimento no bufê, sendo que ninguém ao menos toca nele.


 - Ordens da diretora. Você a conhece, SunShine; ainda quer propor aos alunos uma alimentação saudável, mesmo enchendo-os de porcarias. E falando nela – e agarrou o que eu mais temia ao lado do fogão: um balde cheio d’água e sabão e, é claro, o esfregão.


 - Ah, não... – gemi pesarosa. Limpar cada canto de três andares que mais pareciam um campo de futebol era a pior tarefa que se podia executar naquela escola. Era a segunda mais exaustiva, por que a primeira, era lavar os quatrocentos e setenta e sete pratos, talheres e copos lambuzados, imundos com restos e cheios de pedaços de carne podre grudados – Preciso mesmo fazer isso?


Ela assentiu-me firmemente com aquela expressão, cujo significado era claro: “Ande logo com isto”.


 - Ai, está bem – conclui pegando ambos os objetos com certa dificuldade – Quanto mais cedo eu começar, mais cedo eu vou terminar, não é?


 - Isto mesmo – confirmou já mais contente, começando a mexer em uma máquina de sucos ali perto – Até então?


 - Até – despedi-me desanimadamente em direção à porta para os corredores, enquanto o balde chacoalhava em minha mão, esparramando vários pingos com aroma de lavanda pelo chão.


A escola abria exatamente às sete horas da manhã; horário em que os alunos mais apressadinhos chegavam, por isso, para evitar encontrar certas “pessoas” desagradáveis, tinha de me apressar. Olhei para o grande relógio cinzento do primeiro andar. Seis e vinte. Não sabia agora se era o caminho que era mais longínquo da escola do que eu imaginava, ou se fora as conversas e pensamentos no meio tempo que me fizera começar demasiadamente tarde o trabalho, por isso apressei-me em começar.


Primeiro andar: esfregão, água e sabão para todo o lado, cada canto e centímetro do espaço que mais parecia metade do campo do Maracanã. Andar totalmente límpido às seis e meia (um recorde incrível, certamente por sentir estar sendo vigiada pela diretora).


Segundo andar: barra das calças encharcadas pela tonta da gata da subdiretora, que derrubou o balde direto em mim, me obrigando a descer as escadarias demoradas até a cozinha e gasta mais alguns muitos litros de água e detergente, sendo obrigada a limpar novamente o andar anterior por ter “novamente o infectado com os passos dados”. Terminei o andar às seis e cinquenta e cinquenta e cinco.


 - Bolas, perdi muito tempo por causa daquela gata idiota – resmunguei, enquanto corria pela escadaria grossa em passos cambaleados, encharcando ainda mais as barras com a água do balde se esparramando – Só tenho cinco minutos para limpar o terceiro andar inteiro. Vamos lá; mãos à obra e já! – e afundei violentamente o esfregão dentro da água turva que transbordava com a espuma branca agitada.


Foi incontável a quantidade de força que coloquei para limpar aquele andar em uma velocidade descontrolada. Pouco me importei se tinha sobrado um quarto da mancha de suco de laranja que um aluno da terceira série; assim que pude avistar o chão de todas as salas e cada centímetro frio úmido, desci às pressas as escadarias maciças meio que atrapalhadamente com os objetos a mão, decidida a chegar à cozinha o mais rápido possível e ter certeza que não encontraria ninguém indesejável no caminho.


Quando dei por mim, o terceiro andar já fora; só faltava o segundo. Apertei o passo e a ponta úmida do esfregão se acoplava em meu joelho. Passei do segundo andar, faltava o primeiro. Neste ponto, quando me vi de encontro com a escadaria, dei um pulo certeiro e saí escorregando, sentada por todo o corrimão em espiral largo, os objetos se entre chocando no caminho. Saltei novamente quando cheguei ao fim do mainel e corri a toda velocidade em direção à cozinha, já com metade do jeans encharcado. Quase que deslizei pelo chão limpo ao atravessar as salas vinte a dez; meio que cambaleei entre as salas nove e três, e quando finalmente percebi estar passando pelas salas dois e um, meio que tive uma sensação de relaxo em saber que era só fazer a próxima curva, atravessar o refeitório e entrar pela porta da cozinha para evitar me encontrar com certas “pessoas” pelos corredores. Mas foi só fazer a encurvada...


PAO! Um forte encontrão. O balde que segurava em minha mão direita, literalmente recuou em um voo maluco, espalhando todo o resto de água espumada pelo chão limpo. Não larguei o esfregão de minha mão, por isso, ao cair com força para trás, por conta de um movimento, um mau jeito horrível tomara conta de meu pulso e o osso da ponta do meu quadril se chocara fortemente no chão frio.


 - Mas que di... – outra voz diante de mim ia falando, até que ela própria soltou um irritante gritinho agudo e estridente.


Ah, não..., lamentei em pensamento, Ela não...


Abri meus olhos pequenos, até a pouco fechados com o choque, bem lentamente, ao mesmo tempo em que permanecia rezando em silêncio para que não fosse quem pensava que era, evitando ouvir os gemidos contastes de nojo de uma vozinha esnobe e exagerada.  Quando finalmente consegui abrir os olhos por completo, vi-me encarando uma figura de pé, rodeada por pelo menos cinco alunas exageradamente enfeitadas com acessórios brilhantes, que chacoalhava as vestes azul claro, como se espana-se e livrava-se de alguma coisa imunda que sujara suas vestes limpíssimas, toda cheia de aflição.


Era Caroline Caftellen. A menina mais metida e fresca que algum ser humano podia conhecer. Um pesadelo. Sempre usando e abusando daquela maquiagem exagerada, Caroline possuía como marca seu jeito arrasador de esmagar as pessoas com palavras por se achar superior. Os cabelos castanhos avermelhados da menina eram tão lisos e compridos quanto da mãe, abarrotados de bijus e falsas safiras. Magra e branca, tinha uma grande frescura com as suas roupas impecáveis e pele de pêssego de dar inveja à escola inteira. Super respeitada e rodeada por garotas interesseiras e patricinhas, ela me detestava e em conseqüência, eu também a detestava. Sempre que podia, tentava me abalar e me esmagar com palavras melosas e venenosas, como sempre fazia com quem encontrava na frente, porém tudo aquilo era inútil à mim. Estava tão acostumada com os xingamentos diários e possíveis dos Kingsplay, minha família postiça como já sabem, que nenhuma palavra vinda de uma menininha de doze anos mimada era forte ou capaz de me derrubar, somente me aborrecer um pouco. Claro, já disse; tenho personalidade forte, por isso eu era facilmente “irritável”.


 - Que nojo! A nojentinha da empregada esbarrou em mim! – gemia tolamente enquanto as outras a sua volta faziam o mesmo – Não olha por onde corre não? Ah, claro que não. Me esqueci que os cupins roeram seus olhos enquanto dormia, por isso está cega como uma toupeira. O que estou dizendo, você sempre foi, não é?


Uma porção de risadinhas saiu das bocas de seu grupinho.


 - Bom dia para você também, Caroline – cumprimentei em tom mui controlado, ao mesmo tempo em que agarrava o balde vazio, cujo chão à volta se encharcara, levantando-me para encará-la.


Caftellen, apesar de se sentir superior, era pelo menos uns dez centímetros menor, mesmo com as características que possuía. Ao elevar-me seriamente, obtive um ponto de vista diferente de seu rosto, e por uma fração de segundo parecera que a garota à minha frente se tornara uma miniatura de porcelana coberta de purpurina (Iéca!).


 - Não fale neste tom comigo, tolinha. Senão falarei com a minha mãe sobre sua falta de respeito com quem é superior. Afinal, sou sua patroa.


 - Você é a filha de minha patroa, Caroline – disse em voz abafada. Superior, ela disse?!


 - Ha! E qual é a diferença?


 - Você é um aluno como todo mundo nessa escola. – retruquei secamente – Todos merecem respeito. Não importa se é mais rico ou mais pobre. Por isso não há diferença.


 - Enganada mais uma vez, Sabrina.


 - É Kingsplay para você – rosnei por entre os dentes cerrados.


 - Que seja – retorquiu insignificantemente – O que importa é que o que você disse agora está incorreto. Quem é superior como eu, tem vantagens acima de todos. Portanto, levando em conta o meu poder – Grande poder..., pensei pouco convencida – sou sua dona.


 - Dona?! – iterei em voz contida, as mãos agora se fechando novamente em punho envolvido por estralos – Oras, Caroline, você apenas pertence à família da diretora desta escola a qual trabalho. Se nem Madame Caftellen chega ao ponto de se tornar minha dona, imagina uma idiota metida como você!


- Idiota metida? Kingsplay, não sou metida e muito menos idiota!


- Quem disse que não? – bradei.


- Eu. Apenas digo a verdade para todo ralé que aparece na minha frente, principalmente para “pessoas” de cabelos de chocolate podre, pele seca, um apelido tolíssimo inspirado num filme que sequer assistiu, olhos horríveis, unhas que Deus me livre, personalidade imprestável e, em esclarecimento, um resto da terra indesejável até para a própria família biológica!


Aquela fora a gota d’água. Durante uma fração de segundo, pude sentir a raiva e ódio crescerem dentro de mim descontroladamente, meus punhos tremerem, meus dentes cerrarem ainda mais e um forte e espontâneo formigamento fortíssimo tomou conta de minhas unhas ocultas, o que era um significado claro que meu segredo perigoso iria se revelar a qualquer mínimo instante, mas então, antes que se fosse possível tomar qualquer ação, uma voz bradou fortemente às minhas costas.


 - Já chega!

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