Verdade ou insanidade
O que ocorreu a seguir aconteceu rápido demais para ser contado aos detalhes. Só lembro-me que, como em uma explosão, meus cabelos esvoaçaram-se intensamente para trás, uma forte luz prateada cortou o ar entre Caroline e eu, e esta, quando dei por mim, acabara sendo atirada ao máximo de força contra a parede longínqua, arrastando consigo todas as garotas ao seu redor. Quando finalmente, aos rodopios, elas se chocaram contra a parede, foi como se acabassem de atirar uma rocha contra a parede; a poeira voou por todo lado ao redor delas, ocultando-as por alguns instantes. Quando tornaram a aparecer, deslizavam de costas até o chão, inconscientes, os cabelos e roupas impecáveis, um caos.
Agora, caos mesmo estava meu estado emocional. Existiria alguma explicação para aquilo? Para tal acontecimento completamente e absolutamente inesperado.
Pior que não.
Virei-me bruscamente para trás. Não havia ninguém. E mesmo com a possibilidade de que alguém se escondera batucando persistente em minha cabeça, era muito pouco provável; a vigilância era rigorosíssima. E mesmo que alguém, ou alguma coisa, tivesse escapado do sistema da escola, como seria capaz de fazer aquilo com Caroline? Não fora eu, tinha certeza. Não mexera um músculo sequer durante todo o ocorrido; até a vontade do estender de minhas garras sumira; o que, posso lhe assegurar, não era comum. Foi então que uma ideia veio à minha mente. Improvável. Impossível talvez, mas, depois de dois anos, algo que me perturbava poderia ser real. Poderia?
Raios, seria possível que tinha alguém na minha cola realmente? Será que realmente, aquela sensação que me perturbara, me incomodara por tanto tempo, mas até mesmo me ajudara a algumas horas, era real? Será que estava sendo vigiada por alguma coisa ou pessoa que eu não fazia ideia de quem era?
Não fiquei para comprovar. Disparei para fora daquele lugar e atravessei o refeitório com o balde e o esfregão firmemente em mãos, sem sequer olhar para trás. Fiquei assustada. E se aquela coisa quise-se, no lugar de Caroline, estourar-me no ar como fizera anteriormente? E se quise-se me matar?
Oras SunShine, pensei por um momento, parando lentamente no caminho, Não está certo fugir assim, sua covarde. Tem de voltar lá e enfrentar seja-lá-o-que-for e ajudá-las, apesar de detestá-las, é claro. É, é o que eu vou fazer, e dei meia volta determinada no meio de minha parada, mas não consegui dar mais nenhum passo adiante por causa do choque seguinte.
Os corpos todos haviam desaparecido. Sumido. Evaporado.
Era impossível. Ninguém poderia vir tão rápido e simplesmente tirar os corpos na mesma velocidade. E não havia nenhum rastro no chão. Nada. Nenhum sinal que alguém ou alguma coisa viera. Tudo estava igual: a mesa, os bancos, o buraco na parede.
- Essa não – falei em voz fraca e um pouco amedrontada – Não, não, não. Cadê vocês, suas patricinhas... Droga! – e sai correndo novamente do meio do refeitório até a cozinha.
A cada passo dado, me tornava cada vez mais nervosa. O que era tudo aquilo afinal? Por que isso estava acontecendo comigo? Tinha a ver com meu lado anormal?Com o meu “eu” aberração? Ou eu estava surtando de vez? Era confuso demais. Eu estava totalmente baralhada. Um enorme nó parecia ter se formado em meu cérebro; sentia que queria gritar por socorro. Caftellen desaparecida por sei lá quanto tempo mais quatro meninas feridas. Um raio cortante do nada, num espaço onde só estávamos nós seis. Algo anormal estava acontecendo comigo e eu sentia lá no fundo, que se aquele caso não acaba-se logo, acabaria ficando num hospício pelo resto de minha vida. Não agüentei mais. No meio da corrida, soltei um grito:
- SOCORRO!
A porta da cozinha, agora a poucos metros de distância, se escancarou na hora e enxugando as mãos no avental desenhado com linha vermelha, saiu às pressas dona Joana que demonstrou preocupação incontável ao me ver correndo feito louca até ela, soltando as coisas no meio do caminho e quase derrubando-a quando a avancei e lhe dei um abraço perturbado, confuso, juntamente com a tremedeira nervosa que sentia. Uma voz dentro de mim gritava pedindo ajuda; quando soubessem sobre o recente incidente, eu estaria no pior momento da minha vida; levaria chibatadas da diretora, pararia de estudar, seria ainda mais humilhada, poderia até parar na cadeia por um desaparecimento que não faço ideia de como acontecera. Não, aquilo não podia acontecer. Estava alarmada demais com tudo aquilo e quando fui ver, todos os sentimentos no profundo de meu peito jorravam de meus olhos em lágrimas de nervosismo. Joana parecia decididamente transbordante de preocupação comigo.
- Oh meu Deus... O que aconteceu? O que houve, SunShine? Por que está... Céus, está tremendo!
- Dona Joana – disse sem fôlego – Me ajuda... Caroline... Aquela patricinha nojenta... Ela... Elas... Não sei como... Me ajuda... Eu não quero...
- Não, não, espera – interrompeu-me, me afastando para ver-me direito e se assustou ao ver meu estado – Minha nossa...! Olha, fica calma, fica calma, está bem? Vem, vamos entrar e tomar alguma coisa, ok? – respondi positivamente com a cabeça, mas ao mesmo tempo dificilmente – Isso... Vamos entrando então. – depois de centímetros que mais pareceram metros, senti o ar frio da cozinha em minha pele branca – Agora, sente-se enquanto vou buscar alguma coisa. Ai-ai-ai...
Permaneci com as mãos sobre o rosto durante todo o tempo, querendo evitar mostrar mais detalhes de minha aparência, mas assim que me sentei na cadeira de bambu mais próxima que Joana oferecera, em menos de um minuto a mesma já vinha trazendo um grande copo de vidro com água e açúcar misturados para mim. Demorou uns dez minutos para poder me acalmar na tentativa de contar a história toda; toda vez que tentava, acabava chorando de novo. “Vamos, SunShine”, dizia dona Joana, “Como vou poder ajudar a menina mais forte que já conheci, se esta soluça de se acabar por algo que não sei?”
Esta fora a última frase dita por ela e a mesma que me fez parar de vez. Forte. Queria tanto ser isso. Sempre fizera o máximo para demonstrar força: tentava aguentar de tudo do pior lado de todos, desde ferimentos psicológicos e físicos. Mas agora, chorava como uma criança de cinco anos. Tinha razão para isso, era o fim de tudo para mim, mas eu queria demonstrar força. Não queria que todos pensassem que eu era uma garotinha de doze anos fraca. Não. Bebi um último gole de água com açúcar, e junto dele o máximo de nervosismo. Dei o copo vazio para dona Joana logo em seguida, enquanto esta o agarrava e observava imóvel, o topo de minha cabeça, até agora baixa. Queria uma resposta para tudo aquilo, para todo o descontrolar de nervos meus. Respirei lentamente durante alguns minutos, entre eles, profundamente, até que tomei coragem e comecei a abrir o jogo.
- Minha vida é um lixo.
- Como é? – perguntou dona Joana, confusa – Por que você diz isso?
- Por quê? – repeti firmemente, voltando finalmente meu rosto cheio de rastros de lágrimas para ela – Até parece que a senhora não sabe.
“Minha família: aquilo é família? Não é, por que família de verdade não trata os filhos como empregados só por serem adotados, por não serem sangue do seu sangue.
“Meu trabalho: desde quando criança trabalha assim e estuda uma merreca? Criança não deve trabalhar de tal maneira! Criança deve ajudar nas tarefas de casa, sem acabar cuidando dela sozinha. Por que isso não é ser criança; é ser adulto antes da hora. E a infância que nunca mais retorna? Eu já estou no fim da minha e quando eu encontro a única coisa que me dá prazer nas horas ruins, esta é proibida” – e apontei firmemente para a minha mochila jogada do outro lado da cozinha – “Ler Harry Potter. Sem contar os estudos pobres e os insultos que sou obrigada a agüentar todo o santo dia.”
- Oras, SunShine! Pare de reclamar! – exclamou dona Joana já aborrecida, indo à um armário guardar o copo. Não suportava esse tipo de atitude minha – Pelo amor de Deus! Tem muita gente por aí que leva uma vida pior! Daria tudo para comer o pouco que você come, para estudar o pouco que você estuda, para levar apenas esses insultos que você recebe... Pare para pensar! Perto dessas pessoas, você leva uma vida de rainha! Agora, se é só isso o motivo de seu choro, estou realmente arrebatada com...
- Quem me dera que fosse isso.
Como uma mínima interrupção pode mudar tanto o emocional de uma pessoa? Uma única frase minha e dona Joana travou os movimentos, ainda segurando o copo nas mãos. Mesmo de costas para mim, um pouco de seu rosto continuava a mostra. Pude vê-lo de lá. Nele não resplandecia mais aborrecimento, mas preocupação, até mesmo receio de algo. Segundos ela permaneceu assim, sem fala alguma. Não entendia o por quê. Fora só um comentário qualquer, não tinha cometido nenhum assassinato.
- O que você quer dizer com “quem me dera que fosse isso?” – perguntou. Sua voz demonstrava claro temor e dúvida.
- Que não é essa a razão de eu vir correndo e chorando até aqui – respondi um tanto receosa pela sua brusca mudança de comportamento.
- Qual é o motivo então? – perguntou novamente, tensa.
- O motivo é que não aguento mais sentir estar sendo vigiada.
CRÁS! O copo caiu sonoramente da mão de Joana e se estralhaçou fortemente no chão. Cacos se espalharam pelo chão da cozinha e tenho certeza que, se não fosse pelo tênis de anos que usava naquela hora, Joana sofreria um corte feio nas costas do pé. Arregalei os olhos. Ela era a pessoa mais cuidadosa que já havia conhecido na minha vida. Jamais deixaria quebrar alguma coisa, nem mesmo um fio de cabelo. Sua voz seguiu meio trêmula a seguir, o que me deixou ainda mais confusa.
- Vigiada? – continuou temerosa.
- É – confirmei, apesar de um tanto incerta se deveria realmente dizer ou não.
- Desde quando? – prosseguiu – Como?
- Bem, desde que tinha dez anos – expliquei – Todos os dias depois do meu décimo aniversário, eu me sinto assim. Parece que sempre tem algum par de olhos me acompanhando a cada milímetro que eu piso, a cada movimento que eu faço, tudo. É muito incomodo às vezes, mas, por incrível que pareça, essa mesma sensação me ajuda também. Só que hoje foi longe demais...
“Queria saber a razão de meu descontrole? Foi pelo que aconteceu agora a pouco, entre eu e Caftellen. Eu estava correndo para cá querendo evitá-la de alguma maneira, mas acabamos nos trombando no meio do caminho. Como sempre ela começou a me insultar: me chamou de cega, nojentinha e outras coisas mais. Até aí eu estava me controlando, só que quando ela falou que minha família biológica queria se livrar de mim, como foi feito, eu não aguentei. Fiquei a ponto de explodir naquela hora e quase que algo mais acontece. Algo que... você sabe muito bem o que é, né?”
- Ah sim, as garras, mas então? – falou depressa. Desde que eu tinha furado a porta da geladeira número dois e disse que tinha havido um tiroteiro por lá, ela sabe de meu segredo, sempre o guardando em total sigilo, dando-me também sua ajuda. Que foi? Eu tinha sete anos na época, foi a primeira coisa que me veio à cabeça na hora!
- Foi então – continuei meio pesarosa – que aconteceu o pior.
“Uma fração de segundo depois, um raio partiu do nada detrás de mim, junto com uma voz que dizia claramente ‘Já chega’. Uma voz de mulher.”
Joana arregalou os olhos apertados, fortemente, ainda de costas para mim.
- De mulher, SunShine? – perguntou, ainda mais preocupada.
- É. De mulher. Na mesma hora que aconteceu o estrago. Aquele mesmo raio acabou disparando pra cima de Caftellen e de umas meninas ao seu redor, fazendo-as serem atiradas com força total na parede e caírem inconscientes. Fizeram até um buraco na parede de tão grande que foi o choque. E o pior é que não fui eu. Não pode ter sido por que nem me movi. Fiquei muito alarmada com isso e corri pra cá, mas no meio do caminho eu parei, decidindo ajudá-las, acontece que não pude fazer nada por que todos os corpos evaporaram de lá, e me desesperei.
“Não faço ideia de como aconteceu. Não sei o que acontecerá comigo quando alguém descobrir isso. Tremo em pensar no castigo que receberei por algo que não faço ideia de como aconteceu. Não sei o que está havendo; se estou enlouquecendo, por que estou me sentindo assim, vigiada, a cada momento do meu dia. Antes eu pensava que era só impressão, mas agora, aquela maldita Caftellen desapareceu!”
- Quem desapareceu? – perguntou uma voz que eu bem conhecia.
Impossível... , o pensamento correu em minha mente, juntamente com a expressão pasma de meu rosto.
No meio dos mesmos passinhos retos, no meio dos mesmos sons de pulseiras e brincos de argola tilintantes e das mesmas garotas patricinhas, apareceu quem eu menos esperava ver numa hora tão crítica num tom de deboche idiota: Caroline Caftellen, patricinha, fresca, estilo “perfeitinha” e de vestes e roupas impecáveis exatamente como antes do choque. Nenhum arranhão, nenhuma poerinha, nenhuma marquinha, nenhum daqueles fios de cabelo cheio de hidratante em pé e evidência alguma do acontecera. Até aquele humor extremamente irritante era o mesmo; completamente inabalável.
Aquilo tudo não tinha lógica alguma, nenhuma! Não fazia o menor sentido.
- C-Caftellen? – gaguejei tão confusa que parecia meio louca – V-você está inteira? Como?
- Usando todos os produtos e cuidados que você é incapaz de conter, queridinha desprezada – disse sorrindo maliciosamente, em outra tentativa inútil de me afetar, rodeada de uma porção de risadinhas.
Tenho de admitir que em condições habituais eu me irritaria extremamente com o tom daquele “desprezada”, mas estava tão chocada naquela hora que a palavra simplesmente voou de minha mente.
- M-mas... o ataque. Vocês todas foram atiradas com uma força enorme contra a parede! Impossível estarem inteiras!
- Que ataque, tolinha? – debochou – E que parede?
- Oras, – disse sem entender – aquela pa... – mas quando eu apontei para o local, perdi completamente a fala.
Não havia nada. Completamente nenhum indício do ocorrido. A parede: inteiramente renovada, parecia que haviam acabado de pintá-la. A mesa: onde estava o pó e pedaços de parede que a emporcalharam? Não havia nenhum. Nem um grão sequer. E o chão: lustroso como estava antes.
- Isso não faz sentido – disse em voz distante, numa aparência surtada. Mas era como eu me sentia. Eu estava ficando louca? Louca? Era tudo confuso demais para mim...
- É claro que não faz sentido – disse desdenhosamente Caroline, após virar-se para o ponto em que apontara e voltar-se para mim – Desde quando alguma palavra sua tem algum sentido, sua demente. Vamos garotas – disse, fazendo um aceno – Vamos dar o fora. O ar dessa cozinha já está me fazendo mal – e foi-se antes tarde do que nunca para fora do refeitório.
Enquanto cinco pares de passos de afastavam ao longo do caminho, eu permaneci parada e Joana, não sabia como, continuava parada de costas para mim, como se ninguém tivesse vindo e nada tivesse acontecido. Aparentava até estar meio tensa, porém profundamente pensativa.
Foi como se meu cérebro tivesse dado um nó em si mesmo naquela hora e um nó ainda maior se forma-se em minha garganta. Um martelo batia na minha cabeça e eu estava ligeiramente tonta. Primeiro, aquelas garras. Depois, a sensação terrivelmente desagradável de estar sendo seguida por dois anos seguidos, sem poder livrar-me da mesma. Agora o ataque sem noção e autor conhecido à Caroline, que nem tinha certeza que havia realmente acontecido, e que podia muito bem significar que eu devia estar no hospício. Não. Eu tinha só doze anos. Não podia simplesmente surtar daquele jeito, naquela idade. Um aperto enorme no coração. O que faria agora? Agora que tudo aquilo chegara àquele ponto? Dizer o que entupia minha garganta.
- O-o que está acontecendo comigo? – falei meio trêmula – S-será que estou mesmo enlouquecendo? Toda essa perseguição, essa sensação estranha de que... Não. Não, não pode. Sou jovem demais pra isso. Não pode estar acontecendo realmente. Não há explicação alguma para isso. Não pode haver. É tudo improvável demais. Parece até coisa de outro mundo! Ai meu Deus, estou maluca mesmo, maluca! Não estou batendo bem da cabeça, é isso! Não estou aguentando mais. Preciso... preciso...
- PRA MIM JÁ CHEGA!
Quase caio da cadeira com aquele clamor inesperado. Dona Joana, que permanecera tão anormalmente quieta, acabara de soltar um brado ainda mais anormal que seu silêncio, enquanto virava-se finalmente para mim. Estava com uma aparência inacreditável. A pele negra se tornara vermelha num estalar de dedos; o sorriso bem-humorado havia morrido e substituído por dentes branquelos cerrados. As sobrancelhas juntas ao alto do nariz davam-lhe decididamente, a aparência de um pitbull raivoso; as mãos estavam fechadas em punhos e os olhos, fixados em algum ponto próximo a mim, estavam espremidos em um olhar furioso pelo franzir da testa que quase os cobriam.
Nunca sequer imaginara que um dia veria Joana tão zangada na vida, levei um susto com isso. Mas a situação ficou ainda mais complicada quando ela avançou em passos pesados em minha direção. Ou a princípio, assim me pareceu, pois quando faltava pouco para ela encarar-me frente a frente na cadeira, ela desviou-se, parando bem a minha vanguarda, mas fixando em algum ponto perto da porta de entrada à esquerda.
- CHEGA! NÃO POSSO MAIS FAZER ISSO, OUVIU BEM? SIMPLESMENTE NÃO POSSO MAIS! – bradava ela para o vazio como se houvesse alguém ali – JÁ BASTA PARA MIM! NÃO ESTOU AGUENTANDO ESCONDER A VERDADE DESTA MENINA! ELA TEM O DIREITO DE SABER O QUE VEM ACONTECENDO A MAIS DE DOIS ANOS! SABER A RAZÃO DA SENSAÇÃO QUE JÁ VEM SENTINDO HÁ MUITO TEMPO! A VERDADEIRA RAZÃO PARA TUDO ISSO! SERÁ POSSÍVEL QUE NÃO PERCEBE?! ELA IRÁ ENLOUQUECER SE NÃO CONTAR... – mas ela não terminou a frase. Fez uma pausa brusca como se as paredes lhe contassem alguma coisa, mas recomeçou logo em seguida.
- ORAS, É CLARO QUE CHEGOU A HORA! VENHO LHE AJUDANDO TODOS ESSES ANOS PENSANDO QUE ISSO A PROTEGERIA, MAS AGORA EU VEJO QUE ESTÁVAMOS AMBAS ENGANADAS! ALÉM DO MAIS QUEM MANDOU VOCÊ SE DESCONTROLAR? SERÁ QUE DÁ PRA... AH, NÃO, NEM TENTE ME EVITAR! – ela agora partia pela cozinha em linhas circulares, como se perseguisse o ar a sua volta – VOCÊ NÃO DEVE MAIS PRIVÁ-LA DA VERDADE, NÃO MAIS! ELA JÁ PERDEU UM ANO ESCOLAR, E VOCÊ SABE MUITO BEM DISSO! JÁ NÃO ACHA QUE A PREJUDICOU O BASTANTE? ACHA MESMO QUE PRECISA DE MAIS...? – fez-se mais uma pausa enquanto ela andava pela cozinha, um touro furioso caminhando numa arena maciça.
Até aí eu não estava entendendo absolutamente nada. Por que Joana ficara tão furiosa? Por que ficara tão preocupada antes? E o mais importante: por que estava falando sozinha e correndo atrás do ar?
Foi o que ocorreu depois que me surpreendeu de verdade: num brusco movimento, ela parou bem ao centro da cozinha e tentou agarrar o vazio. Por uma fração de segundo, pensei que a mão gorducha fosse passar direto, como se quisesse matar alguma mosca irritante que vagava por lá, mas levei um susto quando eu vi que nada disso havia acontecido. Ela realmente agarrara alguma coisa. Alguma coisa sólida, existente, mas aparentemente impossível de se ver. Sua mão era igual uma pinça de caranguejo; parecia estar segurando um copo com tanta força que este, tinha certeza, logo se quebraria arrasadoramente como o anterior.
Antes fosse isso, antes fosse. Deixava parecer que segurava algo muito além de um copo. Que segurava um braço. Um braço que equiparava a força da mão de Joana com a brutalidade de seus puxões insistentes para livrar-se dela em tentativas baldadas.
- Desculpe-me, mas agora nada mais que você disser me impedirá de revelá-la, e já! – Joana bradou como nota final, enfiando a mão dentro do bolso da calça.
Por alguma razão, tal atitude fizera a outra mão de Joana, que ainda segurava o invisível, parar por um instante e sacudir ainda mais violentamente que antes, quase que em desespero. Permanecera calada o tempo todo, mas isso já era demais. O que significava aqueles acontecimentos malucos? Abri a boca para falar, mas fui interrompida pelo ato seguinte.
Foi como estar vendo em câmera lenta. Um segundo, Joana tirava com rapidez do bolso algo estranho. Uma esfera do tamanho exato de uma bola de tênis, parecendo ser feita de gelatina de tão viscosa que me parecia, mas ao mesmo tempo era algo sólido e, pelo jeito que era empunhada, pesada. No instante seguinte, sem mais nem menos e com toda a força que pôde colocar, dona Joana tacou a bola direto no chão e uma porção de cacos espalharam-se pelo ar, juntos a uma explosão ensurdecedora que tomou conta de meus tímpanos violentamente. Coloquei os braços sobre o rosto permanecendo na cadeira, bem na hora que um punhado de pedaços da esfera voaram direto a ele, ferindo-os com pequenos cortes superficiais.
Nem sei como consegui permanecer sentada, pois provavelmente eu despencaria da cadeira em condições normais, mas apesar disso, mesmo com a força com que a coisa explodira, nenhum dos objetos na cozinha se quebrou. Estranhando tal acontecimento, abaixei meus braços vagarosamente, mas mesmo assim, nada pude ver: uma densa fumaça roxa dominara por completo a cozinha. Ouvi vozes: uma era Joana que ralhava sem parar e a outra era estranha, diferente, de alguém que não conhecia e que não fazia ideia de como fora parar lá.
- Você fez uma grande tolice, Joana! – repreendeu aquela voz desconhecida, aborrecida. Exatamente a mesma que eu ouvira minutos atrás. Mas de quem seria?
A discussão continuou por todo o tempo em que a fumaça densa prevalecia na vista, impedindo-me de ver a própria palma da mão. Nisso, apurei meus ouvidos, fazendo o máximo para ouvir cada detalhe daquele bate-boca.
- Fiz o que deveria ser feito!
- Que deveria ser feito? Francamente, você tem plena consciência de que n...
- Quer parar com essa conversa?! – Joana interrompeu – Afinal, quanto tempo mais você pretendia privá-la da realidade? Até enlouquecer?!
- Você sabe bem que não, Joana! Como pode pensar tal absurdo?
- É o que você deixou aparentar! – retrucou aborrecida – Sequer apareceu quando a menina notou sua presença! Sequer se revelou! Ao invés disso, permaneceu oculta como um felino vadio num beco sem saída!
- Felino vadio?– repetiu a outra voz, igualando sua raiva à da cozinheira – Realmente, nunca pensei que chegaria a esse ponto, Joana! Pensei que teria um pingo de sensatez num momento como tal, sendo que você própria o causou!
- Não causei coisa nenhuma! Você iniciou tal problema! Isso já deveria ter sido feito há muito tempo, já disse!
A densa fumaça roxa dissolvia-se sozinha aos poucos e devagar, ao mesmo tempo em que os gritos de raiva ecoavam pela cozinha. Com o desenrolar de tal discussão, ambas pareciam desgostadas demais para notar que eu já podia as ver aos poucos, seus vultos cada vez mais aparentes. Esquivei-me um pouco sob a cadeira, curiosa, afim de enxergar mais perfeitamente e identificar a segunda pessoa causadora do tumulto.
Entre palavras de desgosto e irritação, pude ver, com o esvair da fumaça, duas figuras totalmente diferentes: uma era baixa, gorducha e de cabelos de arame, que reconheci imediatamente como dona Joana, tão brava quanto anteriormente. Parecia que soltava fumaça pelas narinas de tão nervosa que estava. Mas a sua frente, uma figura que nunca na vida imaginei que veria na minha frente; que, se me dissessem que existia, eu diria que teriam pirado ou bebido demais.
Uma mulher magra, alta, de longas vestes pretas e sociais que raspava a barra ao chão de pedra da cozinha, escondendo os sapatos, agitando-se com todos os puxões insistentes que ela teimava em dar para livrar o braço da mão firme de Joana. Apesar da aparente velhice e dos cabelos acinzentados presos firmemente num coque apertado, oculto por um chapéu cônico, esta discutia energicamente com a cozinheira em meio aos repelões dados, como se a própria tivesse acabado de cometer um crime tão grave que os seus olhos chegavam a um ponto que pareciam em chamas e as narinas, alargadas, a soltar fogo.
Minerva McGonagall estava tendo um acesso de raiva bem na minha frente.
Já não deu pra esconder o susto da hora; parei de respirar, em choque, no momento em que eu desmoronava da cadeira em um tranco e levava ela comigo direto ao chão frio num doloroso baque surdo, os olhos tão arregalados que pareciam estar um fio de cair das órbitas e o coração saltando da boca para fora. Senti uma pontada forte ao me chocar com o duro solo gelado e o pulso esquerdo deu um leve mau jeito. Em conseqüência, soltei uma exclamação de agonia que passou completamente despercebida pelas duas senhoras; se mostravam tão focadas no conflito, do qual não entendia uma palavra, que pareceram não me perceber.
Pelo amor, aquilo era real?! Não, não poderia ser.
Belisquei meu braço fortemente, me assentando atrapalhadamente no chão.
- Ai! – gemi despercebida.
Não, não estava sonhando. Mas tudo aquilo era completamente... impossível. Verdadeiramente uma impossível realidade.
Engatinhei depressa como uma barata, direto para o outro lado da cozinha, bem ao ponto onde se encontrava minha mochila em cima da cadeira. Durante todo o percurso, o corpo colado ao máximo na parede, só vendo duas sombras se mexendo na mesma. No meio do engatinhar olhei para o relógio de parede. Todos os ponteiros haviam se paralisado. Seria uma mera conhecidência?
PAF!
- Ai! De novo? – disse baixinho, esfregando a mão no cocuruto. Com o choque não queria mais tanta atenção.
Sem ao menos me tocar que continuava andando, acabara batendo fortemente a cabeça na cadeira onde estava minha mochila. Então, xingando em murmúrios e com a cabeça ainda doendo um pouco, tirei minha mala de cima do assento e abri o fecho enferrujado, metendo a mão dentro dela. Procurei, por instantes, uma coisa que seria realmente útil naquela hora confusa.
Papel, lápis, caneta, papel, borracha, papel, bolsa de dinheiro furada, papel... Ahá!
Assim que senti a textura do objeto esquadrinhado, tirei-o da mochila com um forte puxão e o coloquei sobre o colo.
Pois é. Nunca achei que A Pedra Filosofal seria tão útil. Fora este o pensamento que correra na minha mente quando comecei a folhear o livro precioso.
“O Sr. e Sra. Dusley...”, não. “ - ... Os Potter, é verdade,...” também não. Caramba, onde... Achei!, pensei alegre e pus-me a ler em pensamento, a briga tendo continuidade:
“(...) E virou-se para sorrir para o gato, mas este desaparecera. Ao invés dele, viu-se sorrindo para uma mulher de aspecto severo...”
Levantei minha cabeça e fitei a mulher que discutia com Joana. Apesar de quase não parar quieta, com certeza seu aspecto era severo. Voltei-me ao livro.
“... que usava óculos de lentes quadradas exatamente do formato das marcas que o gato tinha em volta dos olhos...”
Se era do mesmo formato das marcas envolta dos olhos, eu não sabia, mas que ela usava óculos quadrados, usava.
“Ela, também, usava uma capa verde-esmeralda...”
Pelo menos uma diferença: ela não estava com capa verde-esmeralda.
“Trazia os cabelos negros presos num coque apertado...”
Qual é, os cabelos dela eram acinzentados.
“E parecia decididamente irritada.”
Numa última elevação de cabeça, pude notar o emocional da senhora enquanto fechava o livro em minhas mãos. Ela, com certeza parecia irritada.
Devolvi o livro para dentro da mochila e a fechei, colocando-a de volta na cadeira. Se fosse franca comigo mesma, as diferenças que tinha entre a versão do livro e a mulher à minha frente,eram mínimas. Porém, não poderia ser verdade. Todas aquelas pessoas, aqueles acontecimentos, tudo... só passava de uma ficção. Ou pelo menos, era isso que eu tentava botar na minha cabeça. A cada segundo que passava, parecia que tal possibilidade esvaia de à medida que meus olhos a contrariavam.
Fitei tal briga por instantes, que mais pareceram segundos, pois mal me concentrara na bagunça, o olhar frio da mulher mais alta parou em mim, como se acaba-se de notar que eu presenciava aquela cena, os olhos pequenos, seu corpo completamente petrificado e sua fala morta no instante em que me viu. Logo em seguida, Joana também parou, ainda segurando a outra na distância de um braço, e para o meu puro constrangimento, ela também virou-se na mesma direção e encarou-me, os olhos arregalados e colados em mim, completamente embasbacada pelo que pude notar, o rosto moreno e gorducho aos poucos retomando a sua cor original.
Tá legal que não gostava de ser deixada de lado, mas, sinceramente, se para alguém me notar tinha de ser assim, preferiria permanecer despercebida. Abaixei ligeiramente minha cabeça tentando evitar ao máximo os dois pares de olhos arregalados que me envergonhavam sem ter a mínima ideia se falava ou não. Se me mexia ou não. Se eu respirava ou não. Loucura completa... Constrangimento completo. Senti-me corar fortemente e um desejo de falar algo do tipo “Será que alguém pode falar por aqui?” rugia dentro de mim, completamente sem noção.
Instantes se passaram naquela mesma situação. Nenhuma de nós falava, ou sequer piscava, apenas nos entreolhávamos em silêncio, sem um ruído sequer. Foi então que a voz de Joana finalmente rachou ao meio o silêncio brusco da cozinha quieta.
- E Jorge e Rony me garantiram que a fumaça dessas bombas reveladoras duravam pelo menos vinte minutos.
Arregalei os olhos ainda de cabeça baixa. Jorge e Rony?, pensei, Peraí, quer dizer que eles...
Fui elevando, lentamente, o crânio, meio confusa, meio curiosa, fazendo certo esforço para encarar aqueles olhos que me observavam tão firmemente. Consegui erguer minha cabeça por completo, mas olhava para um ponto atrás delas. Joana, com uma facilidade incrível para falar, coisa que admiro até hoje, direcionou-se a mim com as seguintes palavras:
- Há quanto tempo você está ouvindo e principalmente vendo isso? – perguntou firmemente.
- Am... Há um bom tempo – disse cautelosamente.
Ambas à minha frente demonstraram certa preocupação para com a resposta, o que, consequentemente, dificultou o dizer da próxima.
- Você conseguiu ouvir tudo? – perguntou receosa – Tudo mesmo?
- Bem... – murmurei corando levemente – Para falar a verdade, só consegui entender as primeiras frases, e o resto – e dei-me de ombros, abaixando a cabeça pela falta de capacidade de... Um suspiro a minha frente.
Elevei a cabeça de repente e fitei-as novamente.
Estranho..., pensei confusa. Ao observar novamente as duas mulheres, notei, estranhamente, que ambas mostravam sensação de alívio ao ouvir uma resposta negativa de minha parte. Sinceramente, esperava um comportamento completamente diferente do qual as duas tinham acabado de demonstrar. Principalmente McGonagall, que nem tinha certeza se era realmente esse seu nome, que até desistira de soltar seu braço da mão de Joana. Apertei os olhos para tal situação e perguntei:
- Que foi?
- Ah, nada, apenas uma pergunta qualquer – argumentou Joana, quase retomando ao seu tom habitual – Suponho que saiba quem é ela, não é? – perguntou novamente, indicando a mulher próxima a ela, ainda segurando-a pelo braço.
- Para falar a verdade, - comecei incerta – não tenho certeza se o que eu penso está certo...
- E qual seria o seu chute?
- Amm... Não sei... – minha voz saiu novamente difícil da garganta – M... Não... Ah, não sei... Talvez... - Ela me achará maluca depois disso, mas é o que acho, pensei e completei insegura – Minerva McGonagall?
Joana esboçou um sorriso inesperado e satisfeito, enquanto a outra ergueu uma das sobrancelhas.
- Definitivamente estou maluca... – murmurei comigo mesma, mas para minha completa surpresa, ouvi um exclamar alegre e vitorioso da senhora morena.
- Ha! Eu te disse que ela lhe conhecia! Acertou na mosca, minha querida – disse sorrindo radiante para mim – Sabia que anos lendo Harry Potter renderiam em alguma coisa! Tinha cert... – mas foi interrompida por um novo puxão da outra.
O repelão rendera desta vez. Seu braço coberto pela manga das vestes negras, o qual Joana segurava tão insistentemente, finalmente se soltara. A cozinheira até fizera menção de segurá-lo novamente, mas McGonagall fez um gesto firme que a impedira de tal ação, deixando-a livre para andar em minha direção, os olhos completamente parados em mim, imóveis. Seus passos eram largos, silenciosos e um tanto assustadores, seguidos atentamente pelos dois pares de olhos que a observavam naquele momento, mudos, sem um único som de estalo aos seus pés.
Fui notando cada vez mais detalhes de sua aparência: pequenas cicatrizes existiam quase invisíveis em seu rosto e pude reparar, uma bem grande que lhe atravessava o rosto, que supus ser da Batalha de Hogwarts, ocorrida a não sei quanto tempo atrás. Em seu olhar não havia brilho, mas em compensação, estes pareciam penetrar além das lentes de seus óculos quadrados e parecia pensativa em meio ao seu andar.
Depois de momentos silenciosos que correrem junto ao vento que não havia, ela parou bem a minha frente e encarou-me firmemente, sem dizer uma palavra se quer. Fechei minha boca rapidamente para não passar certa imagem abobalhada e ergui levemente a cabeça para tentar encarar aquele par de olhos pequenos e penetrantes – até agora encarara seus pés. Consegui com meio sucesso executar o que queria. Digo meio sucesso, pois eu via seu rosto, mas não a encarava nos olhos e sim, num ponto alto de sua cabeça.
Isso não pode ser bom, pensei temerosa.
Encaramo-nos por certo tempo, até ela cortar firmemente o silêncio.
- Fale.
- Heim? – deixei escapar, pontos de interrogação batucando na minha cabeça – Quer dizer, como disse?
- Fale – repetiu – O que mais sabe sobre mim?
- Sobre você? – questionei surpresa, o temor agora visível junto ao desentendimento.
Ela confirmou com um aceno lento de cabeça.
- Ah, bem, você é... diretora de Hogwarts agora, suponho – comecei com a voz um tanto trêmula e atrapalhada, após uma pequena pausa para tentar recapitular informações – Já foi diretora da casa Grifinória e professora de Transfiguração. Muito severa com os alunos em relação às regras e é justa o suficiente para tirar cento e cinquenta pontos de sua casa numa só tacada, por exemplo. Professora de Harry Potter e amigos, participou também da Batalha de Hogwarts, ocorrida em... – fiz um breve esforço para me lembrar da data – dois de maio de noventa e oito, sendo uma das três líderes de tal guerra. Fiel à Alvo Dumbledore, também tem grande habilidade em animagia, ou seja, transformar-se em animal, mas permanecendo com inteligência humana e, bem... caramba... É isso – e dei-me de ombros – É o que me lembro agora.
Ela me olhou muito mais atentamente que antes, parecendo-me que seu olhar furava meus olhos de um jeito ainda mais forte do que Madame Caftellen, o que me fez tornar a abaixar a cabeça, incapaz de encará-lo mais. Meu rosto corou muito com a pergunta seguinte.
- Só isso? – perguntou em tom seco.
Engoli encabulada.
- Só.
- Não sabe nada sobre a minha família?
- Sua família? – perguntei com um leve interesse, apesar de pega de surpresa – Não. Não sei de nada. Nenhum nome, nenhum membro, nem sei se a senhora teve irmãos ou irmãs. Desta parte de sua vida, eu não sei.
- A senhorita citou a pouco Grifinória. Sabe sobre ela? – perguntou.
- Claro – disse escondendo um pouco de alegria e erguendo a cabeça – Sobre ela e as outras três casas: Corvinal, Lufa-Lufa e Sonserina. Até os fundadores – Além do mais, que pessoa fanática por Harry Potter não saberia?
Por um momento, ela apertou os olhos por trás dos óculos, num olhar que, tenho de admitir, perturbaria qualquer um. Dificilmente poderia descrever o tal, apenas sei que só de encará-lo por um mísero instante, parecia que meu estômago e entranhas despencavam e eram substituídas por uma enorme bigorna, grande o suficiente para preencher todo o meu interior e dar-me uma sensação estranha, semelhante a culpa. Lembro que, alguns segundos depois de lançar este olhar diretamente para mim, sua voz retornou num tom naturalmente (para ela) seco.
- E sabe disso, lendo apenas sete livros?
Apenas?! Está brincando!
- É – limitei-me a responder no seu mesmo tom – São apenas sete livros que têm muita coisa a dizer.
Arregalei os olhos fortemente depois disso e assustei-me comigo mesma. Eu tinha mesmo dito aquilo? Droga, o que acabara de fazer? Fora mal educada com uma professora? E logo aquela? Que grande porcaria.. Além de ser a primeira vez na vida que eu fizera isso (a exceção da diretora Caftellen), pude sentir como se tivesse cometido um crime e ao levantar os olhos para ela, a sua expressão nada satisfeita só fez piorar a situação.
Olhei para Joana atrás alguns passos de McGonagall. Puxa vida, por que ela não interferia como anteriormente? Por que escolhera ficar calada bem naquela hora? Seria extremamente útil em tal momento crítico uma palavra quebra-gelo para tentar amenizar a situação, mas parecia que nem ela sabia o que dizer. Aparentava, afinal de contas, que eu teria de fazer isso.
Depois de certo tempo, encontrei minha voz e palavras para dizer com muita dificuldade.
- Desculpe – disse depressa – Desculpe, eu não... não quis... – minha voz pausou por um momento – não quis ser grosseira com a senhora. Foi algo falado sem pensar, professora, foi da boca pra fora... Quer dizer – me embaralhei nas palavras em meio à frase e algo parecido um pouco com desespero começou a tomar-me conta. O que eu falo? O que eu falo?! – Aaam... Perdoe-me – finalizei, logo após um ruidoso suspiro.
Que besteira que acabara de fazer... Tolice suprema...
Droga, só dou mancada mesmo! E agora? Que chibatada eu vou levar?, pensei, já aguardando uma desgraça eminente.
- Está perdoada – falou carinhosamente, e estendeu sua mão magra para mim.
Como é?!
Um nó em minha mente me tornou bem mais confusa do anteriormente e senti que, se não estivesse sentada numa cadeira, despencaria dela. Ela estava me perdoando e estendendo a mão? Olhei vagarosamente de sua mão para seu rosto. Foi aí que levei o choque maior. Fala sério, ela estava sorrindo! Sorrindo diretamente, a imagem severa completamente desmanchada de seu rosto e em seu olhar, algo semelhante a um carinho. Por outro lado, no meu se formou uma expressão forte de interrogação.
- Levante – pediu ainda oferecendo a mão para mim.
Num gesto sem consciência, comecei a elevar minha mão levemente até a dela. Mas aquilo não era normal. Com certeza, não era nem um pouco normal da parte dela. Já havia lido muitas vezes a série, como havia dito Joana anteriormente. A professora a minha frente sempre fora descrita como a mais severa e, digamos, osso-duro-de-roer, mas agora, a mesma me estendia a mão? Mergulhada em pensamentos, toquei-me que estava por um fio aceitando a ajuda oferecida, ambos os pares de olhos da cozinha fitados em mim, um com um sorriso que julgava impossível, outro com uma expressão indecifrável. Acordei para o presente naquele momento e tentei parecer natural, negando a mão oferecida.
- Não – falei bruscamente, recuando a mão de repente e me apoiando na cadeira para me reerguer – Não preciso, obrigada – finalizei tentando parecer educada diante da situação, mas de nada adiantou.
Já de pé, ainda junta à parede de azulejos brancos, pude notar uma mudança de expressão de ambos os rostos. No de Joana, algo semelhante à vergonha tomou-lhe conta indiscretamente de sua face. A razão: não fazia ideia de qual seria.
No de McGonagall, por favor, ela estava normal? Pergunto isso, pois ao negar sua ajuda logo uma expressão de decepção, misturada a certa tristeza apareceu em seu rosto marcado. Ela não agia daquela maneira, mas não mesmo.
Tive vontade de perguntar o porquê da expressão das duas, mas parecia incapaz de encontrar voz e coragem para questionar, pois ambas as faces pareceram um alfinete cravando em meu coração, de tão intenso que foram para mim. Não gostava de ver gente assim, somente os outros gostavam de me ver com tais expressões. Fazia-me lembrar quando tinha cinco anos. Quando eu tinha cinco anos e começara a trabalhar, a levar broncas ao invés de ensinamentos, pela limpeza das inúmeras salas existentes, pelos chãos ensaboados e mal enxaguados e pelos vários vasos de flores que deixara derrubar na sala da diretora que terminariam com uma surra.
Foi por isso que eu desviei o olhar para a geladeira. Não gostava de lembrar o passado. “Passado é passado. Não tem por que lembrá-lo” já dizia para mim mesma, mesmo não conseguindo evitar o retrospecto constante de minha mente a acontecimentos passados. Alguns até, que faziam os pêlos de minha nuca se arrepiarem, de tão desagradáveis que eu os considerava.
Após fechar fortemente os olhos com a cabeça para o lado na inútil tentativa de esvair determinados pensamentos de minha cabeça, virei-me novamente para elas e falei a primeira coisa que me veio à cabeça.
- Por que estão com essas caras, afinal? – perguntei educadamente com a voz fraca (ou pelo menos, assim tentara).
- Percebes que a senhorita é extremamente independente, não? – comentou a professora numa linguagem que me surpreendeu, a voz até pouco firme, falhando levemente.
- É sim. Sou muito forte. Ou pelo menos assim tento parecer – disse dando-me de ombros em meio a um sorrisinho.
- Você é quando quer ser, SunShine – Joana finalmente entrara na conversa – Pode apostar que sim – e fingiu limpar um suor na testa, gesto que, sem querer, me fez sorrir.
- Bem, McMi, não acha que já...
- McMi? – interroguei ainda sorrindo, abafando minha primeira risada do dia.
- Joana! – advertiu a professora muito aborrecida.
- O que foi? Não era esse o seu apelido de infância? – disse brincando um pouco.
- Exatamente, era. Já passou o tempo de apelidos para mim. Me chame pelo nome, sim?
- Está bem, está bem, se prefere assim...
- Espera aí – interrompi, não conseguindo reprimir um sorriso bobo – Como assim McMi? De onde veio esse apelido?
- Ah, Sun... – respondeu a cozinheira animada e parecendo ansiosa para contar a razão da alcunha, um sorriso branquíssimo clareando, finalmente, o seu rosto.
- Ah, não... – sussurrou a professora pouco satisfeita.
- ... sabe, tudo começou no nosso primeiro ano em Hogwarts com uma simples brincadeira do intervalo. Tinha uns colegas nossos, muito criativos, tenho que admitir, que sempre criavam algo de novo para animar os outros. Foi quando eu acertei apenas trinta por cento do exame de poções, (algo que o professor fez questão de colocar bem grande na folha de papel) que Drayer e Tâmara inventaram de embaralhar nossos nomes para inventar apelidos engraçados.
“Rimos muito com aquilo, tenho de aceitar. Lufanos os dois. Detestavam ver as pessoas à sua volta infelizes. Pois bem, a primeira vítima, para variar, foi Minerva. Eles adoravam fazê-la de alvo pessoal, principalmente por que ela quase não sorria – e lançou um olhar significativo à professora que permaneceu na mesma expressão de antes – Pois é, embaralha de lá e embaralha de cá, depois de várias tentativas frustradas como SecaGonagall – tive que forçar-me para abafar o riso e não piorar o franzir da testa da professora –, acabou nascendo na folha de pergaminho a “famosíssima Srta. McMi” – brincou.
- Sério? – disse sorrindo – E pra você? Qual que inventaram?
- “J”.
- “J”? Brincou! Eles estavam com falta de inspiração, heim?
- Realmente – admitiu – Segundo eles, tinham esquentado tanto a cabeça para arranjar um apelido que Minerva aceita-se, que as ideias simplesmente se derreteram dos miolos.
Não conseguindo mais aguentar, soltei uma risada na cozinha.
- Ei, ei, ei – atropelou-me Joana e ao parar, meu olhar que caíra sobre McGonagall tornou-se constrangido, porém com um sorriso – Calma menina. Aposto que você está abarrotada de perguntas pra fazer, não? Pois aproveite! Nem sei quanto tempo vai demorar para...
- Não Joana! – advertiu fortemente McGonagall, mui se aborrecendo e fazendo um forte gesto para pausá-la.
- Não o quê?! – indagou a outra.
- Não conte nada à menina – explicou – Pelo menos não agora. Mais um instante e já estaria contando o que não devia!
- Oras, McMi, eu não...
- Não me chame assim.
- Que seja, mas eu não iria contar nada! Sabe muito bem que cumpro minha promessa quando eu faço uma! Jamais contaria isso para ela tão cedo! Claro, você sabe que por mim, já teria feito, mas sou sua amiga de infância, por isso...
- Você não poderia, mesmo que quisesse – advertiu firme e fortemente a professora, sua raiva aparentando retomar.
- Contar o quê? – atropelei em meio às falas altivas.
- Uma coisa difícil demais para se explicar agora, senhorita Kingsplay – respondeu prontamente, finalmente desviando seu olhar zangado de Joana para mim, as narinas alargadas.
- Eeer... É SunShine, tá? – corrigi fazendo o máximo para parecer educada – E sem querer abusar, mas que tipo de “coisa difícil demais para se explicar” é essa da qual vocês estão falando?
De repente, logo ao virar novamente o rosto para mim, a expressão de raiva que pairava no rosto da professora fora substituída por uma bem mais séria, mas sem retirar um pouco do franzir de sua testa.
- Nada que lhe diz respeito – respondeu secamente.
- Minerva! – exclamou Joana surpresa com a grosseria.
- Oras, - comecei fazendo o máximo para ser afável e sem jeito, apesar de no fundo estar meio embasbacada – se não é nada que me diz respeito, então por que a senhora temia tanto que Joana me conta-se... seja-lá-o-que-for? Afinal professora, se essa coisa não fosse realmente importante, creio que não se preocuparia com o fato da minha pessoa – fiz questão de usar um termo anormal – saber do que se trata, não é verdade? Ou estou enganada?
Como se num estalo, ambos os rostos retornaram a demonstrar preocupação. O franzir de testa e os olhos arregalados simplesmente haviam sumido novamente da face das duas mulheres. O quão intrigante isso era é quase impossível descrever, só sei que depois de um tempo, mas sem querer, acabei soltando um sorrisinho vitorioso para as duas; tinha as encurralado de vez. Elas teriam de me contar a verdade agora. Elas com certeza abririam o jogo. Ou pelo menos foi o que pensei.
- Tenho que admitir que você argumenta bem, Sun – admitiu a cozinheira, e logo em seguida, McGonagall apressou-se em responder.
- Escute senhorita Kingsplay,...
- É SunShine – murmurei secretamente antes dela continuar.
- ... serei sincera. Tem razão quando diz que não ficaria receosa se o assunto não fosse realmente importante, mas também irei pedir para não insistir neste ponto, pois já disse: é difícil demais para explicar agora, além do mais...
- Além mais eu não tenho ideia do por que preciso saber disso – completei incondicionalmente. – Parando pra pensar agora, não sei por que alguém me contaria algo particular. Ou pelo menos eu acho que o assunto é particular.
- Sim, de certa forma é particular, mas...
- Então está resolvido – cortei – Se tem uma coisa que eu não faço é me meter em assuntos privados, principalmente de professores e amigos.
- Mas...
- Me desculpe, mas eu não vejo argumentação. Sem contar que me sentiria horrível em saber algo que alguém não quer que eu saiba, então – cruzei os braços sob o peito – está feito. Objeções?
Por alguns momentos olhei para as duas a minha frente. A empregada permanecia quieta em seu ponto, mas a professora McGonagall pareceu que iria gritar comigo por conta de meu atrevimento. Já estava até preparando os ouvidos para alguma advertência altiva, mas logo ela mudou de ideia e fechou a boca que havia aberto para dizer alguma coisa. Ela olhou para o ar discretamente, talvez pensando no que iria dizer depois de minha fala, até que novamente mirou seus olhos pequenos e pretos em mim – claramente estava procurando paciência para me aguentar.
- Pois muito bem. Se prefere assim, não irei obrigá-la a nada, afinal é uma escolha sua – concluiu secamente – Tem certeza de sua decisão, suponho.
- Sim, senhora. Absoluta – respondi – A única coisa que quero saber é: então era verdade? Eu estava mesmo sendo vigiada? Não era birutice?
Um breve silêncio entrou na sala.
- Não era – ela me disse – Eu estava mesmo lhe vigiando, como já foi esclarecido.
- Por quê?
Ela baixou os olhos ligeiramente e olhou rápido para amiga, como se não soubesse o que dizer e espera-se que ela interferi-se, no entanto, esta também não sabia como responder.
- Bem... – murmurou Joana incerta, ainda sob a mira da amiga – Olha, faz parte da...
- Já sei, já sei, – falei impaciente, balançando a cabeça negativamente antes que ela pude-se continuar – da parte que é complicada demais pra contar... Mas precisava mesmo isso? Quero dizer, por que não me mandou uma carta, como todo mundo? Eu não sou importante o suficiente para ter a diretora de Hogwarts na minha cola por mais de dois anos!
- Olha, Sun... – falou Joana daquele mesmo jeito incerto, andando devagar até um armário próximo e pegando uma lata velha de biscoitos de gergelim – sobre a carta... Bem... Mandaram uma pra você ano passado, mas não pude entregá-la porque... bom – ela tirou a tampa da lata – você já sabe – e, para minha surpresa e pleno choque, ela tirou um envelope de lá de dentro.
Um envelope cor de creme, escrito com uma reluzente tinta azul escuro que desenhava uma letra puxada e um pouco grossa demais. Ao pegá-lo depois de um choque de segundos em olhos enormes, estiquei o braço e Joana se adiantou em alguns passos, me fazendo pegar a carta de vez com a mão trêmula. Ansiosa, exasperada em silêncio, passei a mão sobre o selo vermelho de Hogwarts. Era de Hogwarts mesmo! Ligeiramente, virei para ver a frente da sobrecarta e meu estômago pareceu dar uma incrível cambalhota. Em uma letra grossa e bem desenhada em tinta azul-marinho, não estava escrito nada menos que:
Srta. Sabrina Kingsplay.
Lado direito da geladeira dois
Colégio The Times World
Katerfing
Ryttop
Com o coração palpitando no peito, pulando quase que da garganta para fora junto a uma leve tremedeira, lancei um olhar inquieto para a cozinheira, a diretora imóvel ao seu lado, que respondeu-me com um breve aceno positivo de cabeça. Imediatamente, dei-me por abrir a carta o mais rápido que era capaz, rasgando quase ao meio a aba do envelope e puxando de dentro, quase que freneticamente, um papel muito branco dobrado. Parei por um momento, admirando apenas os reflexos das letras em tinta que podiam ser vistas no verso da folha, poucos segundos antes de abri-la.
ESCOLA DE MAGIA E BRUXARIA DE HOGWARTS
Diretora: Minerva McGonagall
(Ordem de Merlin, Primeira Classe, Confederação Internacional de Bruxos, Chefe da Execução das Leis da Magia)
Prezada Srta. Kingsplay,
Temos o prazer de informar que V.Sª. foi aceita na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Estamos enviando a lista de materiais necessários.
O ano letivo começa em 1º de setembro. Aguardamos sua coruja até 31 de julho.
Atenciosamente,
Alvoros Grunnion
Diretor Substituto
Arregalei os olhos e soltei os braços do peito, ambos os papeis nas mãos e uma terrível vontade de desmaiar. Por um momento dei como fora do ar, parecia que viajava em meio o vazio, em meio a certos pensamentos, fitando um ponto da parede da cozinha. E estava mesmo! Foi como se um flashback passa-se em minha mente, fazendo-me rever todos os vários acontecimentos, até pouco, inexplicáveis dos últimos anos dois anos. Mesmo com tudo que ocorrera anteriormente, era impossível não se beliscar discretamente.
- Foi a senhora que colocou aquelas coisas na mesa do café-da-manhã hoje? – falei de repente, inconsciente, ainda hipnotizada pelas memórias.
- Sim – respondeu-me.
- Foi a senhora – continuei – que fez aquela montanha de pratos ficarem limpos? Fez a minha caneta se quebrar? Que produzia ruídos em lugares quietos... como aqui? Antes de Joana chegar à escola?
- Exatamente.
- Como você queria guardar segredo depois disso? – exclamou indignada dona Joana para a amiga.
Fiz uma pequena pausa na tentativa de clarear outras coisas em minha mente. Fala sério..., pensei incerta, Se ela fez isso, ela não é ela. Quer dizer, e aquela mulher rígida e discreta de quem tanto ouvi falar? O que aconteceu? Por que ela está diferente comigo?
Continuei lentamente a seguir, acelerando aos poucos com o passar das palavras.
- E que fez meu cabelo crescer quando Madame Caftellen o cortou ridiculamente curto como castigo por eu ter manchado a lousa digital de produto de limpeza aos nove anos? Ou fui eu? – duvidei, lembrando-me vagamente do que ocorre com Harry Potter.
- Você. Não estava presente na época, lembra-se? – justificou.
- Ih, é – toquei-me e logo em seguida, sorri abobalhadamente – Nossa... Caramba... E eu achando que estava caducando e... – foi então que me pairou na mente uma coisa bem mais importante que cabelos reparados – FOI A SENHORA! – bradei enraivecida.
Seu mínimo sorriso desmanchou-se e viu-se substituído por um olhar estreito e confuso.
- Como disse? – interrogou com uma ponta de aborrecimento.
- SunShine! - falou Joana em tom de alerta, mas não consegui dar quaisquer atenção.
- FOI VOCÊ QUE ESTUPOROU CAROLINE CAFTELLEN! – completei, as unhas das mãos começando a formigar enlouquecidas e esmagando a carta e o envelope.
A professora tornou-se, de repente, visivelmente triste.
- E... FOI VOCÊ QUE QUEBROU AQUELE VASO CHINÊS DA MADAME NO ANO PASSADO!
- Foi – disse dificilmente em voz falhando.
- EU SABIA QUE NÃO PODIA TER SIDO EU, SENDO QUE O CABO DO ESFREGÃO TINHA IDO PARA A DIREITA E O VASO ESTAVA A ESQUERDA ATRÁS DE MIM! A SENHORA SABE QUANTA SURRA EU LEVEI NAQUELE DIA? FAZ IDEIA DO QUE CAFTELLEN FOI CAPAZ DE FAZER DEPOIS DE ME DAR CINTADAS? COMPRAR UM CHICOTE! DOU GRAÇAS A DEUS QUE CONSEGUI ME DESVIAR DA MAIORIA DAS CHIBATADAS, MAS E SE NÃO CONSEGUISE?! EU IRIA ME MACHUCARIA TANTO QUE DUVIDO QUE CONSIGA ATÉ ANDAR! E A SENHORA ONDE ESTAVA NESSA HORA? ONDE?
- Como acha que conseguiu desviar-se? – limitou-se a perguntar com forte frieza.
- Oras, eu... – Foi então que a ficha caiu. – Peraí. Está me dizendo...
- A ajudei naquela hora? Sim.
Comecei a corar fortemente e engoli a seco, um constrangimento imenso tomando o lugar de toda a adrenalina que tomara-me conta poucos segundos antes, junto a um peso que equiparava-se com uma manada de elefantes em cima da minha mente.
- Então... está me dizendo também que... – falei sem jeito.
- Que você não tinha razão alguma para berrar na minha frente, como uma falta de respeito com um professor, acusar-me sem razão e abusar de minha paciência, mesmo tanto lhe auxiliando no momento em pauta, não tendo muitas chances de se desviar sem minha ajuda, deste modo levando as consequências de um erro que eu cometi? Sim.
Depois de uma burrada daquelas, me deu vontade de cavar um buraco no chão e enfiar a cabeça dentro para nunca mais tirar, por conta da terrível vergonha que morria de sentir na frente das duas, que não desviavam o olhar de jeito maneira de cima de mim, cada um mais profundo e cortante que o outro. Olhei para minhas pernas e delas para os meus pés. Meus membros inferiores pareciam feitos de marshmallow de tanto que tremiam de dentro para fora, causando um incômodo formigamento nos nervos. Parecia que havia uma bola de pingue-pongue dentro da minha garganta e não conseguia pensar em uma palavra sequer para dizer, nem mesmo uma simples “Desculpe-me”.
Minutos se passaram num silêncio pesado que mais me pareceu milênios torturosos. Já começara passando uma péssima imagem para minha reputação. Ergui a cabeça em meio uma leve tremedeira para tentar falar alguma coisa, evitando ao máximo aqueles pequenos olhos pretos que me observavam tão penetrantemente por trás dos óculos de lentes quadradas. Abri minha boca para tentar gaguejar alguma coisa, mas tudo que consegui soltar foi o nada.
De repente pareceu-me que um gancho fino e doloroso furava meu coração aos bandos, ou que uma centena de agulhas penetra-se dentro de mim. Coloquei minha mão sobre o peito e curvei-me levemente para frente, tão vermelha quanto um extrato de tomate recém-preparado para uma macarronada. O olhar de McGonagall estreitou-se e o de Joana cresceu significantemente.
- SunShine? – perguntou levemente, já um tanto preocupada.
- Eu... – falei com dificuldade – Me... Desculpe... Eu não... – de supetão, senti dolorosamente uma pontada forte no peito, forte o suficiente para me fazer gemer.
- Sun? – repetiu preocupada a cozinheira.
Mais uma pontada forte. Mais um gemido de dor. Meu coração estranhamente pareceu enfraquecer.
- Mas o quê...? – a professora finalmente questionou – Joana, o que está acontecendo com ela?
- Eu não sei! – disse insegura, enquanto mais uma vez eu tentava falar, com constrangimento.
- Desculpa... Eu... Não sabia... Eu não queria ser... – Meu coração parecia uma bomba relógio prestes a explodir enquanto falava – Estúpida eu fui... Me... – algo misturado com vergonha, culpa e uma detestável fraqueza misturou-se dentro do meu peito, uma dor tão forte que foi demasiado difícil de agüentar. Demasiado o suficiente para eu cair de joelhos e soltar uma exclamação de dor alta.
- SunShine! – exclamou dona Joana surpresa e assustada, avançando de imediato para mim, juntamente com a professora Minerva em seus passos rápidos.
Meu coração começou a acelerar demais dentro de mim. Uma fraqueza estranha que nunca havia sentido. Uma dor nauseante. Despenquei para o chão e comecei a me contorcer em reflexos. Foi então que o canto de meus olhos começou a machucar, bem onde se encontrava as benditas marcas negras como meia-noite. Foi então que a dor começou a tomar conta de meus olhos também, mas não só ela, como uma escuridão imensa que se alastrava devagar na minha visão enquanto o peito doía. A morena segurava na minha mão ao mesmo que via, com preocupação, meu corpo se retorcer enquanto McGonagall permanecia curvada sobre mim, ainda de pé, trocando palavras nervosas e surdas com Joana, impossíveis de se ouvir, mas que se percebia pelo gesticular serem extremamente rápidas.
Mais um dor que veio em uma porção enorme de pontadas horrendas, um contorcer e a escuridão a um único fio de me dominar. Eu estava morrendo? Eu não podeia... Eu queria ir para Hogwarts... Hogwarts, por favor... Queria pedir desculpas... Queria que a docente as aceitasse... Um pouco antes de tudo se apagar, e nada mais se ouvir das senhoras ali presentes, consegui ouvir uma única palavra abafada e meio trêmula de Joana.
- ... gotas!
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