Percy



PERCY


Eu estava grávida de pouco mais de sete meses na noite em que começou o trabalho de parto de Percy. No começo da gravidez, eu havia brigado com tia Muriel [ela estava começando a ficar senil, e havia chamado Arthur de 'fornicador incansável' quando soube que eu estava mais uma vez grávida] e ela resolvera cancelar a mesada que sempre me dera, e que sempre fora de grande ajuda no sustento de nossa casa. Com isso, nossa situação financeira estava um pouco difícil, o que havia levado meu querido Arthur a fazer incontáveis horas extras no Ministério desde então. Quando meu marido chegou em casa, com os olhos fundos de cansaço, eu o recebi com um beijo e um sorriso e servi a sopa de ervilhas para ele e para os dois pequenos. Depois de um jantar silencioso, coloquei Gui e Carlinhos na cama e desci para conversar com meu marido. Nós tivemos uma discussão terrível: eu estava cansada de ficar em casa assistindo Arthur se acabar de tanto trabalhar. Queria batalhar também, trabalhar, ajudar, pois, afinal de contas, aquela era a nossa família, não a família dele! Aquela foi uma das únicas vezes em que Arthur gritou comigo: com uma veia pulsando em sua têmpora direita, ele gritou com toda a força de seus pulmões que não admitiria que eu fosse trabalhar grávida, tampouco com um bebê pequeno e duas crianças pequenas para cuidar. Foi quando eu senti uma pontada lancinante na barriga e uma cachoeira de sangue vermelho, quente e pegajoso desceu pelo meio das minhas pernas.


Percy Ignatius Weasley nasceu em 22 de Agosto de 1976, o dia mais frio de todo o século XX na Inglaterra, após o trabalho de parto mais demorado de todos os seis pelos quais passei: foram trinta e duas horas e quarenta e sete minutos de dor excruciante e medo, desde o momento em que senti as primeiras contrações até aquele em que finalmente ouvi o choro fraco do meu bebê. Ele nasceu prematuro, quase dois meses antes da data esperada, pesando menos de um quilo e meio e completamente careca e sem pelos, dando-lhe a aparência de um pequeno invasor alienígena na primeira vez em que o vi, o que me levou às lágrimas por me fazer pensar que ele talvez não fosse sobreviver muito tempo. Arthur também estava assustado: quando ele entrou no quarto para conhecer nosso filho, seus olhos estavam inchados de choro e cansaço, e seus lábios tremeram quando viram a fragilidade de nosso recém-nascido, antes que a curandeira retirasse Percy de meus braços e o levasse para o berçário onde cuidavam de bebês nascidos antes do tempo. Meu marido não precisou falar para que eu soubesse que, por mais que os médicos tivessem dito o contrário, em seu coração ele se culpava imensamente por aquela situação. Mas ele também não precisou pedir desculpas para que eu segurasse sua mão e dissesse 'vai ficar tudo bem, querido. Ele vai ficar bem'.


Talvez tenha sido pelo sentimento de culpa, mas o fato é que Arthur passou muito mais tempo com Percy do que passou com qualquer outro de nossos filhos. Não que ele tenha sido um pai ausente ou mesmo desatento com os outros – mas com eles, nunca houve o grau de intimidade, de cumplicidade, que houve com Percy. Quando ele ainda era bebê, era Arthur quem levantava de madrugada para checar se ele estava bem, se precisava ser alimentado ou se as fraldas precisavam ser trocadas. Depois, quando Percy cresceu um pouco, sempre era o primeiro a pular no pescoço do pai quando ele chegava em casa, e também o que recebia as maiores atenções de Arthur nesses momentos. Acredito que nossos outros filhos jamais tenham percebido isso, pois Arthur era discreto. Mas para mim, que já estava a seu lado há tantos anos e o conhecia tão bem quanto a mim mesma, era óbvia a preferência que Arthur tinha por Percy – e também era óbvia a preferência que Percy tinha pelo pai. Não que ele jamais tenha me tratado mal, ou me deixado de lado. Mas seus olhinhos verdes seguiam o pai com tanta devoção, as perninhas gorduchas imitavam seus passos com tanto orgulho, que o pequeno Percy não precisava demonstrar de outra forma que o pai era seu preferido. Isso me magoou um pouco, admito; afinal, estava acostumada com a adoração que Gui e Carlinhos tinham por mim, e ver que meu bebê preferia Arthur foi doloroso, mas a dor com o tempo deu lugar a uma pacata resignação que não me incomodava.


As habilidades mágicas de Percy fizeram com que eu ganhasse alguns fios de cabelos brancos ainda muito jovem. Ao contrário de Carlinhos, cujo excesso de magia me causava rugas, o que me preocupava em Percy era que, nele, parecia não existir magia nenhuma. Ele era um garoto gentil, quieto e dedicado às suas tarefas, mas me angustiava pensar que meu filho pudesse ser um aborto. Eu jamais deixaria de amá-lo por isso, mas pensar que ele pudesse ser destratado, discriminado por isso, me desesperava. Quando comentei os motivos de minhas preocupações com Arthur, ele sequer tirou os olhos do jornal que lia para me responder 'Deixe o garoto, Molly. Nem todos são tão mágicos quanto você e seus irmãos Prewett, mas isso não quer dizer que não haja magia nele', me deixando consternada. O pequeno Percy também parecia preocupado com o fato de que talvez não fosse como seus pais e irmãos: amiúde eu o flagrava tentando realizar feitiços que encontrava nos velhos livros de escola dos irmãos mais velhos, usando uma varinha quebrada que ele havia encontrado no sótão, sem jamais conseguir algum resultado. Para o alívio de toda a família, inclusive do próprio Percy, algumas semanas antes de seu aniversário de dez anos, ele finalmente conseguiu externar a magia dentro de si ao fazer seu quarto se encher de cobertores conjurados sabe-se lá como, nunca noite particularmente fria de inverno.


Acredito que o fato de ter levado tanto tempo para que se descobrisse realmente mágico fez com que Percy se tornasse um tanto quanto obcecado com a idéia de ser o melhor que poderia ser em relação a todo e qualquer tipo de magia, e fez com que ele se esforçasse para isso. Ele não se intimidou de ter que usar as vestes antigas de Gui [as de Carlinhos, embora mais novas, eram grandes demais para seu corpo magro] para ir à escola, tampouco se chateou com o fato de que seus livros e materiais seriam de segunda mão. A única coisa da qual Percy fez questão foi de ganhar uma varinha nova, escolhida especialmente para ele, sem ter que se preocupar com o preço que ela teria – no que foi prontamente atendido. Antes mesmo de ir para Hogwarts, ele já havia lido mais de uma vez todos os livros da lista do primeiro ano, e havia começado a ler os livros recomendados para o segundo ano. Percy era ambicioso e queria superar os feitos de seus irmãos mais velhos em Hogwarts, e esse era o motivo pelo qual se dedicava tanto. Devo admitir que tive um pouco de medo de que essas características levassem o Chapéu Seletor a declará-lo sonserino, o que, para satisfação minha e de seu pai, não ocorreu.


Em relação à escola e ao seu desempenho, Percy sempre foi o mais dedicado de todos os meus filhos. Desde os 11 anos, passava noites acordado estudando para os exames, perdia preciosas horas de sono e diversão lendo toda a extensa bibliografia recomendada pelos professores, deixava de comer para passar o horário do almoço tirando dúvidas com os professores. Suas notas eram sempre excelentes, e em alguns anos ele conseguiu ter as melhores notas do ano – em outros, foi superado por uma jovem e esguia corvinal de cabelos pretos e levemente cacheados, chamada Penélope Clearwater. Ele ficava irritadiço sempre que a menina conseguia superá-lo em notas, mas, com o passar dos anos, não conseguia esconder as orelhas vermelhas sempre que citava o nome dela. No verão em que foi escolhido monitor, ele e a bela Penélope haviam engatado um namoro que, apesar das cartas apaixonadas que trocaram durante todas as férias, não durou mais do que alguns meses – Percy disse que eles terminaram porque Penélope era muito dominadora, mas, no fundo, eu sempre achei que foi porque ele não suportou a idéia de que, no ano em que namoraram, as notas dela acabaram sendo mais altas do que as dele.


Ao terminar Hogwarts, Percy conseguiu um estágio no Ministério da Magia. Eu já havia previsto que sua escolha profissional recairia sobre a política – durante toda a sua vida, eu o havia flagrado ensaiando discursos em frente ao espelho, e mesmo escrevendo-os em todo e qualquer pergaminho que ficasse tempo suficiente na sua frente – e o fato de ele ter conseguido todos os NOM's e NIEM's que podia na escola com certeza o havia tornado um jovem promissor aos olhos do Ministério. Mesmo assim, fiquei muito orgulhosa por ele ter conquistado isso – maior do que o meu orgulho, entretanto, era o de Arthur, quando soube, alguns meses depois, que o filho seria um dos mais jovens funcionários já contratados pelo Ministério. Pobre Arthur. Mal sabia que aquele emprego, aparentemente tão bom, fora o primeiro passo do caminho que levaria Percy para longe de nossa família por tanto tempo.


Dia a dia, noite a noite, eu notava que Percy se estava tornando cada vez mais distante de nós. Ele preferia se trancar no seu quarto para ler do que descer para jantar conosco, mesmo quando eu fazia seus pratos preferidos. Nas poucas vezes em que se juntava à família, sua má-vontade era tanta que todos ficavam incomodados com a sua presença. As brigas com Arthur, com o qual ele sempre se dera tão bem, foram se tornando cada vez piores e mais constantes. Eles discordavam a respeito de suas preferências gerais, de suas opiniões políticas, e, principalmente, a respeito de sobre quem deveria recair a fidelidade de nossa família depois do retorno d'Aquele-que-não-deve-ser-nomeado – aliás, Percy se recusava mesmo a acreditar que esse retorno havia ocorrido. A situação foi se tornando cada vez mais delicada e insustentável, até que, quando mais nada podia ser feito, a única coisa apropriada foi Percy sair de casa. Eu obviamente não queria isso. Lutei com todas as minhas forças para tentar convencer meu filho a ficar, mas ele estava tão cego e resoluto que não deu ouvidos a nenhum dos meus apelos e desaparatou com um estalo, sem sequer dizer adeus. Naquela noite, Arthur chorou como um bebê em meus braços. Ele não sabia o que havia feito para que, de repente, seu filho preferido, seu maior companheiro, se voltasse contra ele e contra o que ele acreditava de forma tão pungente. Eu também estava perdida com a partida de Percy, e mal sabia como consolá-lo.


Nunca conseguimos adaptar nossa família à partida de Percy. Por mais que as lágrimas fossem ocasionalmente sendo esquecidas, seu lugar sempre esteve ali, vazio, nos lembrando de que um membro da família havia escolhido não mais pertencer a ela. Eu chorava sempre que lembrava de meu filho distante, mas via nos olhos secos de Arthur que a dor dele por essa distância era tão grande quanto a minha. Nos dias em que pai e filho se cruzavam no Ministério, Arthur chegava em casa arrasado. Ia dormir sem jantar, e passava a noite em claro. Ele continuava não entendendo o que levara o filho a tomar a atitude de se afastar da família e, mais do que isso, o porquê de o rapaz ter permanecido distante mesmo quando o retorno de Voldemort era uma certeza a respeito da qual bruxo nenhum lançava dúvidas – Arthur julgava conhecer tão bem seu filho, seu caráter, que era inaceitável para ele que o rapaz estivesse apoiando um Ministério corrupto, sujo, tomado pelas forças do Lorde das Trevas, sem sequer fazer menção de se afastar.


Na noite da Grande Batalha de Hogwarts, eu rezei para todos os deuses para que meu filho do meio não fosse um dos inimigos que enfrentaríamos enquanto defendíamos os muros da escola e os ideais de liberdade e igualdade que eles significavam. Arthur não precisou me dizer para que eu soubesse que essa era também uma de suas maiores preocupações. Enquanto nos reuníamos na Sala Precisa, eu reuni meus filhos ao meu redor e beijei a testa de cada um deles, desejando que o meu amor de mãe recaísse como uma proteção sobre suas cabeças. Mas ainda faltava Percy, e essa falta doía em mim; pensar que meu filho estaria sozinho do outro lado do campo de batalha, atacando o seu próprio sangue, me desesperava de tal forma que eu mal conseguia respirar. E então ele apareceu. Apareceu com os olhos assustados, as faces coradas, a roupa um tanto desalinhada, pelo mesmo buraco na parede através do qual o resto da família havia entrado minutos antes. Apareceu para se juntar a nós, para defender aquilo que eu e seu pai havíamos ensinado a ele – apareceu para defender aquilo em que ele próprio acreditava. Toda a emoção que eu senti naquele momento se transformou em lágrimas enquanto eu corria para abraçar meu filho, para dar-lhe novamente as boas-vindas ao seio da nossa família. Beijei-lhe as faces e, depois de um abraço apertado, deixei que ele fosse abraçar o resto da família, pedir desculpas pelas suas atitudes e, principalmente, explicar o porquê de ele haver decidido voltar.


Foi a última vez em que contemplei toda a minha família junta, em harmonia, viva. Naquele momento, tudo era alegria e esperança de vitória, e a sombra do futuro próximo, que transformaria para sempre nossas vidas, estava longe o suficiente para que não fosse importe. Naquele momento, o filho pródigo retornara ao lar, havia sido perdoado e era novamente parte integrante da nossa família. Naquele momento, eu sorri.

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