Carlinhos



CARLINHOS


Carlinhos sempre me foi o mais estranho de todos os meus filhos, apesar de ser aquele cuja personalidade e temperamento mais se pareciam com os meus: tímido, superprotetor, teimoso e absolutamente carinhoso, eu sempre me diverti com a idéia de que, se eu fosse um homem, provavelmente seria parecida com ele. Fisicamente, ele também havia puxado os Prewett: mais baixo e mais forte do que os irmãos, com seus cabelos eram de um tom mais vermelho do que o deles e seus olhos castanhos e sonhadadores, ele era tão parecido com meus irmãos mais novos que, quando Gideon e Fabiano foram assassinados pelos Comensais d'Aquele-que-não-deve-ser-nomeado, eu ia ao quarto de Carlinhos todas as noites e chorava em silêncio enquanto observava o sono do meu menino, vendo um pedaço da vida de meus irmãos em cada uma das pequenas sardas de seu rosto.


Ele nasceu numa madrugada fria de Dezembro de 1972, quando eu acordei para uma xícara de chá e senti minha cama molhada pelo líquido da bolsa amniótica. Desse vez, não me desesperei e nem me dei ao trabalho de fazer com que Arthur se desesperasse: acordei-o com um beijo no rosto e disse 'querido, o bebê está pronto. Apronte Gui e me encontre no hospital' antes de desaparatar. Ele nasceu menos de duas horas depois, um rapagão saudável e com pulmões de aço, com olhos muito escuros e cabelos tão vermelhos que pareciam fogo em brasa.


A magia do sangue de Carlinhos se manifestou muito antes da magia de qualquer um de seus irmão. Ainda no berço, antes de conseguir balbuciar 'mamá', ele fazia seus brinquedos flutuarem a mais de um palmo acima de sua cabeça e depois fazia-os cair quando batia palmas com suas mãozinhas gordinhas, repetindo a brincadeira o dia todo e dando risadas deliciosas todas as vezes em que o fazia. O único brinquedo que ele não fazia flutuar e cair era um pequeno dragão azul de pelúcia que ele chamava de Alberto, o qual era seu brinquedo favorito e estava com ele desde o dia de seu nascimento, quando uma Sibila Trelawney com cara de quem havia bebido muito xerez inesperadamente entrou em meu quarto no hospital para um visita rápida, levando um pequeno embrulho para o recém-nascido. 'Tenho certeza de que ele vai gostar do presente', ela disse com o olhar perdido na infinitude da parede branca acima da minha cama, antes de sair de maneira tão inesperada quanto entrou.


Quando criança, Carlinhos era adorável: gorducho, tímido e desastrado, seguia o irmão mais velho pela casa com toda a adoração que um irmãozinho pode ter por um irmãozão, detonava a mobília com um olhar nas raras vezes em que ficava com raiva e, sempre que possível, estava agarrado a um bom pedaço de torta de rins ou pudim de abóbora. Gui era seu melhor amigo, e eles faziam de tudo juntos – de pescar a desgnomizar o jardim –, até o dia em que Gui foi para Hogwarts. Carlinhos ficou inconsolável por perder seu companheiro, não apenas porque não mais teria com quem brincar o dia todo, mas principalmente porque ele nunca havia vivido num mundo em que Gui estivesse a mais de 10 metros dele, e eu acho que meu pobre menino teve medo do que seria dele sem o irmão mais velho. Durante o ano que passou sem Gui, Carlinhos tentou satisfazer a saudade do irmão procurando estar perto de outros seres: aproximou-se muito de mim e de Arthur, tomou o papel de irmão mais velho dos menores e descobriu o prazer que sentia em estar com os animais e, mais do que isso, em cuidar deles.


Na véspera de seu primeiro dia em Hogwarts, Carlinhos apareceu em meu quarto enquanto eu penteava os cabelos para ir para a cama. Os pijamas verdes com estampa de azevinho, que haviam sido de Gui, estavam ligeiramente compridos em seus braços e pernas, e também um pouco apertados, mas ele parecia não ligar. Seus olhos castanhos estavam esbugalhados e assustados, e suas bochechas estavam com uma coloração um tanto quanto esverdeada, o que me fez pensar que talvez ele estivesse passando mal.


- Mãe, - ele disse com a voz fraca - eu preciso de ajuda.


- Diga, querido. O que há? Você comeu muito empadão, foi? Ora bolas, já vamos achar uma poção para isso... – eu respondi, deixando a escova de cabelos sobre a penteadeira.


- Não é isso, mãe. É que... – ele parou de falar, e eu pude ver o medo em seus olhos. Sentei na ponta da minha cama e estendi os braços para ele, que mal pestanejou antes de me abraçar com força e soltar um soluço com o rostinho enterrado no meu pescoço. – Mãe, eu estou com medo. Gui é bom em todo: tem as melhores notas, os professores o adoram, ele joga bem quadribol, tem um monte de amigos. Mas e eu? Eu nunca tive um amigo que não fosse meu irmão. Eu nunca consegui fazer nenhuma das magias que eu queria dar certo. E se eu não for bom o suficiente? E se eles não gostarem de mim, ou acharem que eu não sou mágico o suficiente e me mandarem de volta pra casa? E se os outros garotos me odiarem?


Ele disse tudo isso muito rápido, como se fosse a única chance que ele tinha de desabafar o que afligia seu coração. Quando ele terminou de falar, afastei seu rosto dos meus cabelos e disse com firmeza, olhando seus olhos cheios de lágrimas e aflição:


- Carlinhos, você é um garoto maravilhoso. Não precisa temer que os outros não gostem de você, e, se eles não gostarem, querido, o problema está com eles, e não com você. Quanto à magia, não pense nisso! Você tem mais mágica em você do que eu e seu pai juntos, até mesmo mais do que Gui. Não tema o que ainda não aconteceu, especialmente quando a probabilidade de que isso aconteça é quase nula.


Ele deu um pequeno soluço e passou a mão numa lágrima solitária que escorria de seus olhos, mas notei que ficou aliviado. Com um pequeno sorriso, ele disse baixinho, enquanto suas bochechas mudavam de verde para rosa claro:


- Mãe, e você me ajuda com outra coisa? Eu queria levar o Alberto para Hogwarts, mas não sei como fazer para que os outros meninos não vejam. Afinal, eu já sou um rapaz, fica feio levar um bichinho de pelúcia, como se eu fosse uma menininha!


Eu dei uma risada. Carlinhos ainda era tão inocente, apesar de estar sendo corroído por medos tão adultos.


- Vamos lá, eu conheço um feitiço que vai deixar o Alberto invisível para todos, menos para você. Mas vamos logo, está tarde e você tem que dormir, o dia de amanhã será longo! – eu disse, levantando e indo ajudar o menino a terminar de arrumar seu malão.


A passagem de Carlinhos por Hogwarts foi muito melhor do que o que ele previra na noite anterior ao seu primeiro dia na escola. Talvez por não ser tão dedicado quanto Gui, suas notas nunca chegaram a ser mais altas do que as do irmão, mas ainda eram boas o suficiente para que todo final de ano letivo ele levasse a medalha de melhores notas do ano. Fiquei imensamente feliz por meu filho quando, no final do quarto ano, ele foi informado pela professora McGonagall de que os professores foram unânimes em nomeá-lo o mais novo monitor da Grifinória. Na escola, Carlinhos tinha poucos amigos, mas eles formavam um grupo unido e conciso: Violet Bell, Edward Young, Louis Pierrot e Carlinhos estavam sempre juntos, desde que se conheceram no trem de Hogwarts. O mais interessante a respeito dessa amizade era que cada um deles era de uma casa, e cada um tinha qualidades que, somadas às dos outros colegas, ajudavam a formar um grupo maravilhoso – Violet era a inteligente e sagaz corvinal, Edward era o carismático e empático lufo, Louis era o ambicioso e audacioso sonserino, Carlinhos era o corajoso e fiel grifinório. Carlinhos sempre foi muito discreto em relação aos seus sentimentos. Ele nunca me confessou nada, mas eu soube de seus sentimentos por Violet Bell no dia em que ele recebeu uma carta de Edward contando para o amigo que ele e Violet tinham finalmente se acertado, e estavam namorando sério. A notícia o entristeceu de tal forma que, durante três semanas, o jovial e robusto Carlinhos mal tinha forças para levantar da cama. Apesar dessa decepção, a amizade entre os quatro não se abalou, e quando Violet e Edward tiveram seu primeiro filho, chamaram Carlinhos para ser padrinho do bebê.


Duas coisas que aconteceram em Hogwarts marcaram Carlinhos por toda a sua vida, e o tornaram o homem que ele é, fazendo-o tomar as decisões que o levaram ao lugar onde está hoje. A primeira delas foi o quadribol. Apesar de saber que Carlinhos era bom com vassouras [desde os 3 anos de idade, ele sabia pilotar uma, e aprendeu sem que ninguém precisasse ensiná-lo], eu nunca imaginei que ele seria um bom apanhador. Não tenho vergonha de admitir que meus conhecimentos a respeito do esporte mais amado pelos bruxos de todo o mundo eram pequenos, mas de uma coisa eu tinha certeza: apanhadores geralmente são os jogadores mais leves e mais ágeis do time, e Carlinhos, com todo o seu tamanho e toda a sua propensão a desastres, talvez pudesse ser um bom batedor, mas decididamente não seria um bom apanhador. Fiquei desconfiadíssima quando ele foi escolhido, no segundo ano, um dos apanhadores mais jovens dos últimos 100 anos, mas as dúvidas se dissiparam quando o vi pela primeira vez em uma vassoura: nela, seu tamanho parecia atrair o pequeno pomo-de-ouro para suas mãos, e sua tendência ao desastre se transformava numa postura elegante e agilíssima, que não dava chances para os outros times. Como apanhador do time da Grifinória, ele levou o time a ser campeão por seis vezes consecutivas, o que o fez virar uma espécie de minicelebridade na escola. Toda essa popularidade fez com que o tímido Carlinhos pudesse aos poucos tornar-se mais desenvolto e menos trapalhão, fazendo milagres com a sua auto-confiança.


A segunda coisa que mudou o meu filho foi Hagrid. Desde pequeno, Carlinhos gostava de animais. A ausência de Gui durante seu primeiro ano em Hogwarts – e talvez um pouco da sua dificuldade em se relacionar com humanos - fez com que o menino desenvolvesse uma relação muito peculiar com os mais estranhos animais: conversava com eles, cuidava deles, tratava-os como se fossem amigos queridos, e não apenas criaturas. Conhecer Hagrid e todo o amor que ele tinha pelos animais fez com que o gosto que Carlinhos tinha por eles se transformasse em amor, fez com que a curiosidade se transformasse em devoção. Contra a minha vontade, mas sem nunca esconder de mim, Hagrid e Carlinhos passavam horas na Floresta Proibida, estudando as mais variadas espécies e descobrindo coisas sobre elas que nem mesmo os livros sabiam. No final do sexto ano, Hagrid pediu minha permissão para levar Carlinhos a uma excursão pelo mundo dos animais fantásticos; eu e Arthur não tínhamos dinheiro para bancar a viagem, mas a amizade entre os dois era tão forte que Hagrid não viu problemas em usar o seu próprio dinheiro para pagar também a viagem de Carlinhos. Apesar de muito preocupada, eu não podia negar ao meu filho algo que o faria tão feliz, então autorizei a viagem. Juntos, Hagrid e Carlinhos conheceram as esfinges no Egito, os tronquilhos na Alemanha, os erumpents na África e os dragões na Romênia. Carlinhos voltou muito transformado dessa viagem: em nossa despedida, eu dei adeus para um jovem ansioso por descobrir o mundo, mas quando ele voltou, eu recebi um homem que sabia exatamente o que ele queria da vida.


Quando terminou Hogwarts, Carlinhos estava decidido a viajar para a Romênia e estudar os hábitos dos dragões. Ele havia recebido um convite de um famoso dragólogo, Nicolae Densusianu, para ser seu aprendiz. Densusianu e Carlinhos se conheceram durante a passagem de meu filho pela Romênia, e o dragólogo ficou deslumbrado pelos conhecimentos acerca do mundo animal que o rapaz conhecia. Eu era totalmente contra essa idéia: Carlinhos tivera notas excelentes e conseguiu 8 NIEM's, poderia arrumar um trabalho decente e bem remunerado como fizera Gui, e não viajar como um doidivanas para um país desconhecido, para aprender a lidar com as criaturas instáveis e assassinas que eram os dragões. Protestei durante todo o tempo que ele passou em casa depois de terminar a escola. Diariamente, usava todas as armas que eu tinha – de crises de choro a fazer os pratos mais deliciosos – para que ele desistisse da idéia maluca de ir estudar fora. Entretanto, a cada dia que passava, eu via que meus esforços eram vãos: ele não deixaria de ir para a Romênia por motivo algum, mas isso não fez com que eu me conformasse com a idéia.


No dia da viagem de Carlinhos, a família se reuniu para um último jantar antes que ele fosse para a Romênia. Com lágrimas nos olhos, eu preparei todos os seus pratos preferidos – torta de rins, empadão de frango, pudim de abóbora, sorvete de creme, batatas tostadas – para comemorar o fato de que meu filho querido estava indo embora. Todos os outros estavam felizes por Carlinhos; ele estava prestes a realizar um de seus grandes sonhos. Mas tudo o que eu conseguia pensar era que o bebê cujas fraldas eu troquei, o menino cujo dragão de pelúcia eu ajudei a esconder num malão, estava saindo de casa, para voltar eu não fazia idéia quando. Depois do jantar, finalmente chegou a hora das despedidas. Carlinhos deu um abraço apertado no pai, apertou a mão dos irmãos, prometeu escrever para Gina e, quando chegou a minha vez, não conseguiu segurar as lágrimas. Ele me abraçou com ternura com seus braços fortes, dando um leve soluço entre meus cabelos, exatamente como fazia quando ainda era um menino. Quando ele me olhou, entretanto, eu vi algo que não via em seus olhos há muito tempo: felicidade. Ele me entregou um velho bichinho de pelúcia, sujo e sem cor, deu um sorriso um pouco ofuscado pelas lágrimas e disse baixo, só para eu ouvir:


- Não fique triste, mãe, por favor. Eu estou feliz. Vou fazer o que eu gosto, e prometo que sempre que possível eu vou voltar para casa. Cuide do Alberto para mim, tá bom? Achei que ele não ia gostar de te deixar aqui sozinha, então resolvi deixá-lo com você.


Carlinhos sorriu para o resto da família, pegou um punhado de pó-de-flu, jogou na lareira e, quando eu vi, tudo o que me restava do meu querido menino era um dragãozinho de pelúcia. Mas eu não estava mais triste. Afinal, eu nunca poderia ficar triste com a única coisa que seria capaz de fazer o meu querido adorador de dragões feliz.

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