CAPÍTULO 06



POSTAGEM ATRASADA, DESCULPEM!


 


CAPÍTULO 06


 


Hermione sabia quando manter a boca fechada e os pensamentos para si mesma. Qualquer que tivesse sido a conversa secreta na sala de interrogatório, ela não deixara a tenente nem um pouco satisfeita. Seus olhos estavam furiosos e preocupados, seus lábios estavam apertados um contra o outro e seus ombros pareciam rígidos como uma daquelas tábuas de carvalho vendidas no mercado negro.


Já que Gina estava dirigindo em direção ao norte, sentada ao volante de um veículo não inteiramente confiável - e Hermione estava no banco do carona - a policial resolveu ficar na sua.


- Idiotas. - murmurou Gina, e Hermione tinha certeza de que ela não estava se referindo aos turistas que atravessavam a rua com o sinal aberto e escaparam por pouco de serem pulverizados por um maxiônibus. - Confiança uma ova!


Ao ouvir isso, Hermione simplesmente pigarreou e franziu a testa muito séria, ao ver a fumaça espessa que vinha da esquina da Décima Avenida com a rua 41, onde duas carrocinhas de lanches brigavam pelos direitos sobre o território. Fez uma cara feia quando os ambulantes atiraram as carrocinhas com força uma contra a outra. Ouviu-se um barulho de metal arranhando metal por duas vezes. No terceiro golpe, algumas chamas começaram a envolver os motores atingidos. Os pedestres começaram a se espalhar como formigas assustadas.


- Oh-oh... - foi o único comentário de Hermione, e se recostou no banco, resignada, ao ver que Gina parará junto ao meio-fio.


Gina saiu em meio à fumaça e sentiu o cheiro de carne queimada. Os ambulantes estavam muito ocupados para notá-la e continuaram berrando um com o outro, até que ela deu uma cotovelada em um deles, empurrando-o para o lado a fim de alcançar o extintor pendurado em uma das carrocinhas.


A possibilidade de o extintor estar vazio era de cinqüenta por cento, mas Gina estava com sorte. Cobriu as duas carrocinhas com uma volumosa camada de espuma, apagando o incêndio e provocando uma torrente indignada de palavras em italiano pronunciadas por um dos vendedores, e incompreensíveis exclamações vindas do outro em um idioma que lhe pareceu mandarim.


Os dois podiam resolver unir as forças para atacar a sua tenente, mas Hermione surgiu de repente, em meio ao fedor e à fumaça. A visão de uma policial fardada serviu para acalmar os ânimos e os dois briguentos se satisfizeram praguejando um contra o outro, entre olhares ferozes.


Hermione olhou para a multidão que se aglomerara para assistir ao show e franziu o cenho.


- Ei, minha gente, vamos circulando! - berrou. - Não há nada para vocês verem aqui!... Eu sempre quis falar essa frase. - murmurou para Gina, mas não obteve a resposta rápida e bem-humorada que esperava.


- Para completar o dia deles, multe-os por criarem tumulto na via pública.


- Sim, senhora. - suspirou Hermione quando Gina voltou devagar para o carro.


Dez minutos depois, e em silêncio total, estacionaram na entrada das Torres do Luxo. O porteiro andróide estava de serviço e simplesmente concordou com a cabeça de forma respeitosa quando Gina exibiu o distintivo rapidamente e foi em frente. Seguiu direto para o elevador e se colocou mais uma vez no centro da cabine cilíndrica totalmente de vidro, que subiu com rapidez até o décimo segundo andar.


Hermione continuou calada enquanto Gina apertava a campainha da porta toda branca de Audrey Morrell. Instantes depois ela foi aberta por uma morena baixinha com olhos verdes e um sorriso desconfiado.


- Sim? O que deseja?


- Audrey Morrell?


- Exato. - A mulher focou os olhos em Hermione, reparou no uniforme da polícia e levou a mão até o colar simples de pedras brancas que trazia pendurado ao pescoço. - Aconteceu alguma coisa?


- Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas. - disse Gina, tirando o distintivo e exibindo-o. - Não vamos demorar muito.


- Claro. Por favor, entrem.


Recuou um passo para lhes dar passagem, e elas entraram em uma elegante sala de estar que transmitia um ar de aconchego, graças aos tons pastéis e à distribuição simpática dos móveis pelo ambiente. As paredes estavam cobertas com pinturas em cores fortes e sedutoras.


A dona da casa levou-as até o lugar onde estavam três poltronas em forma de “U” estofadas em azul-bebê.


- Desejam beber alguma coisa? Café, talvez?


- Não... nada.


- Muito bem, então. - Com um sorriso incerto, Audrey se sentou.


Esse é o tipo de mulher que Moody escolheria, foi o primeiro pensamento de Gina. Uma figura magra, bonita, usando um vestido tubinho clássico, simples, em um tom claro de verde. Seus cabelos estavam impecavelmente arrumados e exibiam ondulações suaves.


Sua idade era difícil de determinar. Sua pele tinha aparência descansada, lisa e suave. Suas mãos eram longas e estreitas, e sua voz calma indicava bom nível cultural. Quarenta e poucos anos foi a aposta de Gina, e provavelmente muito dinheiro gasto em salões de beleza, clínicas de estética e academia...


- Srta. Morrell, a senhorita conhece um homem chamado Moody?


- Alastor. - Na mesma hora, os olhos verdes cintilaram e o sorriso se ampliou, tornando-se mais relaxado. - Sim, eu conheço esse cavalheiro.


- Como o conheceu?


- Ele freqüenta minhas aulas de pintura em aquarela. Dou aulas todas as terças-feiras à noite no Centro Cultural. Alastor é um dos meus alunos.


- Ele pinta?


- Muito bem por sinal. Está trabalhando atualmente em uma série de naturezas-mortas, e eu... - Parou de falar e sua mão voltou para o colar de pedras. - Ele está com algum problema? Está bem? Fiquei muito chateada quando ele faltou ao compromisso de sábado, mas jamais me ocorreu que...


- Sábado? A senhorita tinha um compromisso com ele no sábado?


- Era um encontro, na verdade. - Audrey afofou e arrumou o cabelo. - Nós... bem, temos alguns interesses em comum.


- E o encontro não era na sexta?


- Não, não... sábado à tarde. Almoço e depois uma matinê. - Expirou com força e tornou a exibir o sorriso. - Acho que posso confessar uma coisa a vocês, já que nós três somos mulheres... é que eu passei bastante tempo me arrumando, tentando me embelezar e estava terrivelmente nervosa. Alastor e eu temos nos visto com freqüência fora da sala de aula, mas sempre em ocasiões ligadas à arte. Aquele era para ser o nosso primeiro encontro de verdade. Eu não me encontro com um homem há algum tempo, entendem? Sou viúva. Perdi meu marido há cinco anos e... bem, fiquei desolada quando ele me deixou esperando e não apareceu. Estou percebendo agora que deve ter havido alguma razão para o seu comportamento. Vocês podem me dizer o que desejam?


- Onde a senhorita estava na sexta à tarde, srta. Morrell?


- Fazendo compras para o encontro de sábado. Levei quase o dia todo para encontrar o vestido certo, o sapato e a bolsa. Então fui ao salão para fazer as unhas e melhorar um pouco a pele. - disse, e levou a mão novamente ao cabelo. - Só para realçar um pouco a aparência, entendem?


- Moody afirma que o encontro de vocês estava marcado para sexta ao meio-dia.


- Sexta? - Audrey franziu o cenho e balançou a cabeça. - Não, não pode ser... pode? Óh meu Deus, será que eu confundi as datas? - Obviamente distraída, ela se levantou rapidamente e correu para outra sala. Voltou instantes depois com uma agenda eletrônica prateada, muito elegante. Enquanto digitava alguns dados, continuava a balançar a cabeça. - Estou certa de que marcamos para sábado, deve ser isso que marquei na agenda. Sim, aqui está... sábado ao meio-dia, almoço e teatro com Alastor. Puxa! - Olhou novamente para Gina, com o rosto arrasado e uma expressão quase cômica. - Ele veio na sexta, então, quando eu não estava? Deve ter pensado que eu lhe dei o bolo, da mesma forma que eu...


Tornou a se sentar e riu, cruzando as pernas e continuando:


- Que absurdo! E olhem nós dois aqui com o orgulho e os sentimentos feridos por não termos o bom senso de ligar um para o outro e esclarecer o que houve. Mas por que, meu Deus, ele não deixou pelo menos uma mensagem sob a porta?


- Não sei dizer.


- Orgulho novamente, imagino. E timidez. É tão difícil duas pessoas tímidas acertarem os ponteiros... - Seu sorriso desapareceu lentamente ao observar o rosto de Gina. - Mas certamente isso não é assunto da polícia.


- Moody está envolvido em uma investigação. Seria útil se pudéssemos confirmar seus passos na sexta-feira.


- Compreendo... não, não compreendo. - corrigiu-se Audrey. - O que a senhora quer dizer?


- Não posso lhe fornecer mais informações no momento, Srta. Morrell. A senhorita conheceu um homem chamado Thomas Brennen?


- Não, acredito que não.


Mas vai conhecer, pensou Gina. Depois dos noticiários da noite, todo mundo vai saber a respeito de Thomas Brennen e Shawn Conroy.


- Quem mais estava sabendo a respeito de seu encontro com Moody?


- Acho que ninguém... - Os dedos de Audrey se entrelaçaram no colar mais uma vez. - Nós dois somos pessoas muito... discretas. Imagino que tenha mencionado para a minha consultora de beleza que tudo aquilo era uma ocasião especial.


- Onde fica o seu salão?


- Bem, eu sempre uso os serviços do Classique, na avenida Madison.


- Obrigada pelo seu tempo. - agradeceu Gina levantando-se.


- A senhora é bem-vinda, mas, tenente... é tenente, não é?


- Sim. Tenente Weasley.


- Tenente Weasley, se Alastor está com algum tipo de problema eu gostaria de ajudar no que for possível. Ele é um homem adorável. Um verdadeiro cavalheiro.


- Um homem adorável. - resmungou Gina enquanto as duas iam pelo corredor em direção ao elevador. - Um perfeito cavalheiro! Sei... Cobertura! - ordenou assim que o elevador se fechou. - Quero dar mais uma olhada na cena do crime. Prepare o gravador, Hermione.


- Sim, senhora. - Com toda a eficiência, Hermione prendeu o minigravador em sua lapela impecável.


Gina usou o seu cartão mestre para desbloquear o código especial que a polícia colocara na fechadura do apartamento de Brennen. O ambiente estava às escuras, a luz externa bloqueada por telas de segurança. Deixou-as no lugar e ordenou às luzes que se acendessem.


- Tudo começou aqui. - disse Gina, franzindo as sobrancelhas ao olhar para as marcas de sangue no carpete, nas paredes e fazendo vir-lhe à cabeça a horrenda imagem da mão amputada. - Por que Brennen deixou-o entrar? Será que ele o conhecia? E por que o agressor amputou-lhe a mão? A não ser que...


Circulando pelo ambiente, Gina voltou à porta de entrada e olhou na direção do quarto.


- Talvez tenha acontecido dessa forma: o assassino é um especialista em eletrônica. Já adulterou as câmeras. Não pode se arriscar. Algum guarda sonolento pode ficar olhando as imagens e perceber sua presença antes de ele terminar o serviço, então já cuidou disso. Ele é esperto, é cuidadoso. Consegue entrar e sair deste local com facilidade. Descobre os códigos, abre as trancas, isso até deve lhe trazer um pouco de emoção, não acha?


- Ele gosta de se sentir no comando. - completou Hermione. - Talvez não quisesse pedir para entrar.


- Exato. Então ele se coloca aqui dentro por conta própria. Isso é empolgante! O jogo está para começar. Brennen aparece, vindo da cozinha, provavelmente. Acabou de almoçar. É pego de surpresa e ainda está meio zonzo por causa do tranqüilizante. Só que foi criado nas ruas e é um sujeito durão. As pessoas não se esquecem de como cuidar de si mesmas. Ele avança para o intruso, mas ele está armado. A primeira lesão pode ter sido defensiva, não planejada. Mas isso fez Brennen parar, o fez parar no ato. Há sangue em toda parte. É bem provável que um pouco desse sangue tenha respingado no intruso. Ele vai ter que se lavar antes de sair dali, mas pode pensar no problema depois. Agora pretende alcançar o seu objetivo. Aplica uma droga leve em Brennen e o arrasta para o quarto.


Gina seguiu a trilha das poças de sangue coagulado e entrou no quarto com os olhos alertas. Levantou a imagem da Virgem na cômoda de Eileen, virando-a de cabeça para baixo a fim de conferir a inscrição na base.


- É a mesma... a mesma da imagem encontrada na cena de Conroy. Guarde isso como prova.


- Isso me parece meio... não sei... desrespeitoso. - decidiu Hermione enquanto colocava a imagem de mármore no saco plástico.


- Bem, creio que a Mãe de Deus iria considerar assassinato a sangue-frio muito mais desrespeitoso. - comentou Gina com um tom seco.


- Sim, suponho que sim. - Mesmo assim, Hermione colocou a imagem no fundo da bolsa, onde não precisasse ficar olhando.


- Agora ele está com Brennen aqui, sobre a cama. Não quer que sua vítima sangre até morrer, quer que ela morra devagar. Precisa estancar aquele sangue todo. Assim, cauteriza o cotoco, de forma cruel, mas eficiente.


Circulando em volta da cama, Gina observou as impressionantes manchas cor de ferrugem e continuou:


- Ele coloca mãos à obra. Prende a vítima nas colunas da cama e pega suas ferramentas. Trabalha com precisão. Talvez estivesse um pouco nervoso ainda há pouco, mas agora se sente tranqüilo. Tudo está ocorrendo do jeito que planejara. Coloca sua platéia simbólica sobre a cômoda, para que ela tenha um bom ângulo de visão. Talvez até faça uma oração para ela.


Franzindo o cenho, olhou para trás na direção da cômoda e colocou a imagem ali, mentalmente.


- Então ele passa às atividades propriamente ditas. - continuou. - Comunica a Brennen o que pretende fazer com ele e lhe conta o porquê. Quer que ele conheça o motivo, quer que ele se mije nas calças de medo, quer sentir o cheiro da dor. Isso é um revide, e vingança é o objetivo principal. Paixão, ganância e poder fazem parte disso, mas o conceito de vingança é o que motiva tudo. Ele esperou por muito tempo até ver chegar esse momento, e agora pretende saboreá-lo. A cada vez que Brennen grita, a cada vez que implora, o assassino sente prazer. Quando tudo acaba, ele está nas nuvens. Mas se vê todo lambuzado de sangue fresco e crostas coaguladas.


Gina caminhou até o banheiro da suíte. Tudo ali brilhava como uma jóia nas paredes cor de safira, nos detalhes vermelhos como rubi das lajotas do piso, nos porta-toalhas e torneiras em prata.


- Ele veio preparado. - continuou Gina. - Deve ter trazido uma mala, ou algo assim, para as facas e cordas. Trouxe também uma muda de roupa. Pensara em tudo. Assim, ele toma uma ducha e se lava cuidadosamente, como um cirurgião. Lava o banheiro também, limpando cada centímetro. Parece um andróide de limpeza doméstica de tão competente. Esteriliza tudo. Tem todo o tempo que deseja.


- Não foi encontrado um fio de cabelo sequer aqui dentro. Nem uma célula de pele. - concordou Hermione. - Ele foi muito cuidadoso.


Gina se virou e voltou para o quarto, continuando:


- As roupas manchadas vão de volta para a mala, juntamente com suas ferramentas do Mal. Ele se veste, vendo bem onde pisa. Não queremos manchas de sangue em nossos sapatos reluzentes, queremos?... Talvez ele pare aqui por alguns minutos, antes de sair, para uma última olhada em seu trabalho. Talvez não... faz isso com certeza, pois quer carregar essa imagem com ele. Será que ele faz mais uma oração? Ah, com certeza, uma prece gloriosa. Então sai e liga para uma policial em particular.


- Podemos dar mais uma olhada nas gravações feitas no saguão, a fim de verificar a passagem de alguém com pastas ou mochila.


- Há cinco andares de escritórios neste prédio. Quase todo mundo que entra aqui carrega uma pasta. Há também cinqüenta e duas lojas. Metade das pessoas sai com mochila e sacolas. - Mexeu os ombros, tentando exercitá-los. - Vamos procurar mesmo assim. Mas MOody não cometeu este crime não, Hermione. - Ao ver que sua auxiliar permaneceu calada, Gina completou, com ar de impaciência: - Brennen tinha um metro e sessenta e poucos, era baixo, mas pesava quase noventa quilos, a maior parte deles composta de músculos. Seria difícil, mas talvez um magrelo com bunda caída como Moody conseguisse pegar Brennen de surpresa. Porém não teria força suficiente para decepar uma das mãos da vítima, cortando carne e osso com um golpe só... e foi um golpe apenas que provocou a perda da mão. Digamos que ele tenha tido sorte e conseguiu essa façanha... como você imagina que ele tenha carregado um peso morto como aquele daqui até o quarto e depois tenha conseguido levantar noventa quilos a quase um metro de altura, para colocá-lo sobre a cama? Ele não teria condições físicas... Tem mãos fortes, - murmurou, lembrando como aqueles dedos pontudos já a haviam agarrado pelo braço, deixado marcas roxas - mas não possui músculos nem braço para isso, e só está acostumado a levantar xícaras de chá e o nariz, empinando-o no ar. - Soltou um suspiro antes de continuar: - Além do mais, se vamos aceitar que ele seja esperto e qualificado o bastante para brincar de jogos eletrônicos conosco e adulterar discos de segurança, não deixaria uma imagem sua entrando pelo saguão no dia do crime. Por que não teria apagado a própria imagem, já que estava mexendo nas gravações?


- Eu não havia pensado nisso. - admitiu Hermione.


- Alguém está armando tudo isso para incriminá-lo, e estão fazendo isso para chegar a Harry.


- Por quê?


Gina fitou os olhos de Hermione por uns bons dez segundos, dizendo, por fim:


- Vamos lacrar tudo novamente e dar o fora daqui.


- Weasley, eu não vou ser de muita serventia se você me deixar de olhos vendados.


- Eu sei. Vamos lacrar tudo.


 


- Preciso de ar! - desabafou Gina, quando elas já estavam de volta à rua e o gravador de Hermione já havia sido devidamente guardado. - Preciso de comida também. Alguma objeção a pegar um pouco dos dois no Central Park?


- Não.


- Não faça esse bico não, Hermione. - avisou Gina ao entrarem no carro. - Você não fica nada atraente.


Seguiram em silêncio e conseguiram encaixar o veículo em uma pequena vaga no nível da rua, dirigindo-se então para o interior do parque, por entre as árvores desnudas. O vento estava forte o bastante para fazer Gina fechar o casaco até em cima enquanto pisavam em folhas secas. Diante da primeira carrocinha, Gina ficou em dúvida entre um hambúrguer de carne de soja e uma porção de fritas feitas com farinha de soja prensada. Acabou optando pela fritura, enquanto Hermione pedia uma saudável porção de salada de frutas.


- Dá para notar a sua criação por pais partidários da Família Livre. - comentou Gina.


- Não considero comida uma questão religiosa. - fungou Hermione, mordendo um pedaço de abacaxi - Embora considere meu corpo um templo.


Ouvir isso fez Gina sorrir. Pelo jeito, Hermione estava disposta a perdoá-la.


- Fui informada de certos fatos, os quais, como representante da lei, sou obrigada a reportar ao meu superior. Não tenho intenção de fazer isso.


Hermione olhou com atenção para um pedaço generoso de pêssego e o mordeu, perguntando:


- Esses fatos são relevantes para o caso atualmente sob investigação?


- São. Se eu compartilhar tais fatos aqui, você também será obrigada a reportá-los. Não fazer isso a tornará cúmplice de omissão depois que tudo acabar. Você estaria colocando em risco o seu distintivo, a sua carreira e, muito provavelmente, a sua liberdade.


- O distintivo é meu, a carreira é minha e a liberdade também.


- Sim, é verdade. - Gina parou e se virou. O vento despenteou seus cabelos enquanto ela avaliava o rosto sério e os olhos sóbrios de sua ajudante. - Você é uma boa policial, Hermione. Está a caminho de conseguir um distintivo de detetive. Sei o quanto isto é importante para você. Lembro bem o que alcançar o distintivo significou para mim.


Olhou ao longe, para onde duas babás uniformizadas vigiavam suas crianças, que brincavam na grama. Perto dali, um atleta que vinha correndo parou de repente ao lado da pista e começou a fazer alongamentos, apalpando a embalagem de spray de pimenta contra ladrões que trazia presa ao quadril no instante em que notou um mendigo licenciado caminhando em sua direção. Acima, um helicóptero de segurança patrulhava o local preguiçosamente, com suas hélices girando de forma monótona.


- As informações que eu recebi me afetam de modo pessoal, então fiz a minha escolha. Elas não afetam você.


- Com todo o respeito, tenente, mas afetam sim. Se está questionando a minha lealdade...


- Não se trata de lealdade, Hermione. Trata-se da lei, trata-se do dever, isso tudo... - Expirando com força, ela se largou sobre um banco. - Isso tudo está muito confuso!


- Se você compartilhar as informações comigo, isso vai me ajudar a auxiliá-la melhor na captura do assassino de Thomas Brennen e Shawn Conroy?


- Sim.


- Quer minha palavra de que tais informações ficarão apenas entre nós duas?


- Vou ter que lhe pedir isso, Hermione. - E olhou para longe enquanto Hermione se sentava ao lado dela. - Sinto remorso, mas quero que me prometa que vai deixar de cumprir o seu dever.


- Tem minha palavra, tenente. Sem remorsos.


Gina apertou os olhos com força. Alguns laços, ela bem sabia, eram formados depressa e se sustentavam com firmeza.


- Tudo começou em Dublin, - disse ela - há quase vinte anos. O nome dela era Marlena.


Gina relatou toda a história de forma resumida, porém cuidadosa, usando o jargão policial que ambas conheciam tão bem. Quando acabou, as duas permaneceram sentadas no banco. O almoço de Gina continuava intocado em seu colo. Em algum lugar ao longe, no parque, pássaros cantavam e seus gorjeios se misturavam com os ruídos do tráfego.


- Jamais imaginei Moody tendo uma filha. - disse Hermione, por fim. - E perdê-la desse jeito... não há nada pior, há?


- Imagino que não. De algum modo, porém, algo pior sempre aparece na nossa frente. Vingança. Marlena para Moody para Harry. Encaixa como uma luva. Um trevo de quatro folhas de um lado, a Igreja do outro. Um jogo de sorte, uma missão dada por Deus.


- Se ele aprontou tudo para incriminar Moody é porque sabia que ele estaria nas Torres do Luxo; adulterou os discos e tinha conhecimento de seu encontro com Audrey Morrell.


- Sim. As pessoas nem sempre são tão discretas quanto imaginam, Hermione. Meu palpite é que pelo menos metade da turma nas aulas de pintura sabia que eles estavam lançando olhares compridos um para o outro. Portanto temos que verificar todos os alunos. - Esfregou os olhos. - Preciso também de uma lista feita por Harry com os nomes dos homens que ele matou e também de todas as pessoas que o ajudaram a rastreá-los.


- Qual das duas você vai querer que eu investigue?


Gina ficou surpresa com a fisgada de lágrimas que sentiu nos olhos. Estou esgotada, disse a si mesma, fazendo força para não deixá-las escorrer.


- Obrigada, Hermione. Essa dívida vai ser das grandes.


- Tudo bem. Agora, você vai querer comer isso aí?


- Não, pode se servir à vontade. - Gina riu, balançando a cabeça e entregando o almoço para sua auxiliar.


- Weasley, como é que você vai fazer para contornar as coisas com o comandante?


- Estou trabalhando nisso. - Como pensar naquilo fazia o estômago de Gina se retorcer, ela o massageou distraída. - No momento, temos que voltar à central para pressionar Rony e ver se ele já descobriu algo sobre as ligações. Vou ter que lidar com a mídia antes que essa bomba estoure. Tenho que analisar os relatórios dos técnicos do laboratório e do Instituto Médico Legal sobre Conroy, e ainda preciso ter uma briga com Harry.


- Dia cheio, hein?...


- É, só preciso depois enrolar o comandante, e aí tudo vai ficar perfeito!


- Por que não me manda ir perturbar Rony enquanto você negocia com Nymphadora Tonks?


- Bem pensado, Hermione.


 


Gina nem precisou ir procurar Tonks. A repórter já estava na sala de Gina, sorrindo, olhando para a central de comunicações sobre a mesa. As peças dos aparelhos estavam espalhadas por toda parte.


- Seu computador pifou, Weasley?


- Hermione! Vá procurar Rony e mate-o!


- Já, já, tenente.


- Tonks, quantas vezes já lhe disse para ficar longe da minha sala?


- Nossa, dezenas, eu acho... - Ainda sorrindo, Tonks se sentou e cruzou as pernas bem torneadas. - Não sei por que você se incomoda tanto com as minhas visitas... Então, quem era Shawn Conroy e por que motivo ele foi assassinado na casa de Potter?


- Não foi na casa de Harry, foi em uma das casas que pertencem a Harry. Aliás, uma de várias centenas. - Virou a cabeça, levantando as sobrancelhas de forma significativa. - Este é um detalhe importante que certamente você vai mencionar em sua reportagem.


- Minha reportagem exclusiva. - Tonks lançou seu sorriso fulgurante. - A qual deverá incluir um pronunciamento da investigadora principal.


- Então está bem. Você vai ganhar o seu pronunciamento. - Gina fechou a porta e a trancou.


- Humm... - Tonks ergueu uma sobrancelha muito bem delineada. - Isso foi fácil demais! O que vou ter que oferecer em troca?


- Por enquanto, nada. Você apenas recebeu uma dica. A Divisão de Homicídios do Departamento de Polícia de Nova York está investigando o assassinato de Shawn Conroy, cidadão irlandês, solteiro, quarenta e um anos, atendente de bar. Seguindo uma informação anônima a tenente Gina Weasley, com o auxílio de Harry, descobriu a vítima em uma casa vazia que estava para alugar.


- Como ele morreu? Ouvi dizer que foi uma coisa horrorosa!


- Os detalhes do crime ainda não foram liberados para a mídia.


- Ah, qual é, Weasley? - Tonks se inclinou para a frente. - Dê só uma migalhinha...


- Não. Posso lhe dizer, no entanto, que a polícia está averiguando uma possível conexão entre este crime e o assassinato, na última sexta-feira, do magnata das comunicações, também cidadão irlandês, Thomas X. Brennen.


- Brennen? Minha nossa! Sexta-feira? - Tonks deu um pulo da cadeira. - Brennen está morto? Meu Deus do céu!... Ele possuía o controle acionário do Canal 75. Santo Cristo, como foi que nós perdemos esse furo? Como aconteceu? Onde?...


- Brennen foi assassinado em sua residência, aqui em Nova York. A polícia está seguindo algumas pistas.


- Pistas? Que pistas? Puxa, eu o conhecia pessoalmente.


- É mesmo? - Os olhos de Gina se estreitaram.


- Claro, nos encontramos dezenas de vezes. Reuniões da empresa, eventos de caridade. Ele até mesmo me enviou flores depois do que aconteceu comigo... você sabe, aquele lance de alguns meses atrás.


- Sei... aquele lance em que você quase teve a garganta cortada.


- Foi. - confirmou Tonks, com raiva da lembrança enquanto tornava a se sentar. - Pode deixar que eu não esqueci quem foi que me manteve inteira. Puxa vida... Brennen, Weasley. Eu gostava dele. Droga, ele tinha mulher e filhos. - Refletiu por um instante, com ar pesaroso, batendo no joelho com as pontas das unhas bem cuidadas. - Vai haver o maior tumulto na emissora quando essa história for ao ar. Aliás, vai ser um tumulto na mídia no mundo inteiro. Como aconteceu?


- No momento estamos trabalhando com a hipótese de um intruso.


- O sistema de segurança falhou. - murmurou ela. - Que absurdo, dar de cara com um ladrão barato.


Gina não disse nada, satisfeita por Tonks ter chegado a essa conclusão por conta própria.


- Existe uma ligação entre as mortes? - Seus olhos se aguçaram. - Shawn Conroy também era irlandês. Você acredita que ele teve algo a ver com o arrombamento? Os dois se conheciam?


- Vamos investigar essa possibilidade.


- Potter é irlandês.


- Também já ouvi falar nisso... - confirmou Gina com um tom seco. – Olhe Tonks, cá entre nós, e extra-oficialmente... - começou, esperando pela concordância relutante de Tonks -... Harry conheceu Shawn Conroy na Irlanda. Existe uma possibilidade... apenas uma possibilidade, de que a casa onde Conroy foi morto estivesse sendo vigiada. Ela estava toda mobiliada e você pode imaginar o luxo da mobília; os novos locatários não planejavam se mudar para lá antes desta semana. Até esclarecermos melhor algumas coisas, gostaria de deixar o nome de Harry fora disso, ou tão longe dos holofotes quanto possível.


- Não deve ser difícil conseguir isso. Todas as emissoras, e certamente a nossa, vão estar passando retrospectivas da carreira de Brennen, biografia, esse tipo de coisa. Tenho que agitar! - Ela se levantou em um salto. - Agradeço a você pela história.


- Não agradeça... - Gina destrancou a porta e a abriu. - Você vai me pagar o favor qualquer hora dessas.


E agora, refletiu Gina, esfregando a têmpora, só lhe restava torcer para conseguir blefar e enrolar o comandante com pelo menos metade do sucesso obtido com Tonks.


 


- O seu relatório está muito mal alinhavado, tenente. - comentou Lupin depois de Gina ter complementado o relatório escrito com uma apresentação oral.


- É que não temos muito material com que trabalhar até o momento, comandante. - Sentou-se, com o rosto sério e a voz suave, encarando o olhar fixo e sombrio de Lupin sem piscar. - Rony McNab, da Divisão de Detecção Eletrônica, está tentando descobrir como as ligações tiveram o sinal misturado e o local de origem das chamadas também está sendo averiguado. O problema é que ele não está tendo muito sucesso. Neville vai voltar só daqui a uma semana.


- Obtive referências muito boas de McNab junto à sua divisão.


- Acredito nisso. Até o momento, porém, ele está devagar, quase parando... essas palavras são dele mesmo, comandante. O assassino é altamente capacitado na área de eletrônica e telecomunicações. É possível que esta seja a sua ligação com Brennen.


- Mas isso não explica a morte de Conroy.


- Não, senhor, mas a conexão irlandesa, sim. Os dois se conheceram há alguns anos, pelo menos de vista, em Dublin. É possível que eles tenham continuado a se encontrar ou renovado a amizade em Nova York. Como o senhor viu pelas gravações das ligações que recebi do assassino, o motivo dos crimes é vingança. O assassino conhecia as vítimas, provavelmente de Dublin. Conroy continuou morando em Dublin até três anos atrás. Brennen tem sua residência principal aqui. Seria proveitoso solicitar a ajuda da polícia de Dublin para fazer investigações a partir de lá. Talvez haja alguma coisa que estes homens fizeram, ou algum esquema do qual faziam parte, na Irlanda, nos últimos anos.


- Harry também mantém negócios por lá.


- Sim, senhor, mas não teve contatos recentes nem com Conroy nem com Brennen. Já verifiquei. Ele não tem nenhum contato pessoal nem profissional com eles há mais de uma década.


- Vingança é um prato que às vezes leva muito tempo para ser servido. - comentou ele, unindo as pontas dos dedos enquanto avaliava Gina. - Você pretende trazer Moody para ser interrogado novamente?


- Estou avaliando esta opção, comandante. Seu álibi para a hora do assassinato de Brennen é fraco, mas plausível. Audrey Morrell confirmou o encontro deles. É bem possível que eles tenham confundido as datas. A forma com que Brennen foi morto bem como o método usado para matar Conroy não combinam com Moody. E ele não teria condições físicas para conseguir fazer aquilo.


- Não sozinho.


- Não, não sozinho. - Gina sentiu o estômago se mexer, mas concordou com a cabeça. - Comandante, vou seguir as pistas, vou investigar Moody e todos os outros suspeitos; porém, na minha opinião, Moody não faria nada que pudesse implicar ou incriminar Harry de qualquer forma que fosse. Ele é devotado ao patrão... devotado até demais. E acredito, comandante, que Harry é um alvo em potencial. Ele é o objetivo final, e por causa disso eu fui contatada.


Lupin não disse nada por um instante e ficou observando Gina. Seu olhar era direto e claro, e a voz estava firme. Imaginou que ela não reparou que suas mãos estavam cruzadas e os nós dos dedos estavam brancos.


- Concordo com você, tenente. Deveria lhe perguntar se gostaria de ser afastada do caso, mas ia apenas gastar saliva.


- Sim, senhor.


- Você vai interrogar Harry. - Fez uma pausa, enquanto ela permaneceu em silêncio. - Imagino que não haverá relatório oficial dessa entrevista. Peço-lhe apenas que tenha cuidado para não violar muitas regras, Weasley. Não quero perder uma das minhas melhores colaboradoras.


- Comandante, - disse Gina levantando-se - a missão do assassino ainda não está terminada. Ele vai tornar a entrar em contato comigo. Já deu para sentir como ele é e tenho uma idéia genérica do tipo de pessoa com quem estamos lidando, mas gostaria de fazer uma consulta com a dra. Minerva para conseguir um perfil completo, o mais rápido possível.


- Pode marcar.


- E pretendo investigar esse caso, tanto quanto possível, trabalhando em casa. Meu equipamento lá é de qualidade... superior ao que me foi disponibilizado aqui na central de polícia.


- Aposto que é... - Lupin permitiu-se dar um sorriso forçado que repuxou-lhe o rosto largo. - Vou lhe dar carta branca na medida em que puder para esse caso, durante o tempo que conseguir. Asseguro-lhe apenas que esse tempo não deverá ser muito longo. Se aparecer outro corpo, seu tempo será ainda mais curto.


- Então é melhor que eu trabalhe bem rápido.


 


 


 


N/A: UM FELIZ NATAL A TODOS. ABRAÇOS.


 


Agradecimentos especiais:


 


gilmara: É, o maluco está reprisando os assassinatos cometidos pelo Harry... Mais para frente o Harry vai explicar melhor como tudo aconteceu, mas posso adiantar que todo mundo em Dublin sabia o que ele estava fazendo, então não era nenhum segredo. Muita coisa ainda vai acontecer e o Moody vai se enrolar cada vez mais. Beijos e Feliz Natal.


 


Ana Eulina: Foi um depoimento de matar mesmo, acho que a essa altura o Moody e a Gina não se odeiam mais, ou pelo menos até o final desta historia eles pelo menos irão se respeitar um pouco mais. Beijos e Feliz Natal.


 

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