Primeiros socorros



As pálpebras do estranho fecharam-se pesadamente, e Gina sentiu o medo provocando-lhe um nó no estômago. A sonolência excessiva não era um mau sinal? E se ele entrasse em coma?


– Ei! – Sacudiu-o pelo ombro, procurando não fazê-lo mover a cabeça. – Abra os olhos. Não pode dormir agora!


– Por que não? Planeja me atirar de volta na tempestade? – perguntou o homem, desafiador, ainda mantendo aquela assustadora expressão vaga no rosto que a convencia de que não adiantaria pressioná-lo quanto à sua identidade.


– É claro que não, mas talvez você tenha sofrido uma ligeira concussão. – Pelo fato de ele estar andando e falando depois do acidente, Gina supunha que seus ferimentos fossem superficiais. Mas e se estivesse enganada? Ela, melhor do que ninguém, sabia como até uma pancada aparentemente leve na cabeça podia ser imprevisível...


Infelizmente, no que dizia respeito a obter ajuda, suas opções eram bastante limitadas. Não havia serviços de emergência na ilha, nem mesmo um clínico geral, e, enquanto durasse a tempestade, estariam isolados. Nem mesmo um helicóptero de resgate teria como chegar à ilha. Dumbledore deixara a chave de sua casa, e, portanto, ela poderia correr até lá e usar o telefone, mas não gostava da idéia de ter que deixar o homem ferido sozinho num local que lhe era desconhecido. Além do mais, a quem poderia telefonar?


Quem entre seus vizinhos mais próximos poderia ser útil naquela situação? Não adiantaria pedir ajuda a pessoas que eram tão leigas quanto ela. Sem mencionar que, naquela época do ano, não haveria muita gente a quem recorrer.


Quase todas as casas em Godric´s Hollow eram de pessoas que iam passar apenas os fins-de-semana ali, e, levando em conta a previsão do tempo, a maioria dos proprietários teria se privado do passeio semanal. Durante o inverno, o número de freqüentadores diminuía consideravelmente, ficando reduzido aos proprietários mais antigos e a uma ou outra pessoa que alugavam um chalé de vez em quando. E a grande maioria, ela só conhecia de vista.


Mas os Black estavam ali! Lembrava-se de ter visto a reluzente caminhonete deles deixando a balsa no dia anterior quando fora até o cais para se despedir de Dumbledore e buscar uma encomenda que fizera pelo correio.


Embora não conhecesse Sirius Black muito bem, pois mantinha apenas uma casa de veraneio na ilha, sabia que era um companheiro de pesca de longa data de Dumbledore e que dava conselhos ao homem mais velho quanto à sua artrite. Era, na verdade, um psiquiatra, mas não deixava de ser um médico, não é? Só porque o conhecia superficialmente não havia razão para estar relutante em procurá-lo agora. Enquanto todos respeitavam a privacidade uns dos outros em Godric´s Hollow, fato que a tornava um tranqüilo recanto, ninguém deixava de ser solidário em situações de emergência.


Gina levantou-se, mas viu-se presa em seguida ao sofá por uma mão que segurou seu pulso com surpreendente rapidez.


– Aonde você vai?


– A lugar algum – respondeu ela, libertando o pulso, espantada com o tom de desconfiança na voz do estranho. – Mas acabei de pensar em alguém que pode me dar um conselho sobre esse corte na sua cabeça. – Elevou a voz. – Bicuço, venha até aqui!


O cãozinho surgiu trotando da cozinha, carregando o osso que ela lhe dera para desviar-lhe a atenção e impedi-lo de tentar roer os sapatos do estranho.


Um riso baixo e incrédulo ecoou do sofá.


– Você vai pedir a opinião médica de um cão!


Aquele tom de indignação fez Gina abrir um sorriso e atenuou parte de sua ansiedade.


– Infelizmente, ele não tem licença para clinicar. – Ela tirou o osso da boca do cão e apanhou da estante o que restara de uma valiosa vara de pescar, segurando-a pelo cabo roído para que Bicuço a cheirasse. – Você sabe onde conseguiu isto, não é? – disse, encorajadora. – O dr. Black... Sirius... deu-lhe esta vara no Natal depois de você tê-la roubado da varanda dele diversas vezes. Lembra-se de que a leva quando Sirius vem buscar você e Dumbledore para pescar em seu barco? E ele a joga na água para você, não é?


Gina escreveu uma mensagem simples num pedaço de papel enquanto falava e o prendeu com fita adesiva à vara quebrada.


– Você gosta de brincar de buscar coisas com o Sirius, não é? – Ela fingiu atirá-la, e Bicuço começou a saltar e a agitar a cauda. Agachando-se, fitou os olhos do cão enquanto lhe colocava a vara quebrada com firmeza entre as mandíbulas. – Quero que você leve isto à casa de Sirius agora. Quero que vá buscar... Sirius! Entendeu?


– É claro que ele não entendeu – disse o estranho com desdém. – É um cão!


– Para seu governo, Bicuço é extremamente inteligente. Ele sabe o que estou dizendo, não é, garoto? Vá brincar de buscar com Sirius!


O terrier soltou um latido eufórico com o pedaço de vara de pesca na boca e deixou a sala com a costumeira velocidade rumo à sua saída particular, a abertura na porta dos fundos na cozinha.


Gina esboçou um sorriso satisfeito e passou as mãos pelos cabelos molhados antes de se virar para seu paciente.


– Você realmente acha que o cão conseguirá?


Em vez de acompanhar o movimento ascendente de seus braços, os olhos azuis dele seguiram na direção oposta. Gina observou a direção dos olhos do estranho, dando-se conta de que o suéter estava encharcado e sujo de lama e sangue. Imaginou que seu rosto estaria em situação parecida.


– Eu sei que sim. Bicuço empenha-se bastante quando acha que está numa missão – respondeu com mais confiança do que sentia. Ela própria não gostaria nem um pouco de ter que voltar para o meio daquela tempestade. – Nesse meio tempo, vou colocar roupas secas.


– Não se importe comigo. O tom zombeteiro do estranho fez com sua pele se arrepiasse.


– Apenas mantenha essa toalha de encontro à cabeça até eu voltar!


Gina teria apreciado um banho, mas a simples idéia de ficar nua sob a água quente com o estranho de penetrantes olhos verdes do outro lado da parede causou-lhe uma seqüência de arrepios pela espinha. Em vez daquilo, conseguiu trocar-se sem sequer ficar completamente nua, enxugando-se com uma toalha felpuda e colocando roupa de baixo seca. Depois de vestir uma calça de lã justa e uma camisa de flanela, passou a toalha vigorosamente pelos cabelos, penteou-os e prendeu-os num rabo-de-cavalo frouxo que permitiria que secassem sem ficar totalmente rebeldes.


Quando voltou à sala, encontrou-o deitado no sofá na mesma posição, os olhos fechados, a toalha de encontro à têmpora.


Sentiu um tremor de incerteza ao vê-lo tão imóvel, mas relaxou quando lhe notou os movimentos do peito, indicando que sua respiração estava regular. As rajadas de vento e o tamborilar da chuva no telhado encobriram o som de seus passos quando se adiantou para apanhar o pesado sobretudo dele do chão e o levou até o banheiro, estendendo-o sobre o boxe para secar.


Estava prestes a sair quando hesitou e, sentindo-se culpada, examinou cada um dos bolsos do casaco. Não havia nenhuma carteira, mas encontrou um molho de chaves e um elegante isqueiro de prata. Seus dedos fecharam-se possessivamente em torno do metal frio e polido, e ela lutou contra uma inesperada vontade de colocar o isqueiro em seu próprio bolso.


Perplexa com o anseio atípico, apressou-se em se livrar da tentação e voltou à sala, colocando o isqueiro e o molho de chaves silenciosamente na mesinha perto do sofá.


Enquanto o fazia, virou-se para o homem deitado e seu coração disparou ao vê-lo observando-a, os olhos verdes alternando-se entre os objetos na mesinha e o rosto oval dela.


Gina umedeceu os lábios.


– Oh, eu esvaziei os bolsos do seu casaco para poder pendurá-lo para secar – explicou, detestando ter que mentir. – Encontrei estas coisas.


Enquanto afastava os dedos com relutância do sofisticado isqueiro, sentiu uma ligeira aspereza no metal com seu polegar. Poderia ter sido a marca do joalheiro, mas Gina teve a inexplicável certeza de que não era aquilo que estava gravado no metal. E, como presumira, quando o ergueu de encontro à luz, viu uma breve inscrição no isqueiro de prata, tão pequena que só podia ser lida bem de perto.


– O que foi? – Apesar do ar de cansaço e confusão, o estranho estava atento o bastante para notar a mudança sutil na expressão dela.


– Há uma inscrição aqui... – começou Gina, dividida entre sua intensa curiosidade e a necessidade de negar o peculiar fascínio que o isqueiro de prata lhe exercia.


– É mesmo? – Nenhum brilho de reconhecimento passou pelo olhar dele. – E o que diz?


Gina mordeu o lábio inferior enquanto segurava o isqueiro, seus olhos verdes intensos.


– “A Harry, um homem muito especial.” – leu em voz alta, tendo certeza de que a inscrição fora feita ali a pedido de alguma mulher. – Esses dizeres lhe trazem alguma lembrança?


– Não, nenhuma – murmurou ele, a voz tão desapontada que era evidente que dizia a verdade.


Mas, ao menos, agora Gina tinha uma pista quanto à identidade de seu hóspede.


– Harry deve ser o seu primeiro nome. Soa-lhe familiar?


– Eu... Minha cabeça...


– Está doendo?


Ela deixou o isqueiro na mesinha, aliviada com a rápida batida à porta dos fundos, anunciando a chegada de Sirius Black. Metido numa capa de chuva, levava um cão de ar um tanto submisso debaixo de um braço e uma valise sob o outro.


– Oh, céus, dr. Black... o que aconteceu?


– Achei que essa fala fosse minha – disse ele, com um sorriso irônico, entregando-lhe o cão. – Bicuço está bem. Perdeu o equilíbrio com o vento e caiu quando saltou da minha caminhonete. Mas foi apenas seu orgulho que ficou ferido – explicou.


– Muito bem, Bicuço! – elogiou-o Gina, colocando-o no chão e afagando-lhe a cabeça molhada. – Tive receio de que vocês não o ouvissem latindo por causa da tempestade – admitiu ao dr. Black.


– De fato, só o ouvimos depois que ele saltou na varanda e começou a arranhar a porta dá frente. É bastante persistente, não? Sei que Bicuço não gosta muito de chuva e, portanto, logo percebi que não foi idéia dele brincar de “'buscar” no meio de uma tempestade!


– Lamento tê-lo feito vir até aqui num tempo destes – disse Gina, ansiosa, enquanto o visitante retirava a capa de chuva e a pendurava atrás da porta –, mas eu não sabia mais o que fazer.


Explicou rapidamente o que acontecera, enquanto ele lavava as mãos na pia da cozinha. Não muito alto, mas robusto, Sirius Black ainda aparentava vigor físico em seus cerca de quarenta e cinco anos. Com cabelos escuros e em alguns pontos acinzentados, rosto quadrado e barba grisalha, tinha um ar sedutor, e agora havia uma reconfortante calma em seus olhos pretos enquanto a ouvia.


– As roupas dele estão um pouco úmidas, mas não quis fazê-lo mover-se demais enquanto a cabeça ainda está sangrando. Parece não ter idéia de quem é e isso fez com que eu me preocupasse com a possibilidade de ter sofrido alguma fratura no crânio, ou algo assim.


O dr. Black enxugou as mãos numa toalha limpa que ela lhe estendeu.


– Bem, se for o caso, não há muito que possamos fazer no momento além de mantê-lo em observação até que o tempo melhore o suficiente para que seja levado a um hospital – declarou com ar grave. – Mas não nos precipitemos. É provável que não seja nada sério.


Quando abriu sua valise para pegar um estetoscópio, notou o alívio de Gina e comentou:


– Não é exatamente uma valise tradicional de médico, mas sempre carrego um bom estojo de primeiros-socorros comigo. Pode deixar o seu estranho ferido em minhas mãos, e eu lhe farei um exame minucioso.


– Sim, claro – assentiu Gina, ao compreender que ele preferia conduzir seu exame a sós. – O homem está deitado no sofá da sala, doutor, mas poderá usar um dos quartos extras se quiser mais privacidade.


– E você pode me chamar de Sirius – disse o psiquiatra, sorrindo, – Não há razão para sermos formais quando Bicuço e eu já estamos nos tratando pelo primeiro nome.


Deixando os dois homens a sós, Gina levou o cão para o banheiro, onde lhe limpou as patas enlameadas e lhe secou bem o pêlo com seu secador de cabelos. Aquilo impediu-a de ouvir o que se passava na sala, mas não demorou a aparecer quando Sirius chamou seu nome.


Ela só se deu conta de que cerrava os punhos quando ele a recebeu com seu sorriso afável e fez um gesto expansivo com as mãos protegidas por luvas descartáveis.


– Bem, ele parece ter sofrido apenas algumas leves contusões, mas você tem razão quanto ao corte na cabeça precisar de pontos. Você se importaria em ser minha, enfermeira por uns minutos?


Gina flexionou os dedos das mãos, relaxando.


– É claro que não. – Desviou o olhar para o paciente e notou que ele olhava para suas mãos, que haviam evidenciado sua tensão. O rosto dele parecia mais pálido do que quando o deixara e muito mais resguardado. – Isto é, se você não se importar...


Ele conseguiu esboçar um sorriso.


– E por que deveria? Você agiu como uma enfermeira bastante convincente até agora. Duvido que verá algo que já não tenha visto.


Aquilo não era exatamente verdade. Embora a manta de lã que estivera dobrada sobre uma cadeira cobrisse parcialmente o corpo dele agora, os ombros e o peito estavam expostos, e as calças deixadas no chão sobre o suéter preto indicavam que de fato o exame fora minucioso.

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