Um estranho



Seu grito de aviso foi abafado por um trovão, enquanto um outro raio letal atingia o chão mais acima da colina. Sob a momentânea luz incandescente, Gina foi obrigada a assistir sem poder fazer nada enquanto o topo da árvore caía, encobrindo sua vítima. No último instante, o vulto encharcado pela chuva percebera o que iria acontecer, mas não teve tempo de correr para escapar do impacto.


Ela não demorou a recobrar-se do susto, avançando pela tempestade. Mal se afastou da porta e já ficou ensopada, a chuva atingindo-lhe a cabeça descoberta, as gotas pesadas quase lhe anuviando a visão enquanto se esforçava para caminhar por entre a lama e o cascalho que escorriam pela estrada.


Enfim, conseguiu ver Bicuço, latindo incessantemente e saltando em torno da árvore caída, tentando chegar até o homem inerte que mal se distinguia sob a capa. Gritou com o cão para que não se metesse debaixo de seus pés e, ofegante, lutou contra o vento e o peso dos galhos densos.


– Ei, pode me ouvir? Você está bem? – gritou, puxando freneticamente os galhos. – Vou libertá-lo. Pode se mover?


Não houve resposta, mas não desistiu, continuando a fazer várias perguntas enquanto se esforçava para remover o obstáculo, esperando que o som de sua voz fizesse o homem recobrar os sentidos e se dar conta de que estava tentando salvá-lo.


O tronco da árvore era grosso e escorregadio, e Gina estava tendo dificuldade em segurá-lo enquanto tentava puxá-lo. Os ramos arranhavam-lhe as costas das mãos, e as folhas bateram de encontro a seu rosto quando se agachou entre as ramagens, enfiando o ombro entre dois galhos que formavam um V na esperança de conseguir erguer a extremidade mais leve do tronco e virá-lo.


Por entre a folhagem, pôde distinguir o rosto do homem com a ajuda dos ocasionais clarões no céu, certificando-se de que, ao menos, não estava de bruços e correndo o risco de se sufocar na lama.


Ela cerrou os dentes e retomou sua tarefa com urgência renovada. Bicuço meteu-se debaixo dos galhos tão logo começaram a levantar, voltando instantes depois com a barra de um sobretudo preto na boca. Enquanto o cão puxava o tecido, Gina ouviu um gemido emergindo do meio do emaranhado de galhos. O fluxo de adrenalina aumentou-lhe as forças momentaneamente, e ela conseguiu fazer o tronco rolar, tirando-o de cima do homem caído no cascalho.


Ajoelhou-se ao lado dele e pegou-lhe a mão para tranqüilizá-lo. Uma espécie de corrente eletrizante percorreu-a quando os dedos de ambos se tocaram, fazendo-a perguntar-se se o corpo dele ainda contivera alguma eletricidade do raio que caíra. Lutou contra a vontade de se esquivar, sua mão segurando a dele com força enquanto lhe observava o rosto, mal conseguindo distinguir-lhe os traços sob a chuva torrencial Não havia nada de familiar no homem. Nada em absoluto. Ela sentiu um aperto no peito, um medo indefinível dominando-a.


Procurou afastá-lo. Quem quer que fosse aquele homem, era evidente que estava desorientado e com dor, os olhos apertados contra a chuva, filetes de lama ou sangue, ou de uma mistura de ambos, escorrendo-lhe da têmpora esquerda até a lateral da face e do pescoço.


Raios rasgaram o céu, dando a ela uma conveniente justificativa para seu temor, e jogou-se sobre o torso do homem numa tentativa instintiva de protegê-lo de um novo mal.


Ao ouvi-lo soltar um gemido de dor, sentou-se sobre os calcanhares, as mãos percorrendo-lhe rapidamente a frente do casaco, o tecido grosso frustrando-lhe as tentativas de descobrir a origem da dor.


Era difícil saber como era o físico dele sob o volumoso casaco, mas, com certeza, tinha mais do que um metro e oitenta de altura, e ela soube que teria que buscar ajuda, caso o homem não conseguisse acabar de descer a colina sobre as próprias pernas.


– Pode me dizer onde está machucado? – perguntou-lhe ao ouvido.


Ele virou a cabeça na direção da voz.


– O que aconteceu? – Aquelas foram suas primeiras palavras, e, para o alívio de Gina, parecia lúcido.


– Você foi atingido por uma árvore. Precisamos sair desta tempestade e dar uma olhada nos seus ferimentos. Consegue se mover? Minha casa fica ao pé da colina.


Em vez de dar uma resposta, ele se esforçou para levantar-se, o casaco encharcado dificultando-lhe os movimentos. Gina observou-o com nervosismo, esperando que, ao se mexer, o homem não estivesse agravando um ferimento no peito ou na coluna. Teria muita sorte se escapasse daquela situação com apenas alguns arranhões. Ele endireitou as costas com um gemido, e Gina abraçou-o pela cintura para ajudá-lo, grata em vê-lo conseguir apoiar-se nas próprias pernas. Esperava que continuasse daquela maneira.


O melhor amigo do homem, satisfeito em ter cumprido seu dever canino, já voltava depressa para seus domínios, a maneira confiante como agitava a cauda sob a chuva indicando que esperava jantar como um herói. Gina indicou ao estranho que o levaria na mesma direção, apontando para o retângulo de luz projetado pela porta dos fundos, que deixara aberta.


– Acha que pode caminhar até ali adiante? – Fora uma pergunta retórica, e ficou surpresa em ouvir um riso sardônico.


– E eu tenho escolha?


Se o homem conseguia usar de sarcasmo naquelas condições, ponderou, era porque não devia estar tão machucado, afinal.


– Bem, sim, você poderia ficar parado aqui e esperar para ver se um raio não cai realmente duas vezes no mesmo lugar.


Dez minutos depois, Gina estava sentada na beirada de seu sofá, os pés descalços e gelados afundando no tapete de pele de carneiro, as roupas molhadas fumegando com o calor da lareira, enquanto limpava o sangue que escorria pela face do homem. A chuva contínua impedira que o sangue coagulasse, e ela temia que continuasse saindo em profusão do corte na têmpora.


Felizmente, ele conseguira retirar os sapatos enlameados e o pesado casaco preto antes de ter-se deitado no sofá, as demais roupas não parecendo tão molhadas, com exceção à barra das calças.


Ele se deitara de costas, os olhos fechados, a respiração um tanto ofegante, enquanto Gina se apressara para buscar uma pequena bacia com água quente, anti-séptico e toalhas, tendo-lhe colocado uma sob a cabeça molhada.


O estranho não se movera enquanto ela o examinava à procura de outros machucados aparentes e começara a limpar-lhe o rosto. No momento, não soube se ele voltara a ficar inconsciente ou se apenas queria manter os olhos fechados por causa da dor e do cansaço, mas, de qualquer modo, aquilo deu-lhe a chance perfeita para estudá-lo e acalmar os nervos que haviam aflorado desde que olhara para seu rosto na metade da colina.


Não havia nada de familiar nele para desconcertá-la agora. Nada para fazer seu coração disparar com ansiedade. Aquele era simplesmente um estranho. Um estranho bastante atraente, era verdade... e talvez tivesse sido apenas aquilo que lhe chamara a atenção.


Devia ter uns trinta e cinco anos, e, mesmo em repouso, seu rosto possuía um ar inteligente. Tinha o rosto claro, os cabelos bem pretos e bagunçados, o fogo da lareira produzindo reflexos azulados nas mechas molhadas. Ela não tivera chance de lhe ver os olhos com clareza e imaginou que também fossem escuros.


Os traços eram bonitos e marcantes, com um nariz reto e bem proporcional ao rosto, queixo quadrado, fronte alta e lábios cheios e sensuais.


Estava todo de preto, um suéter de lã vestido por dentro da calça de pregas, ambas as peças de modelagem um tanto justa, revelando um corpo forte, atlético.


Gina soltou um suspiro preocupado ao se inclinar para enxugar-lhe um novo filete de sangue na fronte.


Ele contraiu o semblante, a cabeça virando de lado, os olhos se abrindo. Ela sentiu um estranho choque ao ver que não eram castanho-escuros como pensara, mas que possuíam um tom bastante claro de verde, seu coração disparando no peito.


– Oh, é você – disse ele de cenho franzido.


– Quem esperou que fosse? – Gina continuou passando-lhe a toalha úmida na fronte. – Seu anjo da guarda?


– Não acredito em anjos.


Por alguma razão, ela não ficou surpresa com o comentário.


– Então, não deveria desafiar o perigo andando desse jeito no meio de uma tempestade. Podia ter se ferido gravemente.


– Desafiar o perigo é o que faço melhor.


– Bem, parece que não teve tanta sorte, desta vez, não foi? – Ela deixou a toalha de lado e, com todo o cuidado, afastou-lhe o cabelo que cobria o corte no alto da têmpora.


O homem soltou um gemido de dor com aquele toque em torno do ferimento aberto.


– O que está fazendo?


– Aquela árvore que caiu provocou um corte na sua cabeça – explicou Gina, perguntando-se quanto do acidente ele realmente recordava. – Eu o estou limpando para poder ver a profundidade do corte.


Ele lançou um olhar à toalha manchada de sangue.


– Parece que estou sangrando bastante.


– Cortes na cabeça costumam sangrar muito. Pelo que vejo, o seu é superficial, mas é grande. Talvez você precise levar alguns pontos. Como está se sentindo... exceto pela cabeça, quero dizer.


– Você estava me examinando de alto a baixo. Diga-me você.


Gina corou e desviou o olhar. Então, ele estivera consciente o tempo todo... Felizmente, ela não se demorara demais examinando-o. Naquelas circunstâncias, fora a coisa certa a fazer, mas, ainda assim, parecera algo demasiado íntimo. Quando tocara os músculos do estranho através das roupas úmidas, achara impossível ficar tão indiferente quanto deveria.


– Eu só estava verificando se você havia sofrido alguma fratura – defendeu-se. – A propósito, como se chama? – indagou, querendo mudar o rumo da conversa. – Quem é você? Meu nome é Gina... Gina Weasley. O que está fazendo em Godric´s Hollow? Há alguém que ficará preocupado se você não aparecer?


– Gina? – Ele pareceu confuso com a seqüência de perguntas, incapaz de se concentrar o bastante para responder alguma. Ela tocou-lhe o rosto e inclinou-se, aproximando-se mais um pouco, tentando atrair-lhe a total atenção. Ele observou-a quase sem piscar, fitando-lhe longamente os olhos castanhos de ar preocupado. – Gina... É você – disse num tom satisfeito.


Estavam de volta ao ponto de partida, percebeu ela, exasperada. O homem a observava como se esperasse que o parabenizasse pelo simples ato de reconhecimento.


– Sim, isso mesmo, sou eu, Gina. Foi o que acabei de lhe dizer. Mas quem é você?


– Quem sou eu? – repetiu ele devagar, um inquietante ar vago tomando conta de seu rosto, deixando-o inexpressivo.


– Você não sabe? – perguntou Gina, tentando não demonstrar o pânico que a tomava.


Quando o silêncio se prolongou, levou a mão aos lábios, horrorizada.


– Oh, céus, você não faz idéia, não é? – disse num sussurro trêmulo. – Não pode me dizer quem você é porque não se lembra nem sequer do seu próprio nome!

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