Tempestade



Uma rajada de vento passou por entre os penhascos na entrada da baía e soprou acima do mar revolto, atingindo violentamente as casas que ficavam ao longo da praia. No interior de seu chalé alugado, Gina Weasley sobressaltou-se quando as janelas estremeceram em protesto ao impacto.


Encolhendo-se de maneira protetora junto à sua mesa de trabalho, mergulhou o pincel num pequeno frasco de água e retocou meticulosamente um detalhe na aquarela que fazia, tentando não pensar na violência dos elementos do lado de fora enquanto se concentrava na minuciosa tarefa.


O que importava que tivesse acabado de ouvir o boletim do tempo no rádio dando um alerta sobre uma tempestade noturna em Godric´s Hollow? Apesar da aparência frágil, o chalé era, na verdade, firme como uma rocha e já enfrentara mais de cinqüenta anos de tempestades de inverno. E, de qualquer modo, Godric´s Hollow situava-se na extremidade sul do golfo, ficando menos exposta à intensidade das tempestades que se formavam regularmente no Oceano Pacifico do que muitas das outras centenas de ilhas ou mais distribuídas pela costa da cidade .


Alguns minutos depois, Gina desistiu de fingir que conseguiria realizar mais algum trabalho. O assustador estrondo de um trovão a fez parar. Tentar fazer os contornos de uma pequena folha com a ponta do pincel era impossível, pois seus nervos estavam de sobreaviso, só à espera da manifestação seguinte da natureza. Apertou os lábios cheios enquanto examinava o que acabara de fazer. Não demorou a estreitar os olhos verdes e franzir o cenho em sua insatisfação. Se continuasse, os movimentos de seus dedos tensos acabariam criando contornos inexistentes para a folha.


Um erro daqueles de botânica deixaria Neville com palpitações!, pensou, irônica, enquanto punha de lado a ilustração inacabada, e recolocava o pequeno vaso com a planta original usada como modelo, na prateleira abarrotada perto da janela. Embora ela usasse livremente a criatividade em suas próprias pinturas, os trabalhos que fazia para o botânico local exigiam rigorosa precisão. Neville Longbottom era professor na Universidade de Hogwarts e estava passando um ano na ilha, completando suas pesquisas. Morava junto à reserva e já descobrira, inclusive, uma nova espécie de samambaia nativa. Gina fazia uma série de ilustrações que ele usaria no livro que planejava publicar. Era uma tarefa minuciosa, mas ela gostava do desafio, e o que Neville lhe pagava, somado ao que recebia com outros trabalhos esporádicos, era o bastante para manter seu estilo de vida modesto.


Felizmente, havia poucas tentações relacionadas a gastos supérfluos em Godric´s Hollow. Na maioria, os moradores eram pessoas que buscavam uma vida mais simples, solitários excêntricos, ou descendentes dos primeiros habitantes, que iam trabalhar em Hogsmeade; ou apenas usavam suas propriedades durante os fins-de-semana e as férias.


Parte da ilha era uma reserva natural e marítima, e os moradores resguardavam seu hábitat relativamente intocado, submetendo-se a serviços públicos rudimentares e tolerando leis restritivas que impediam o desenvolvimento comercial. Aquilo significava que na ilha não existiam restaurantes refinados de frente para o mar, hotéis, mansões luxuosas de milionários, nem heliportos barulhentos.


A única loja, no ancoradouro das balsas, situado do lado oposto da ilha em relação a Godric´s Hollow, oferecia pouco mais do que as necessidades básicas da vida... exceto nos meses de verão, quando a população local de poucas centenas de pessoas aumentava com os turistas.


Durante os nove meses em que estivera vivendo na ilha, Gina ficara contente em descobrir que não havia nada que não pudesse comprar, trocar, enviar ou receber pelo correio. Enfim, não havia nada de que sentisse realmente falta.


Outras rajadas de vento atingiram o chalé em cheio, enquanto ela limpava os pincéis com a eficiência da longa prática e desligava a luz fluorescente antes de deixar o pequeno ateliê. Preferia usar a luz natural quando pintava, mas as nuvens densas e plúmbeas que cobriam o céu haviam tornado a iluminação artificial necessária durante a maior parte do dia.


Adiantou-se pelo espaçoso chalé de três quartos, certificando-se de que todas as portas e janelas estavam fechadas e de que não havia nenhum objeto solto do lado de fora que os ventos fortes pudessem arremessar.


Na grande tempestade que houvera anteriormente, o velho Albus Dumbledore, que morava na casa ao lado e era o senhorio dela, quase fora atingido em sua sala por um esqui que voara da varanda de alguém e atravessara a janela. Para Gina, aquilo servira como um exemplo vivo do impressionante poder da natureza.


Agora, em sua sala de estar, olhando para a praia deserta, passou os braços em torno de si num gesto protetor. A porta de correr de vidro temperado oferecia uma vista panorâmica da tempestade. Os galhos retorcidos das árvores que se enfileiravam ao longo da extensa faixa de relva antes da areia balançavam violentamente ao vento, as ramagens densas e verdejantes movendo-se em sincronismo com o mar revolto.


O ar estava impregnado com a umidade, e até as aves marinhas mais resistentes, as gaivotas, haviam procurado abrigo. A maré estava alta, as grandes ondas chegando até quase a metade da praia.


Mais ao longe, as imensas ondas que avançavam do golfo batiam contra as rochas ao pé dos penhascos, numa explosão de espuma branca que se dissolvia instantaneamente. Dentro do semicírculo da baía, o mar ficava cada vez mais agitado, os poucos barcos ainda ancorados ali balançando precariamente.


Embora ainda faltassem horas para o anoitecer, estava quase escuro lá fora, as grossas nuvens continuando a avançar do nordeste, carregando consigo lampejos de raios e uma chuva ainda distante e torrencial que preenchia o espaço entre o céu turbulento e o mar revolto até que não pudessem ser distinguidos um do outro.


A artista dentro de Gina não podia deixar de se impressionar com a intensidade da cena diante de seus olhos. Era bela, selvagem... perigosa...


Um arrepio percorreu-lhe a espinha, e estreitou mais os braços em torno de si, aliviada por ter acendido anteriormente a grande lareira de pedra que dominava a ampla sala de estar. A temperatura estivera caindo o dia todo, e, mesmo usando um grosso suéter de lã, jeans preto e botas, estremecera com o ar frio quando saíra para pegar algumas braçadas de lenha nos fundos do chalé. Agora, o reconfortante crepitar na lareira oferecia um bem-vindo contraste ao uivo assustador do vento.


Não se considerava uma pessoa supersticiosa, mas algo naquela tempestade a estava deixando mais apreensiva do que o costume. Não achava que fosse pelo fato de sempre ter detestado tempestades, ou por medo de estar sozinha no chalé. Preferia as coisas daquela maneira. Ao ter escolhido 'um lugar isolado para morar, aceitara de bom grado um estilo de vida solitário que lhe permitia dedicar-se inteiramente à sua pintura.


Nove meses antes, chegara à ilha confusa, desorientada, à procura de algo e encontrara o que acreditava ter estado procurando: um refúgio tranqüilo onde podia redescobrir sua paixão para pintar. Ali podia trabalhar durante longas horas sem interrupções, sem distrações...


Bem, sem quase nenhuma, pensou ao se inclinar para acender um abajur e deparar com um focinho úmido e escuro debaixo do sofá.


– Você também está sentindo algo, não é? – murmurou Gina, estalando os dedos de maneira convidativa. A única resposta que obteve foi o rápido recolhimento do focinho para debaixo do sofá. – Provavelmente trata-se apenas da eletricidade estática no ar – disse em voz alta para tranqüilizar a si mesma e ao cão. Seu vago pressentimento devia ser um mero produto de sua fértil imaginação.


Ao endireitar as costas, viu seu reflexo na porta de vidro e fez uma careta. Prendera os cabelos longos e castanhos num coque frouxo enquanto estivera trabalhando, mas várias mechas haviam-se desprendido, e podia afirmar que o penteado não estava dos mais elegantes.


Com as mãos nos quadris, estudou sua silhueta. No ambiente descontraído da ilha, não precisava se preocupar com o que usava. Vestir-se buscando conforto em vez de se preocupar com o estilo poupava-lhe tanto tempo quanto dinheiro. Felizmente, roupas esportivas lhe caíam bem. Aos vinte e seis anos, considerava-se dona de uma beleza comum, mas sabia que tinha um corpo curvilíneo e bem-cuidado. Fazia muitas caminhadas e andava constantemente de bicicleta pela ilha cheia de colinas, e o fato de não haver nenhuma lanchonete por perto era um grande encorajamento para manter uma dieta saudável.


Pensar em comida a fez dar-se conta de repente de que estava com fome e perguntou-se o que faria para o jantar.


Também cozinhava para Dumbledore, mas como ele estava fora, visitando a filha casada durante o fim-de-semana, ela poderia comer o que lhe aprouvesse. Não se sentia muito inclinada a preparar uma refeição, mas talvez cozinhar a ajudasse a acalmar-se. Foi até a cozinha para ver o que havia na geladeira. Talvez fizesse um lanche rápido agora e comesse algo substancial mais tarde. Não adiantaria jantar cedo demais e depois ver a noite se arrastando interminavelmente. Com os nervos à flor da pele, era provável que custasse a conciliar o sono enquanto a tempestade durasse.


Tão logo abriu a porta da geladeira, ouviu um ruído e virou-se a tempo de ver o cão preto e branco avançando naquela direção. Conseguiu fechá-la antes que ele alcançasse a prateleira mais baixa, onde havia carne.


– Não! – disse severa ao cão terrier, que parecia tremer em indignação por ter sido privado de um suculento bife. Apontou para a tigela no chão, perto da porta dos fundos, onde ainda havia um pouco de ração. – Você já comeu mais do que o bastante hoje. Vai engordar demais se comer a todo o instante desse jeito.


O pequeno cão pareceu imperturbável. Sentou-se no chão, os olhos pretos fixos com um ar faminto no rosto dela.


– Não adianta ficar me olhando assim.


Ele ergueu uma pata dianteira e soltou um uivo. Gina revirou os olhos.


– Está perdendo seu tempo.


O cão esparramou-se no chão, o focinho afundando entre as patas dianteiras como num suspiro. A cauda permaneceu inerte no chão, como se ele estivesse fraco demais para balançá-la.


Foi a vez de Gina soltar um suspiro. Ambos sabiam quem iria ceder primeiro. Já haviam feito aquele jogo muitas vezes. Resignada, tomou a virar-se para a geladeira, mas, antes que pudesse abrir a porta, houve uma rajada forte de vento e pôde ouvir as primeiras gotas de chuva tamborilando no telhado. O cão levantou-se de imediato, começando a latir e arranhar a porta dos fundos.


– Bicuço!


O cão virou-se por um instante, os dois círculos de pêlo negro em torno de seus olhos parecendo a máscara do famoso herói que lhe emprestou o nome, mas ignorou o tom autoritário na voz dela e continuou saltando diante da porta fechada, latindo furiosamente. Gina quase preferia vê-lo escondido debaixo do sofá.


– Pelos céus, Bicuço, acalme-se. É apenas a chuva, – Abriu a cortina da cozinha para espiar pela janela enquanto falava, e, então, viu o que o cão devia ter farejado um vulto na escuridão.


Alguém descia pela estrada estreita e sem saída que servia de único acesso para veículos até a baía. Era uma estrada íngreme e sinuosa que fazia uma curva acentuada ao pé da colina, logo atrás do chalé dela, e depois prosseguia até a área de estacionamento público ao final da praia.


Gina esforçou-se para enxergar pelo vidro da janela, onde as gotas de chuva escorriam em profusão. Usando um sobretudo e curvado para se proteger do vento forte e da chuva, o vulto alto poderia ser de um homem ou de uma mulher.


Evidentemente não era um de seus vizinhos. Um morador estaria caminhando pelo meio da estrada, a despeito do risco da aproximação de algum veículo, em vez de usar o perigoso acostamento. Mesmo com o tempo seco, a estrada, que não era pavimentada, costumava ser escorregadia nas laterais, onde o cascalho solto se amontoava. Ela só esperava que o visitante não caísse na valeta que havia ao longo do acostamento.


– Esqueça, Bicuço. Ninguém está vindo nos visitar com um tempo desses – disse em meio a cacofonia de latidos. – Deve ser alguém a caminho da casa dos Black ou dos Malfoy.


Os latidos cessaram abruptamente, e Gina ficou contente e surpresa com aquele ato de obediência instantânea sem precedentes. Sua alegria, porém, só durou um momento, pois não demorou a ver Bicuço saindo em disparada pela abertura para cães ao pé da porta dos fundos.


– Droga, Bicuço! – Pela janela, pôde vê-lo passando rapidamente pela caixa do correio e avançando até a estrada. – Oh! Pelos céus! – Gina abriu a porta para chamar o cão de volta, e, ao fazer isso, duas coisas aconteceram simultaneamente.


Um raio de luz ofuscante explodiu no céu, atingindo a árvore mais alta à beira da estrada numa profusão de faíscas, e a chuva tornou-se subitamente torrencial.


Desorientada por alguns instantes pelo raio e o trovão ensurdecedor que se seguiu, ela não se deu conta do perigo em princípio. Mas, então, em meio ao aguaceiro, viu a árvore fumegante se partindo, apenas uma parte do tronco permanecendo no lugar. Foi tombando devagar, o emaranhado de galhos e ramagens avançando na direção do vulto que caminhava pela estrada.

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