Capitulo 6



Que homem complexo era ele! Um lado de sua natureza era apaixonadamente russo, ansiando pela vingança que seu orgulho exigia e decidido a consegui-la a qualquer custo, mesmo prejudicando outras pessoas.


E, no entanto, havia nele outro lado quase que completamente oposto: o lado que virá aquela manhã. Mas não ia cometer o erro de subestimar nenhum deles, decidiu, com um certo tremor. Não tinha condições de escapar e, mesmo que tivesse, já era tarde demais. No fundo, sabia que o que ele lhe contara a respeito dos planos de seu pai era verdade, e ele faria com ela exatamente o que dissera e nada o desviaria do caminho traçado. E quando essa sede estivesse satisfeita...


Gina arrepiou-se, gelada, lutando para aceitar o que acontecera e o que seria sua vida, dali em diante. No convento, a vida fora calma e tranqüila, não exigindo dela mais que obediência. Mas deixara de ser criança e de algum modo teria que traçar seu próprio caminho. Os planos de Harry para ela eram algo que teria que agüentar até conseguir escapar... E quando isso acontecesse...



Mordendo o lábio inferior, Gina se perguntou o que seria dela, provada bruscamente da aceitação passiva que já se tornara uma segunda natureza. Teria que achar um emprego. Centenas de garotas da sua idade sobreviviam sozinhas. Centenas tinham casos amorosos com outros homens, fora do casamento. Centenas aprendiam a se cuidar, como ela teria que aprender.   


Sentir pena de si mesma não levaria a nada.


 


   O café estava frio quando terminou de se lavar e vestir. Ao descer, encontrou a cozinha, dando com Pierre em pé junto a pia, descascando batatas. Ele levantou a cabeça com ar cauteloso, e Gina percebeu que Harry devia tê-lo prevenido a seu respeito.



  A cafeteira estava sobre a mesa, e ela a pegou, imitando o gesto de encher a xícara. Entendendo, Pierre tirou-a das mãos dela e encheu-a de água e café, colocando-a pra funcionar. Em seguida, abriu a geladeira e indicou o conteúdo. Vendo que ele achava que ela queria comer alguma coisa, Gina meneou a cabeça, incapaz de suportar a idéia de comida.



  Quando terminou o café, Gina foi para o pátio, onde se pôs a vagar de um lado para o outro. Um estábulo ocupava um dos lados, mas as baias estavam vazias. Olhando por cima do muro, viu a água do fosso brilhar lá embaixo, com vários patos mergulhando à procura de alimento. Estava quente o bastante para lhe dar vontade de se sentar ao sol, mas sentia-se tensa demais para relaxar.



Contra a vontade, voltou ao château e ficou vagando de cômodo em cômodo. Durante vários minutos esteve a estudar o retrato de Tanya, dirigindo-se depois a biblioteca, atrás de algo para ler.



   Por acaso, pegou Guerra e paz de Tolstoi, que ainda não lera, na esperança de esquecer seus medos e a si mesma ao longo da historia.



   À uma hora, Pierre lhe trouxe um almoço leve – omelete, café e frutas de sobremesa. O cheiro fez com que percebesse o quanto estava faminta, e a omelete estava tão boa quanto parecia. Quando levou a bandeja para a cozinha, Pierre olhou seu prato limpo com ar de aprovação.


 


   Passou o resto da tarde lendo, a tensão aumentando cada vez mais, até não ser mais capaz de fingir que o livro prendia sua atenção. Fechando-o, foi até a janela e olhou para o lago. Os patos continuavam a mergulhar na água verde-clara e de repente, inquieta ela foi à cozinha buscar pão para alimenta-los, pensado que isso poderia distrair sua mente, ainda que só por alguns momentos.


Não viu sinal de Pierre, mas encontrou a cesta de pão e tirou um pedaço, dirigindo-se à pequena abertura que notara no muro do pátio. Por vários minutos divertiu-se com as cabriolas das aves, chegando a sorrir ao ver as tentativas desajeitadas das mais novas.



   O som forte de madeira e maquinário se movendo chamou sua atenção, e voltou-se a tempo de ver o carro de Harry entrar no pátio. Ele desceu, hesitante ao dar com ela, para depois chamá-la com voz áspera, a testa franzida numa expressão que parecia de zanga.



   Automaticamente, Gina entrou em pânico e recuou enquanto ele avançava para ela. Encolhendo-se instintivamente, não percebeu quanto estava perto da beirada do muro e escorregou, perdendo o equilíbrio. Foi de encontro com à água fria do fosso, que encheu sua boca e narinas, silenciando seu grito apavorado. Sabia nadar, mas o choque de cair fez com que se assustasse e começasse a lutar ao sentir-se agarrada pelo braço de Harry e ver as feições zangadas surgirem à sua frente.


 


   Mais tarde, lembrou-se de ter pensado que Harry queria afogá-la, embora logo percebesse que isso era impossível. Afinal, ele não poderia exibi-la na frente de seu pai se a afogasse. Mas na hora essa idéia fez com que lutasse contra ele, a consciência indo e vindo até sentir as pedras aquecidas pelo sol debaixo do seu corpo.



   Harry estava a seu lado, com as roupas encharcadas e a boca apertada, visivelmente contrariado. Murmurou algo em russo, enquanto se inclinava para pagá-la, e Gina viu Pierre junto dele. Harry deve ter lhe dito algo,porque o homem apressou-se em voltar para a casa.



  - Mon Dieu! – Harry exclamou, quando levava Gina para dentro. – É assim que você pensa, sua tola? A morte antes da desonra?



  Gina queria dizer-lhe que a queda fora acidental, que se assustara com o ar de fúria dele, mas não conseguiu.
 


- É a segunda vez que tenho que lhe dar banho, ma petite – ouviu-o dizer pouco depois, enquanto colocava de pé, no banheiro. – Reconheço que o papel de babá não é totalmente sem atrativos, embora desta vez...


  Gina estremeceu, recuperando a consciência por completo e percebendo como estivera perto de morrer.


 


-Eu não me joguei...


  Harry estava de costas para ela, enchendo a banheira de água, as roupas molhadas agarradas ao corpo alto e forte. Gina mordeu o lábio. O que levara a dizer aquilo? Vontade de mostrar que não era bem a criança fraca e tola que ele pensava?



  - Foi um acidente – acrescentou com voz rouca. – Eu estava dando pão aos patos, você me assustou e...


   -... e você preferiu cair no poço a agüentar minha companhia? Deus do céu, mas você é tão criança! E está decidida a me colocar no papel de vilão. Não lhe passou pela cabeça que poderá viver sua própria vida quando se livrar de mim, em vez de ter a vontade de outra pessoa imposta a você? Porque, não se engane, Gina, como esposa de um Malfoy você não teria escolha. Você não tem ambição? Não tem desejos próprios? Não quer nada da vida? – ele perguntou com impaciência, praguejando baixo antes de endireitar o corpo e virar-se para ela. – Você é um ser humano inteligente, Gina. É capaz de me dizer, com toda honestidade, que seria feliz com o tipo de vida que Malfoy pode lhe dar?



   Harry suspirou, parecendo cansando, de repente, e Gina refletiu que ele devia ter levado um susto enorme ao vê-la cair. Afinal, sua morte o privaria de obter vingança. Não era de admirar que tivesse lutado tanto para salvá-la.



  - Tire essa roupa molhada, Gina. Pierre está lhe fazendo uma tisane. Pensei em jantarmos fora esta noite, mas desse jeito... – Fitou-a com ar de dúvida.


Gina agarrou-se ao que ele lhe dissera como um naufrágio ao salva-vidas. Sem sombra de dúvida, preferia jantar fora a ficar ali, sozinha com ele, odiando a hora em que teria que ir para a cama.
 


- Não... Por favor, eu gostaria muito de sair.





   Harry estudou-a por um momento, depois deu de ombros e olhou com desgosto para a calça encharcada que vestia. Sem querer, Gina fez o mesmo, fascinada pelos músculos potentes tão bem delineados pelo tecido grosso.
  


- Entre no banho, Gina. – ouviu-o dizer, num tom inesperadamente duro. – E não demore muito. Posso sentir vontade de lhe fazer companhia, e algo me diz que você não está pronta para esportes aquáticos... ainda.



  Com o rosto em chamas, Gina olhou para a porta, tremendo sob o impacto da sensualidade que havia por trás daquelas palavras. Por um instante, pensou que fosse ficar. Mas depois de olhar para a água ele se moveu na direção da porta, dizendo aspereza:



  - Duvido que dê para você se afogar nessa água, mas em dez minutos eu volto. Por isso, se não quer que eu lhe faça companhia, é melhor se apressar.
 


 Quando Harry voltou, usando um roupão e enxugando os cabelos úmidos, Gina estava sentada numa cadeira, enrolada numa toalha e tomando a tisane que Pierre trouxera. Observando-o, ela sentiu uma estranha emoção. Um sentimento frágil e hesitante, que fez seu pulso se acelerar, esquentando seu corpo. Algo tão inesperado que ela recolocou a xícara no lugar e fixou os olhos num ponto à frente, sem nada enxergar.
 


- Gina? Gina, você está bem? – A voz impaciente de Harry interrompeu seus pensamentos.


 


 Harry ergueu os olhos, percorrendo as pernas dele, bronzeadas e cheias de pêlos escuros. Sentiu uma vontade inexplicável de estender a mão e tocá-las, de descobrir se aqueles pêlos seriam tão ásperos de encontro a seus dedos quanto tinha sido de encontro a suas coxas, na noite anterior. Mas logo atrás desse desejo veio a percepção do que estava pensando., e uma exclamação abafada escapou-lhe dos lábios. Apertando os punhos com força, forçou-se a fitar Harry, para ver se ele percebera sua reação.
  


Ele a olhava por entre as pálpebras semicerradas, com um leve sorriso, e Gina sentiu o rosto queimar.
  


- Coitadinha! É tudo tão confuso e doloroso, não é? Mas nem sempre será assim. Beba a sua tisane e descanse por uma hora. – Viu-a olhar para a cama e suspirou, continuando com um tom mais suave: - Que bicho papão você faz com que eu me sinta, criança! Mas não precisa olhar para a cama como se fosse um lugar de tortura. Acredite em mim quando lhe digo que logo pensará nela como um lugar de prazer.
 


 Gina teve certeza de que Harry ria dela. De imediato as emoções que vinha sufocando durante todos aqueles anos explodiram numa onda. Com o rosto corado e os olhos tempestuosos, ela se virou para encarar seu carrasco.


 


 


  - Eu nunca vou ter prazer com você – gritou furiosa, presa a uma raiva que fazia ter vontade de arranhá-lo até tirar sangue, ou qualquer outra coisa que varresse do rosto dele aquele sorriso frio e malicioso. – Você acha que sabe tudo, mas está redondamente enganado. Não importa o que me faça, não importa a resposta que consiga de meu corpo, minha mente sempre vai odiá-lo. Você fala do meu pai me usar como mercadoria, mas é exatamente isso que está fazendo.
 


- Você está ficando histérica. – Harry replicou com frieza. – Se não parar vou...



  -... me bater? – Gina provocou com amargura, os olhos brilhando de raiva e sofrimento.



   De repente não mais zangado, Harry meneou a cabeça, sorrindo.



   - Não, chérie, você sentiria o peso da minha mão em outra parte de sua anatomia. E é claro que depois eu estaria mais que disposto a curar a parte machucada com beijos... se você me pedisse.


  O olhar chocado de Gina mostrou a Harry que tinha vencido a batalha, e ela foi forçada a admitir para si mesmo que, em qualquer briga entre os dois, a vantagem seria sempre dele.



  A sós, Gina levou as mãos ao rosto corado, que ainda traía sua reação chocada ao comentário provocante e ao brilho divertido que vira nos olhos dele, enquanto falava. Harry era um demônio, um demônio frio e detestável, e ela o odiava!


 


 


 


 


(...)


 


 


 


 


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