Capítulo Oito
Capítulo Oito
- Não quero que vá esta noite.
- Sabe que tenho de ir. - Eve continuava, amargurada e teimosa, encarando o marido. - É minha peça, elenco e produção. Não tenho escolha, Alex.
- Podemos arranjar uma desculpa. - Ele fitou a esposa, em um vestido azul escuro, que planava sobre os ombros e serpenteava até os tornozelos. Os cabelos, apanhados para trás, caíam em cascata sobre um dos ombros como ébano. Mesmo depois de todos aqueles anos, o simples ato de fitá-la fazia-lhe a pulsação acelerar. - Sabe o quanto pode ser perigoso. Com a informação de que dispomos agora, podemos estar certos de que haverá um incidente esta noite. Não quero vê-la envolvida nele.
- Estou envolvida. - Eve estava assustada. Desde que Rony lhes contara que recebera uma dica de que haveria confusão na estréia da peça, seus nervos estavam em frangalhos. Sim, estava temerosa, mas não menos determinada. Cruzou o aposento até o espelho chanfrado sobre a cômoda como se verificar o penteado naquele momento fosse crucial. - Eu escrevi a peça, a produzi, e, mais importante do que tudo isso, - continuou, antes que o marido a interrompesse - meu lugar é naquele teatro esta noite, pois sou sua esposa.
O fato de os argumentos de Eve serem válidos não significava nada. Queria-a no palácio, segura e intocável. Seu coração só ficaria em paz se soubesse que a esposa estava ali, nos aposentos que ela mesma decorara, guardada no lugar que fora o lar de sua família por gerações. Nada poderia lhe acontecer ali. E qualquer coisa poderia lhe suceder lá fora.
- Meu amor, Rony quase nunca se engana. Se afirmou que haverá confusão esta noite, eu a quero longe dela. A gravidez é um ótimo motivo para inventarmos uma desculpa. Sei que a peça é importante para você, mas...
- Sim, é. - interrompeu-o Eve. - Mas você é mais importante.
- Então faça isso por mim. Fique em casa esta noite.
Ela ergueu a cabeça, tentando controlar os nervos e a têmpora.
- Alexander, ficaria comigo?
- Se fosse possível, sim. - A impaciência o levou a deslizar uma das mãos pelos cabelos. Aquele era um artifício que Eve costumava usar e que o deixava sem argumentos. - Não posso me trancar toda vez que há um rumor relacionado a Deboque.
- Por Cordina. - declarou ela em tom calmo. - E Cordina agora é meu país, também.
- Eve. - Alex pensava amá-la tanto quanto era possível amar. Porém, todos os dias aprendia que aquele sentimento se intensificava. - Você é o que há de mais precioso para mim no mundo. Quase a perdi uma vez.
Ela cruzou o aposento em direção a ele, sabendo que tinha de dar o primeiro passo e o primeiro toque. Quando ambas as mãos do marido se encontravam nas dela, Eve o fitou nos olhos.
- E eu a você, Alex. Vou me sentar a seu lado no camarote, onde é meu lugar.
Do lado de fora da porta, Gina escutava a conversa claramente. Eram momentos como aquele que tomavam difícil pensar no que estava fazendo, ou no que teria de fazer, como apenas mais um trabalho. Do outro lado da porta, estavam pessoas às quais se afeiçoara. Os Bisset não se limitavam mais a nomes e símbolos, tomaram-se seus amigos. Após dez anos de lances perigosos, sabia o quanto era arriscado fazer amizades.
Fechou os olhos e inspirou profundamente antes de bater.
- Entre! - Era a voz de Alex, demonstrando impaciência.
Gina abriu a porta, porém não ultrapassou a soleira.
- Desculpe. Eu os estou incomodando?
- Claro que não. - Com um afeto que fazia parte dela, Eve sorriu e gesticulou para que ela entrasse. - Vejo que está pronta para o evento. - comentou, sentindo uma pontada de pesar pelo vestido bege e o austero penteado da amiga. Esperava que em pouco tempo pudesse convencer Gina a suavizar a própria imagem. Aquela noite, no entanto, tinha problemas mais prementes em que pensar. - Estávamos prestes a descer.
Gina observou Eve tomar a mão do marido mais uma vez.
- Pensei que precisasse de ajuda.
- Não, está tudo bem. - Porém, a nuvem de preocupação nos olhos de Eve não se dissipou. - Gina, não quero que se sinta obrigada a nos acompanhar, sabendo que haverá a possibilidade de um... incidente. - começou a princesa.
- Bem, poderia ser mais confortável para você ficar.
- Claro que irei. - Com o odioso segredo guardado em seu íntimo, mexeu no agasalho que lhe cobria os braços. - E acho que tudo sairá bem. Se não precisa de mim, vou descer.
- Por favor, não falemos mais sobre isso. - Manifestou-se Eve, quando a amiga fechou a porta. - Vamos desejar boa-noite a Marissa, antes de partirmos.
- Eve. - Alexander a puxou para si. Podia sentir o abaulado discreto, onde outra criança se desenvolvia. - Eu a amo.
- Falar é fácil. - murmurou ela, forçando uma risada. - Prometa que provará mais tarde, depois do espetáculo. - Ele deixou o queixo descansar sobre os cabelos macios.
- Tem a minha palavra.
Harry já estava aguardando no hall principal. Mesmo com a distância que os separava, Gina podia sentir a impaciência dele. E a tensão, pensou ela, que os trajes de noite elegantes não conseguiam disfarçar. Ele estava procurando confusão, percebeu, até mesmo a esperava.
- Ai está você. - Embora Harry sorrisse, a mente já se encontrava na noite que teriam pela frente. Em um gesto instintivo, tomou-lhe a mão, segurando-a quando ela alcançou o pé da escada. - Não precisa ir conosco, Gina. Ficaria mais feliz se não fosse.
O sentimento de culpa a atingiu tão prontamente que a fez apertar a mão do príncipe antes que fosse capaz de evitar.
- Agora você falou como Eve. - redargüiu ela em tom jovial. - Quero estar lá. Uma vaga informação de fonte anônima não é razão para perder uma noite no teatro.
Harry tocou a pérola na delicada orelha.
- É isso que chamamos de determinação britânica?
- É o que se costuma chamar de bom senso.
- Seja qual for o nome, quero que se mantenha por perto. Haverá seguranças suficientes para nos proteger, mas prefiro mantê-la ao alcance dos meus olhos.
Antes que ela o pudesse impedir, Harry a estava guiando na direção das portas.
- Eve e Alexander estão quase prontos. Disse que esperaria por eles.
- A segurança prefere que nos dividamos. - O príncipe cumprimentou Claude com um aceno de cabeça. - Irá comigo. Meu pai irá atrás de Alexander e Eve.
- Está bem. - Gina saiu para a noite estrelada, calmamente portando a arma calibre 22 que se encontrava dentro da bolsa de contas que carregava.
Todas as entradas haviam sido vendidas. Muito antes de as cortinas se abrirem, os acentos estavam todos ocupados, de modo que o burburinho da conversação se erguia até o camarote real. Aplausos entusiasmados explodiram à entrada dos Bisset.
Ao fundo, enquanto as reverências eram feitas, Gina prendeu a respiração, estudando o mar de rostos.
Se Deboque estivesse ali, sabia que o teria encontrado.
- Foram feitas duas varreduras no Centro. - murmurou Rony em seu ouvido. - Não encontraram nada.
Gina prestou atenção e se acomodou em seu assento, enquanto a cortina se erguia.
A peça demonstrou ser tudo o que Eve esperava, embora Gina duvidasse que algum dos ocupantes do camarote dedicasse total atenção ao drama e à emoção no palco. Por mais de uma vez, fitou Harry de soslaio para encontrá-lo vasculhando a platéia.
Deboque não estava presente. Gina não o esperava. O que quer que acontecesse, e quando acontecesse, ele estaria longe do local da ação, com um álibi tão sólido quanto os rochedos de Cordina.
Então, só lhes restava esperar. E observar.
Quando as luzes se acenderam para o primeiro intervalo, Gina pôde quase sentir Eve relaxar. Um alarme falso? Não. Embora preferisse que a princesa acreditasse naquilo, não era ingênua a tal ponto. Sentiu uma comichão entre as escápulas. Vaga, porém persistente. Alguns chamariam aquilo de pressentimento. Outros, de instinto. Gina estava no jogo há tempo suficiente para saber quando esperar e quando seguir em frente.
- Gostaria de beber algo?
Ela se virou para Harry, pronta para recusar. Por motivos pessoais, ela o queria a seu alcance.
- Sim. - ouviu-se responder, sabendo que aquela seria mais uma farsa. - Adoraria algo gelado.
No instante em que ele transpôs a porta atrás deles, Gina inclinou-se para Rony.
- Vou explorar o local.
- Se fosse você, ficaria... estou com um pressentimento. - Rony o sentia nas entranhas.
Não permitiria que Hermione se afastasse mais do que a distância de um braço.
- Eu também. Deboque mandou-me permanecer na platéia. Portanto, vou até os bastidores.
Rony fez menção de objetar, porém Hermione tomou-lhe a mão, dando a Gina os poucos segundos de que necessitava para escapar. Encaminhou-se em direção à sala de estar feminina até se certificar de que ninguém a observava.
Com a destreza da longa experiência, esgueirou-se para a escada e começou a descer. Dispunha de apenas dez minutos, pensou, consultando o relógio de pulso, antes que alguém sentisse sua falta.
Havia muita troca de roupas e tensão nos bastidores, quando Gina cruzou o corredor. A maioria dos atores se encontrava por demais ocupada para notar sua presença. Nada parecia fora do lugar ou de sincronia. Ainda assim, a comichão entre as escápulas persistia.
A porta do camarim de Chantel estava meio aberta. A atriz percebeu Gina, hesitou e então a chamou.
- Lady Gina.
Por não lhe restar outra alternativa, ela parou em frente à porta.
- Srta. O’Hurley. Sua Alteza não conseguiu descer, mas gostaria que soubesse que está maravilhada com sua performance.
- Obrigada. - Chantel descansou o lápis de maquiagem que utilizava para realçar os olhos. - E o que achou da peça?
- Emocionante. Sua interpretação de Julia é de tirar o fôlego.
Anuindo, Chantel se aproximou dela. A maquiagem exagerada necessária ao teatro só a tomava ainda mais exótica.
- Nasci no show business. Está no sangue, se compreende o que quero dizer. E sempre achei que um inveterado ator reconhece outro facilmente.
Extremamente fria e exibindo um sorriso, Gina a encarou.
- Suponho que tenha razão.
- Talvez seja por isso que não estou certa se gosto de você. Sei apenas que não confio em você. - Chantel ajustou os punhos do vestido que usaria na cena seguinte. - Minha afeição por Harry é antiga. Uma mulher como eu conhece poucos homens a quem pode chamar de amigo.
Havia algo forte e honesto na mulher que a encarava. Gina lançou mão de toda a sinceridade que podia.
- Posso lhe garantir que Harry é um homem especial do qual gosto muito.
Chantel se manteve em silêncio por alguns instantes.
- Não sei por que, mas acredito em você. - E meneando a cabeça: - Não consigo entender por que está fazendo o papel de Jane Eyre, mas suponho que tenha suas razões.
- Está na hora, Srta. O' Hurley. - gritou um assistente.
Chantel conferiu a própria imagem mais uma vez no espelho, e erguendo o queixo em um ângulo diferente transformou-se em Julia.
A voz adotou o súbito arrastar e eco do sotaque dos sulistas, enquanto se voltou para passar por Gina.
- Querida, - começou como que representando - devia saber que bege é a cor que menos combina com você. - Em seguida, piscou, e caminhou para os bastidores.
Gina deixou escapar um longo suspiro. Não vira nada fora do lugar, ninguém que não pertencesse ao local e levara um sermão. Seu disfarce não era tão prefeito quanto pensara.
Caminhou de volta ao longo do corredor, girou em direção à escada e começou a subir. Ouviu os aplausos quando a cortina se ergueu.
E, então, escutou o som distante, o estrondo de uma explosão.
As luzes se apagaram.
Gritos assustados reverberavam, enquanto o teatro mergulhava na escuridão.
De onde se encontrava, o alarme não podia ser ouvido. No camarote real, uma parede formada por seguranças empunhando armas se formou.
- Fique onde está. - ordenou Rony. Apertou a mão de Hermione de modo confortante. - Dois de vocês venham comigo.
Ele se moveu pelo corredor com os dois seguranças atrás dele.
- Precisaremos de luz. - Xingando, enfiou a mão no bolso à procura de um fósforo. - Precisaremos de alguém que suba ao palco e oriente a platéia a não entrar em pânico. - Enquanto acendia o fósforo e lançava uma luz fraca e bruxuleante contra a própria face, a voz de Chantel ecoou calma e firme nos alto-falantes.
- Mesdames et messieurs, pedimos para que se mantenham sentados por alguns momentos. Estamos tendo algumas dificuldades com as luzes. Porém, se quiserem aproveitar a oportunidade para conhecer melhor seu vizinho...
- Boa garota! - murmurou Rony, enquanto escutava as risadas nervosas. - Vamos descer à sala de força.
Gina não voltara. Aquilo continuava a ecoar na mente de Harry, enquanto escutava as palavras de conforto que o irmão dizia à esposa. Encontrava-se lá fora em algum lugar, sozinha, no escuro. Sem hesitar, dirigiu-se para a porta.
- Alteza. - A figura gigantesca de um segurança assomou à frente dele. - Se puder se manter sentado.
- Deixe-me passar.
- Harry. - a voz do pai cortou a escuridão. - Por favor, sente-se. Isso acabará em minutos.
- Gina não está aqui. - Houve um breve silêncio.
- Rony dará conta da situação.
Havia o dever e a honra que nunca questionara. E, no presente, existia o amor. Harry disparou pela porta à procura de Gina.
Ela empunhava o revólver enquanto permanecia parada na escadaria.
Não se movia, quase não respirava, enquanto decidia se subia para verificar como estavam os Bisset ou descia para conferir a energia elétrica. Se tivesse sido uma bomba, poderia facilmente haver outra.
A mente lhe dizia que os Bisset estariam bem protegidos e seu trabalho seria procurar a fonte do problema. O coração queria apenas se certificar da segurança e bem-estar de Harry. Seguindo-o, Gina subiu a escada. Escalou não mais do que três degraus quando ouviu o som de uma porta se fechar no andar térreo.
Com os dedos em torno do gatilho, apontou o cano da arma e começou a descer de novo. Viu o reflexo da lanterna antes de escutar os passos cautelosos e baixos. Como uma sombra, Gina se recostou em um canto e esperou.
Reconheceu-o do museu. Estava trajado com o uniforme azul escuro da equipe de manutenção e carregava uma pequena caixa de ferramentas. Gina quase aprovou o homem: qualquer pessoa que o visse presumiria que ele fora designado para sanar o problema elétrico.
O flash de luz passou por seus pés antes que ela desse um passo à frente e encostasse a arma no flanco do homem.
- Fique quieto. - ordenou em voz baixa. - Peço-lhe desculpas por saudá-lo dessa maneira, mas não quero um buraco de bala na minha cabeça antes que me reconheça.
- Mademoiselle. - Gina percebeu a fúria controlada na voz do interlocutor. Nenhum homem gostava de ser pego de surpresa. - Fui informado que a senhorita ficaria fora do caminho esta noite.
Gina afastou a arma, mas a manteve firme na mão.
- Prefiro uma visão em primeira mão dos acontecimentos. Uma distração dramática. - ela acrescentou. - Mais algum plano para esta noite? - estava certa de que aquele homem havia se preparado para matar. Mas estaria armado? Sabia que se o detivesse por muito tempo ou o pressionasse demais, seu disfarce correria risco.
- Apenas se a oportunidade surgir. Pode me dar licença?
- Certamente. - Seu único pensamento era vê-lo fora do teatro e longe das oportunidades. O local estava lotado. A Família Real, presente. Aquele não era o momento ideal para um confronto. - Posso ajudá-lo em uma retirada discreta?
- Isso foi arranjado.
- Muito bem. Diga a seu patrão que não serei tão dramática, porém eficiente. - Ela se voltou em direção à escada, quando ouviu a porta superior se abrir.
- Gina?
Sentiu o sangue congelar ao som da voz de Harry. Ao mínimo movimento do homem a seu lado, ela lhe segurou o braço. Sabia, mesmo sem ver, que o empregado de Deboque esticava a mão para pegar uma arma.
- Não seja tolo. - sussurrou. - Na escuridão poderia facilmente errar e estragar tudo. Desligue essa lanterna e deixe-me cuidar disso. - Sentiu a resistência do homem, porém girou rapidamente e começou a subir a escada. - Harry. - Não precisava fingir o tom de medo na voz. O jovem príncipe não passava de uma silhueta na porta, mas ela deslizou os braços em torno dele e deixou que o próprio corpo o protegesse.
- O que está fazendo aqui embaixo? - indagou ele.
- Perdi-me quando as luzes se apagaram.
- Pelo amor de Deus, Gina. Como conseguiu descer toda essa escadaria?
- Não sei ao certo. Por favor, vamos voltar.
- Poderia ter quebrado o pescoço na escada. - Quando ele a apertou de modo suave e começou a guiá-la pelo caminho de volta, Gina mudou de posição para protegê-lo de maneira mais eficaz.
- Beije-me. - pediu ela em um sussurro.
Feliz por encontrá-la em segurança, Harry ergueu o queixo dela. À luz tênue podia apenas divisar o vago perfil da face de Gina e o brilho dos olhos verdes.
- Se insiste.
Mesmo com os lábios quentes e macios sobre os dela, Gina girou a maçaneta atrás dele, preparando-se para empurrá-lo através da porta.
E, então, os dedos de Harry se espalmaram em sua face, gentis. A boca tentadora se insinuava, confortadora, pedindo quase nada em troca. Os dedos de Gina apertaram a maçaneta tanto em resposta quanto em temor por ele. Uma das mãos do príncipe estava em suas costas, acariciando-a. Gina sentiu o coração partir. Amava aquele homem, apesar de saber que não podia. Desejava que o beijo fosse exatamente como era, uma imersão de lábios, a simbologia do sentimento. Mas o que tinha de ser era uma ferramenta para que o homem abaixo deles tivesse tempo de escapar.
E, então, Harry estaria salvo. Por segundos apenas, colocou todo o seu coração naquele beijo. Ele estaria seguro e Gina poderia voltar a respirar.
Harry percebeu a mudança e sentiu o coração gritar de felicidade. Imaginou-a sozinha na escuridão, necessitando de conforto e contato físico. Pensando assim, descartou as próprias necessidades e a beijou como um amigo o faria, com afeição e compreensão. A resposta de Gina foi avassaladora. Os dedos de Harry se apertaram contra a face delicada, enquanto murmurava o nome dela.
As luzes voltaram a ser acesas.
E, então, tudo aconteceu muito rápido, porém Harry recordaria por toda a vida, cada movimento e cada som. Não havia tempo para o medo, apenas para surpresa e, em seguida, desilusão.
Quando as luzes se acenderam, ele ficou tenso. Gina soube, naquele instante, que o homem de Deboque não havia se retirado do teatro, como ela esperara, permanecera, para tirar vantagem da oportunidade que surgiu. Sem hesitar, ela se desprendeu dos braços de Harry e o empurrou através da porta. A arma do homem estava empunhada, mas a dela também. E Gina era muito rápida.
Harry vira o homem e a arma. Forçou caminho através da porta para protegê-la, mesmo depois de ela ter atirado. Por um instante, ele se limitou a fitá-la, atordoado ao ver o homem cair morto. Então, percebeu a arma na mão de Gina. A surpresa chegou e partiu. A face do príncipe se tomou impassível. Quando falou, o tom de voz era neutro.
- Que tipo de jogo está fazendo e para quem?
Gina nunca matara antes. Fora treinada para aquilo, claro, mas nunca dera fim a uma vida com as próprias mãos. Enquanto continuava a olhar para baixo, a arma parecia estranha e pegajosa em seus dedos. Sua face estava extremamente pálida, os olhos, muito escuros, quando os volveu para Harry.
- Terei de explicar, mas não é a hora. - Escutou o som de passos apressados e lutou para se controlar. - Por favor, confie em mim.
- É um pedido interessante a essa altura. - Harry se moveu para passar por ela, em direção ao homem que jazia no chão.
- Harry, por favor. - segurando-lhe o braço, ela se postou ao lado do príncipe. - Contarei tudo que puder, mais tarde. Pode confirmar tudo com Rony e seu pai.
Sentiu os músculos de Harry ficarem rígidos.
- Meu pai?
- Por favor, pela segurança dele e de sua família, encene essa farsa comigo. - Empurrou a arma para a mão do príncipe, enquanto Rony chegava com cinco seguranças em seus calcanhares. Gina reagiu imediatamente. Mais uma vez, a verdade era o melhor disfarce.
- Ele tentou atirar no príncipe. - Gina forçou a voz a tremer, enquanto se apoiava nele. - Iria matá-lo se Harry não... - estacando, enterrou a face contra o ombro de Harry.
Ele não se moveu, embora não a contradissesse. Não havia mão confortadora naquele momento, nenhuma palavra de consolo. Rony se inclinou sobre o corpo e em seguida ergueu o olhar para encontrar o do príncipe.
- Foi uma sorte ser rápido... e preciso. - A pistola calibre 45 que jazia ao lado do corpo não fora disparada. O olhar de Rony se moveu para encarar Gina. - Lidaremos com isso de forma discreta.
Os lábios de Harry se curvaram, mas não estava sorrindo.
- Claro.
- Se puder voltar ao camarote. - Rony gesticulou para que dois dos guardas o acompanhassem. - Não contaremos nada disso à família antes de nos encontrarmos em local privado. - Com um lápis, ergueu a pistola automática pelo protetor do gatilho. - A polícia entrará pelos fundos.
Harry dispensou os guardas com um gesto. Fora a primeira vez que Gina o viu lançar mão da autoridade e da arrogância real. —
- Quero falar com você a sós. Agora.
- Está bem. - Rony estava ciente de que ele presenciara muita coisa. Porém, teria de lidar com aquilo rapidamente. - Vamos nos encontrar no escritório de Eve. Se me der alguns minutos para resolver isto primeiro.
- Tem dez minutos. - declarou Harry, voltando as costas a todos.
- Gostaria de voltar ao palácio. - Gina estava parada nos degraus sozinha. As mãos, esbranquiçadas nas juntas, agarradas à bolsa. - Não estou me sentindo bem.
- Providenciem um carro e um motorista. - ordenou Rony a um dos guardas. Para outro, entregou a arma do homem morto, antes de subir a escada e deslizar um braço sobre o ombro de Gina. - Vou acompanhá-la até a saída. - No instante em que se encontravam fora do alcance dos ouvidos dos outros, o tom de Rony voltou a ser seco e profissional. - O que aconteceu?
Os joelhos de Gina tremiam, porém ela manteve a voz no mesmo tom. De maneira sucinta, relatou o ocorrido.
- A cena não durou mais que cinco minutos. - Parecia ter sido horas.
- Foi falta de sorte Harry tê-la encontrado. Ainda assim, a história será convincente. Ele tem reputação de ser excelente atirador. Tudo que tenho a fazer é acalmá-lo. - Rony deixou escapar um longo suspiro. Conhecia bem seu cunhado, assim como todos os Bisset. Uma vez que perdessem a têmpera, era difícil recuperá-la. - Passaremos todos os acontecimentos pela manhã de modo que a história que contará a Deboque seja a mais vantajosa para nós.
- Ele nunca me perdoará.
Rony era intuitivo o suficiente para saber que naquele momento ela não estava se referindo a Deboque.
- Harry não é injusto. Tampouco tem um coração duro. A princípio ficará furioso, por ter sido mantido no escuro, mas não a culpará.
- Será? - Gina saiu para o ar da noite sem olhar para trás.
Sentou-se próximo à janela, observando o jardim. Havia se passado uma hora e depois duas, enquanto contemplava o luar. O palácio estava mergulhado no silêncio. Talvez os outros tivessem chegado, porém Gina não se deu conta, já que seus aposentos ficavam localizados na parte posterior Os convidados eram sempre agraciados com as mais agradáveis paisagens e os locais mais silenciosos.
Podia imaginar qual fora a reação de Harry ante as revelações de Rony. Mas não seria o cunhado a quem culparia. Gina sabia que aquele ônus seria dela, e o aceitaria. Pela manhã, provavelmente, iria querer uma conversa privada entre ambos.
Não se desculparia. Ergueu o queixo alguns centímetros. Aceitaria a raiva e a frieza de Harry, porém não se desculparia por ser quem era.
Amava Harry. Embora apostasse que ele nunca acreditaria naquele sentimento, mesmo que Gina tivesse o direito de confessá-lo. Naquela noite, estava disposta a morrer no lugar dele. Não apenas por dever ou honra, mas por amor. No momento, Harry não compreenderia ou aceitaria aquilo. Talvez fosse melhor daquela forma. Se seus sentimentos pelo príncipe haviam fugido do seu controle, seria mais inteligente e seguro que os dele tivessem morrido.
Ainda tinha uma missão a cumprir e dois anos de trabalho para finalizar.
Gina recostou a cabeça ao peitoril e desejou estar em Londres, onde a noite seria fria e úmida e sentiria o aroma do rio.
Ele não bateu à porta. O tempo da educação, da formalidade e do mínimo de gentileza havia passado. Gina estava encolhida em frente à janela, com os braços cruzados sobre o peitoril e a cabeça apoiada neles. Soltara os cabelos, de modo que lhe caíam em cascata sobre os ombros e desciam pelo robe branco. Um homem poderia facilmente pensar que se tratava de uma mulher perdida na noite. Harry não mais acreditava no que via e muito pouco daquilo restara. Quando fechou a porta, depois de entrar, ela se ergueu em um impulso.
Não o esperava aquela noite. Fitando-lhe a face, Gina percebeu que deveria tê-lo aguardado. Sabia reconhecer o pior quando o encarava.
- Conversou com Rony?
- Sim.
- E com seu pai?
Harry ergueu a sobrancelha. Embora tivesse se livrado do termo formal, podia parecer um príncipe quando queria.
- Conversaremos amanhã, embora isso não seja da sua conta.
Gina aceitou a afirmação com um leve aceno de cabeça.
- Contanto que isso não afete minha posição no momento.
- Embora, obviamente, pense o contrário, não sou idiota. Sua posição será mantida. - Harry retirou a pequena pistola do bolso, e após cruzar o aposento até o criado-mudo, depositou-a lá. - Isto é seu.
Não seria perdoada. Pensou estar pronta para aceitar aquilo, mas se enganara.
- Obrigada.
Aparentando tanta frieza quanto ele, Gina caminhou até o criado-mudo e guardou a arma na gaveta.
- Tem excelente pontaria, lady Gina. - Ela fechou a gaveta com um estalido baixo.
- Fui bem treinada.
Harry ergueu o queixo dela sem gentileza.
- Sim, por Deus! Foi mesmo. Que outros talentos possui, eu me pergunto? Farsa, por certo, é o mais acurado de todos. Em quantas mulheres pode se transformar?
- Quantas forem necessárias para fazer meu trabalho. Se me der licença, estou muito cansada.
- Oh, não. - Com a outra mão, ele pegou um punhado de cabelos dela. Pensou no que aquela mulher o fizera passar em uma única noite: a ansiedade sobrepujando o terror e a traição. - Acho que não me encantarei com isso mais uma vez. Para mim, a calma e bem educada dama inglesa acabou. Coloquemos as cartas na mesa, Gina.
Era o medo que lhe revirava o estômago. Não temor de que ele lhe causasse algum dano físico. Tampouco que fizesse, por causa da ira, e colocasse em risco a operação, mas o medo, mortal e frio, de que Harry passasse a vê-la como naquele momento.
- Acho que não tenho muito a acrescentar ao que Rony já lhe contou. A operação teve início há dois anos. O SSI precisava de uma agente infiltrada, então...
- Fui colocado a par dos detalhes básicos. - Ele a soltou, deixando as mãos caírem ao lado do corpo. E cerrou os punhos. - Um tanto tardia, a informação foi absolutamente completa. Após se estabelecer na organização de Deboque, fingiu afeição por Eve para que pudesse obter acesso ao palácio. - Harry percebeu um lampejo de emoção perpassar a face dela àquela menção, mas não estava preparado para interpretá-la. - Dessa forma, Deboque seria levado a acreditar que possuía um dos seus dentro do castelo. Através do jogo duplo, ficaria a par de seus planos, uma vez que ele fizesse um movimento, as autoridades seriam capazes de cercá-lo e destruir sua organização. Disseram-me que eu deveria agradecer o fato de ser tão competente no que faz.
- Não preciso de sua gratidão, apenas cooperação.
- Então talvez devesse tê-la requisitado desde o começo. - Gina ergueu a cabeça. Não pediria desculpas.
- Tinha ordens a cumprir, Harry. Não preciso lhe explicar o significado da palavra "dever".
- Não, mas também estou familiarizado com a palavra honra. Você jogou comigo.
A ira quebrou o gelo, fazendo-o segurá-la pelos braços.
- Usou meus sentimentos por você.
- Não era esperado que os tivesse. - ela disparou.
- Nem sempre se pode escolher o que sentir. Mas existem outras escolhas. Precisava usar meu sentimento, Gina?
- Tinha uma missão a cumprir. - A voz de Gina falhava no momento pelo fato de ela não estar certa de que fizera aquilo por frieza ou por suas próprias necessidades. - Tentei desencorajá-lo.
- Sabia que eu gostava de você, que a desejava.
- Contra minha vontade.
- Continua mentindo.
- Não. - Gina tentou se desvencilhar, mas ele a manteve cativa. - Não fiz nada para seduzi-lo. Mas, ao que parece, talvez seja necessário apenas que uma mulher exista para você se sentir atraído. - Percebeu a fúria brilhar nos olhos negros, mas a ignorou. - Talvez pelo fato de ter recusado dormir com você tenha me tomado um desafio. Milhares de mulheres adorariam dormir com alguém da nobreza.
- Acredita de fato que se tudo que desejava era levá-la para a cama você não teria estado lá meia dúzia de vezes?
- Não vou a nenhum lugar que não deseje. – Gina inclinou a cabeça para trás. A voz dele se mantinha baixa e precisa, mas Gina não se importava. - O fato de estar aborrecido por eu não ser quem você pensou se deve a seu orgulho ferido.
O restante do que diria e o fôlego lhe foram roubados, quando caiu de costas na cama sob o corpo de Harry. Antes que pudesse reagir, sentiu os braços presos ao lado do corpo. Fora prevenida sobre a impetuosidade de Harry.
Havia alusões àquela característica no dossiê do jovem príncipe.
Mas nada do que estava escrito se assemelhava a experimentá-la.
- Orgulho ferido? - rangeu ele entre os dentes, com a face quase colada à dela. - Então para você ainda sou apenas um texto que leu e as informações que lhe deram. - Aquilo o feria, de modo inexorável. Podia sentir o sentimento vibrando dentro dele até que só lhe restasse transformá-lo em raiva. - Pois não vou desapontá-la.
Gina armou as pernas em tesoura e quase conseguiu golpeá-lo. Porém, o príncipe lutou até subjugar o corpo dela, com uma das mãos colocada perigosamente na garganta de Gina. Dava-lhe certa satisfação sentir a pulsação acelerada da mulher que mantinha cativa sob seus dedos.
- Isso não provará nada. - objetou ela, conseguindo libertar um dos braços, mas ele lhe segurou o punho. Lá, a pulsação também estava disparada. - Está apenas humilhando a nós dois.
Aquilo não importava. Harry esquecera os conceitos de certo ou errado, verdade ou mentira.
- Houve um tempo em que pensei que fosse uma mulher tímida e preciosa. Alguém a quem desejava mostrar apenas ternura. A ela devotava sentimentos doces e pacientes. Mas, para você, podemos dispensar tais predicados, não?
- Harry, não faça isso. - pediu Gina em tom calmo, sabendo que era tarde demais.
- Por que não? - A impaciência estava de volta, com força total, instigada pela traição. - Esta é uma noite de mentiras e desejo.
Gina se preparou para reagir, por ela e por Harry.
- Não permitirei que me force.
- Não farei isso. Mas a terei.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!