Capítulo Seis



Capítulo Seis


 


Harry não mentira. Gina achava Cordina bonita, mas no início da manhã era simplesmente primorosa. Com a luz do amanhecer, lembrava uma jovem vestida para seu primeiro baile. As cores eram suaves, diáfanas. Tons brandos de rosa e azul se misturavam no leste, enquanto eles montavam.


Acomodando-se sobre sua própria sela, Gina olhou para o Drácula de Harry num misto de inveja e ansiedade. Os estábulos do pai incluíam alguns dos melhores cavalos da Inglaterra, mas não tinham nenhum que se comparasse àquele garanhão preto. Parecia veloz, destemido e um pouco bravio. Ao mesmo tempo em que se imaginava sentada em seu lombo, ela também podia imaginar Harry sendo arremessado no chão.


- Uma montaria assim deve ter uma mente própria. - comentou ela quando o velho cavalariço pisou atrás do príncipe.


- Claro. - Harry firmou o garanhão no lugar. Então, entendendo mal o comentário dela, sorriu confiante. - Seu Quixote é forte, mas totalmente cavalheiro. Mione costuma montá-lo quando está aqui.


Hannah só ergueu uma sobrancelha, reconhecendo as palavras tranqüilizadoras pelo que significavam.


- Obrigada, senhor. Alivia-me saber que me reservou uma montaria que é uma lady.


Harry teve a impressão de captar uma ponta de sarcasmo, mas, quando a fitou, viu apenas um par de olhos tranqüilos e um sorriso cortês.


- Pensei em cavalgarmos na beira do mar.


- Eu adoraria.


Com um aceno, Harry virou o cavalo e começou com um trote suave.


- Está se sentindo confortável?


- Sim, obrigada. - Enquanto estabeleciam um ritmo leve, Gina tentou não ansiar por um galope selvagem. - Foi muito amável da sua parte me convidar. Disseram-me que seus passeios matutinos são sagrados.


O príncipe sorriu, contente por ela montar o cavalo bem e confiante.


- É verdade que preciso de uma hora sobre o lombo de um cavalo antes de cumprir meus deveres civis. Mas algumas vezes prefiro fazer isso acompanhado.


O que não vinha acontecendo nos últimos tempos. Desde que Deboque fora solto, Harry sentia que não podia estirar os braços sem bater em um guarda. E ainda nada! Seus olhos se nublaram com raiva e impaciência. Queria que Deboque se movesse. Apreciava a idéia de poder lidar pessoalmente com o facínora e dar-lhe um fim merecido. Num gesto instintivo, tocou o ombro, onde uma bala o atingira. Sim, apreciaria demais tal oportunidade.


O olhar de Harry a deixou intranqüila. Havia algo nele que a fazia pensar em defender-se. O homem ao seu lado não era o príncipe calmo e suave que ela imaginava. Em que ou em quem pensava parecia se comunicar diretamente com Drácula, fazendo-o recuar nervoso. Gina percebeu a facilidade com que ele controlou o garanhão, apenas flexionando um músculo. Podia ser amável ou austero, suave ou rude. Ela sentiu as palmas das mãos umedecerem sobre as rédeas.


- Há algo errado?


- O quê? - ele a fitou. Por um momento, o olhar estava lá, imóvel, severo e escuro o suficiente para fazê-la enrijecer. Então, desapareceu, e o príncipe sorriu outra vez. Não haveria nenhum Deboque naquela manhã, disse Harry a si mesmo. Ficava irritado por ter sua vida e a vida da sua família ligadas àquele nome. - Não, nada. Conte-me o que costuma fazer em casa, Gina.


- Levamos uma vida tranqüila em Londres. - Em parte era verdade. Ela desejou saber por que pensava naquilo como sendo parcialmente mentira. - Faço a maior parte do meu trabalho em casa, porque é mais conveniente para mim. Dessa forma posso administrar a casa para o meu pai.


- Seu trabalho. - repetiu ele. - Suas peças literárias? - Harry a estava conduzindo por uma rota mais fácil, onde a inclinação era mais suave.


- Sim. - Novamente Gina sentiu uma pontada de desconforto. - Espero tê-las publicadas em um ou dois anos.


- Eu gostaria de lê-las.


Ela o fitou, surpresa, então quase que de imediato seus músculos se enrijeceram. Não tinha nada a ver com medo. Mesmo que o príncipe lhe pedisse para ver seus trabalhos, teria material suficiente para satisfazê-lo. Não, não era medo, mas uma certeza de que se continuasse mentindo para Harry por mais tempo ficaria fisicamente doente.


- Oh, é claro, mas não acho que tenha muito interesse em minhas obras.


- Está enganada. Tudo que diz respeito a você me interessa demais.


Gina baixou o olhar, mas não por timidez, pensou ele. Uma vez mais parecia envergonhada.


- Isso é adorável. - ela comentou após alguns instantes. - Costuma cavalgar aqui com freqüência?


Não permitiria que ele se aproximasse muito. Harry lutou contra a frustração e lembrou-se que teria de ser paciente.


- Não, de fato só venho aqui de vez em quando. - Quando alcançaram o topo da colina, ele parou. O capão de Gina parecia satisfeito, desfrutando da grama à margem do caminho. Ao seu lado, Drácula, impaciente, exalava energia. Ela pensou sentir a mesma impaciência por parte de Harry.


- Um pouco de distância muda as coisas. - murmurou ele.


Seguindo o olhar do príncipe, ela olhou para trás, para o palácio. Dali parecia um primoroso brinquedo, uma magnífica casa de bonecas que uma criança mimada podia achar de manhã perto da árvore de Natal. Para o leste via-se o mar, embora um pouco encoberto pelos penhascos e árvores, e apenas ouvido. Assim como o palácio, parecia simplesmente real.


- Precisa tanto se afastar de lá? - perguntou Gina, num tom de voz tranqüilo.


- As vezes. - O fato de Gina interpretar seu humor já não o surpreendia. Com uma mão firme nas rédeas, controlou o garanhão e continuou olhando para o palácio. - Passei um tempo em Oxford e outro no mar. Quando estava longe, sentia tanta falta de Cordina que chegava a doer. Nos últimos seis meses, no último ano, senti uma inquietação, aguardando que algo acontecesse.


Ambos pensaram em Deboque.


- Com freqüência, na Inglaterra, especialmente nesta época do ano, me queixo da umidade e do frio. - Ela se remexeu na sela e sorriu ao se lembrar de casa. - Olho através da janela e penso que venderia a alma por uma semana de dias mornos e ensolarados. Então, quando estou fora, começo a sentir falta da névoa e dos cheiros de Londres. - Os dois começaram a cavalgar novamente, enquanto Gina continuava a pensar na Inglaterra.


- Tem um homem que vende castanhas assadas em uma esquina perto da nossa casa. Você pode comprar um saquinho delas para aquecer as mãos nelas e cheirá-las, antes de comê-las. - Lembrar-se daquilo a fez sorrir outra vez, mas ela não fazia idéia da melancolia que lhe invadiu a face. - Às vezes, me pego desejando saber como seria estar em outro lugar na época de Natal sem castanhas assadas.


- Não sabia que você sentia tanta falta da Inglaterra. - Nem ela, até aquele momento.


- As pessoas sempre sentem falta de seus lares. Nossos corações estão sempre lá. - E tudo que ela era, tudo aquilo que fizera, sempre fora, primeiro, pela Inglaterra.


- Muitas vezes, imaginei como deve ter sido difícil para Rony. - disse Harry. Os sons do mar tomaram-se mais audíveis à medida que se aproximavam do leste. - Embora ele e Mione passem quase seis meses todos os anos na fazenda deles nos Estados Unidos. Sei que para Mione lá também é sua casa, tanto quanto Cordina.


- Para muitos, a real satisfação vem com aclimação. Não foi assim para ela, durante toda a vida adulta?


- Para Eve ainda foi mais difícil. Ela só passa algumas semanas com a família nos Estados Unidos.


- Alguns amores são maiores que outros. Algumas necessidades, mais fortes. - Ela estava começando a entender isso verdadeiramente. - Eve viveria em qualquer lugar, contanto que Alexander estivesse com ela. E acho que seu cunhado pensa do mesmo modo.


Sim, era verdade. Talvez isso fosse parte da inquietação que sentia, pensou Harry. Durante os últimos anos, vira como um compromisso e sentimentos verdadeiros podiam ser belos e fortes. De alguma maneira, sempre pareceram remotos e inacessíveis para ele. Mas agora havia Gina.


- Por amor, você deixaria a Inglaterra?


Gina teve a primeira visão rápida do mar quando alcançaram um ponto mais alto. Procurou se concentrar na bela paisagem, mas em sua mente lembrou-se do charme sinuoso do Tâmisa.


Deixaria? Toda a sua vida e os seus deveres estavam ligados à Inglaterra. Até mesmo sua missão atual fora aceita, muito mais com a intenção de proteger seu país de Deboque do que assegurar a integridade da Família Real de Cordina.


- Não sei. Você, especialmente, devia entender como alguns laços podem ser fortes.


As árvores escassearam. As poucas restantes envergavam sob a força do vento que vinha do mar. O caminho tomou-se mais acidentado, de modo que Harry se colocou entre a beirada do penhasco e Gina, que permaneceu calada. O príncipe não podia saber que ela seria capaz de descer aquele caminho sem sela ou rédeas. Mas, afinal, ela estava saboreando a sensação pouco comum de se sentir protegida.


Sem as árvores para quebrar sua força, o vento açoitava o topo da colina, carregando rastros de sal. Até mesmo os cabelos de Gina tão firmemente presos não foram capazes de resistir a tanta impetuosidade. Mechas finas escaparam para dançar ao redor da face dela. Enquanto observava, uma gaivota aproveitou a corrente e planou pacificamente no ar. Outra, ao longe, mergulhou na água, à procura de alimento.


- E de tirar o fôlego. - Ela relaxou bastante para suspirar. Harry viu o que sempre existira no coração dela, mas que seus olhos raramente exibiam: o amor pela aventura, poder e risco. Isso a fazia ainda mais bela, excitante e misteriosa. A necessidade de tocá-la era tão forte que ele precisou apertar os dedos nas rédeas para mantê-los no lugar.


- Queria trazê-la aqui, mas fiquei preocupado que a altura pudesse aborrecê-la.


- Não, eu amo isto. - O cavalo de Gina recuou um pouco e ela o controlou com a facilidade de uma longa experiência. - Há tantos lugares lindos no mundo, mas poucos são especiais. Este é especial. Acho que eu poderia... - as palavras morreram em sua garganta assim que o impacto a golpeou. - Este é o cenário da pintura! Não há nenhuma tormenta se formando no horizonte, mas é, não é?


- Sim. - Harry não fazia a mínima idéia de que aquele reconhecimento significaria tanto para Gina. Tampouco sabia o que fazer com a súbita e inevitável constatação de que estava completamente apaixonado por ela. Jogando a cabeça para trás, afastou os cabelos que o vento lhe jogara nos olhos. Queria uma visão clara dela e daquele momento, que talvez fosse o mais importante da sua vida.


Gina se endireitou sobre a sela, seus olhos escureceram, apreciando o cenário à frente e abaixo deles. Seu perfil era acentuado, esculpido. A camisa e a calça de equitação marrom-claro não lhe enfatizavam a pele clara. Mas quando Harry a fitou, achou-a ainda mais bela, a coisa mais preciosa que ele já encontrara. E pela primeira vez na vida se viu sem palavras diante de uma mulher.


- Gina. - Ele esticou a mão e esperou.


Ela se virou. O príncipe era o homem mais magnífico que já vira. Mais estonteante que a paisagem local e mais perigoso que uma queda daquele penhasco. Sentado sobre o enorme garanhão, ereto como um soldado, tão sofrido quanto um poeta! Nos olhos escuros, havia paixão e compaixão, necessidade e generosidade.


O coração a traiu, entregando-se a Harry, antes mesmo que ela pudesse se convencer de que era impossível. Enquanto o dever e a emoção lutavam entre si, Gina permitiu que sua mão se unisse à dele.


- Sei o que você pensa de mim.


- Harry...


- Não. - Seus dedos apertaram os dela. - Você não está muito errada. Eu poderia mentir ou prometer mudar, mas não mentirei nem farei promessas.


Antes que pudesse evitar, Gina amoleceu. Apenas aquele momento, prometeu a si mesma. Havia algo de mágico no ar, impossível de resistir.


- Harry, não quero que você mude.


- Continuo pretendendo conseguir o que lhe disse. Entretanto, não me expressei direito naquela noite. Eu a desejo, Gina. - Assim como ela, o príncipe olhou para o mar. - Também entendo que seria difícil para você acreditar que eu jamais disse isso a outra mulher.


Mas ela acreditava nele. Era emocionante, terrificante e proibido, mas acreditava. Por um momento glorioso, se permitiu ter esperanças. Então, lembrou-se de quem era. O dever vinha em primeiro lugar. Sempre.


- Por favor, acredite-me, se pudesse lhe dar o que você quer, eu daria. Mas não é possível. - Ela afastou a mão, porque o contato a estava deixando fraca, fazendo-a sonhar.


- Sempre acreditei que qualquer coisa é possível desde que se queira.


- Não, algumas coisas permanecem fora do alcance. - Gina virou o cavalo. - Devemos voltar.


Antes que ela pudesse se mover, Harry havia se inclinado o suficiente para segurar as rédeas do seu cavalo. Seus braços e pernas roçaram. O rosto dele estava tão próximo, quanto suas montarias, em direções opostas.


- Diga-me o que você sente em relação a mim. - exigiu ele. A paciência se esvaiu, dissolvida em necessidade e frustração. - Pelo menos isso, droga.


- Pesar. - disse ela num fio de voz.


Harry libertou-lhe as mãos apenas para segurá-la pela nuca e puxá-la para si.


- Diga-me novamente o que sente. - murmurou ele, inclinando-se em sua direção.


O beijo foi como um sussurro, macio, sedutor, provocante. Gina apertou as rédeas com as mãos, depois as deixou cair, flácidas, enquanto a emoção a envolvia. Não era para ser assim, tão abrangente, tão precipitado, tão bom. O vento serpenteou ao redor deles. Abaixo, as ondas batiam com violência nas rochas. Apenas por um momento, todos os pensamentos racionais desapareceram, deixando apenas desejo e paixão.


- Harry. - Gina murmurou o nome dele e começou a se afastar. Ele a segurou com firmeza.


- Fique mais um pouco. - Precisava daquilo. Precisava de qualquer coisa que ela estivesse disposta a lhe ofertar. Jamais sentira desejo de implorar o que uma mulher poderia lhe dar ou negar. Não era apenas paixão que queria, não só desejo físico, queria o coração de Gina, com um desespero que jamais experimentara antes.


Fora aquele desespero que o fizera manter o beijo suave, que o fizera recuar, antes que seu desejo por ela estivesse satisfeito. Se desejava ganhar seu coração, teria de agir com calma. Sua Gina era delicada e tímida.


- Nada de pesar, Gina. - ele disse num tom de voz calmo e depois sorriu. - Não vou magoá-la ou pressioná-la. Confie em mim. Isto é de fato tudo que quero, por enquanto.


Gina sentiu vontade de chorar. O príncipe estava lhe dedicando uma bondade, uma sensibilidade, que ela não merecia. Mentiras eram tudo que ela lhe contara. Mentiras eram tudo que continuaria lhe contando. Para mantê-lo vivo, lembrou-se, enquanto as lágrimas ameaçavam saltar-lhe dos olhos. Para manter o príncipe e as pessoas que ele amava incólumes.


- Nada de pesar. - repetiu ela, deixando as palavras ecoarem em sua mente.


Erguendo a cabeça, cutucou os flancos do capão e iniciou um galope. A primeira reação de Harry foi de surpresa. Não esperava que ela soubesse montar tão bem ou com tanto vigor. Aguardou um momento, observando-a descer a colina, antes de sorrir e deixar Drácula fazer seu serviço.


Embora Gina tivesse alcançado uma boa distância, viu Drácula ganhar terreno atrás dela. Encantada, curvou-se sobre o pescoço do cavalo, beijou-o e incitou-o a prosseguir.


- Não podemos disputar com eles. - disse à montaria. - Mas podemos passá-los para trás.


O desafio era empolgante. Incentivada por isso, Gina contornou a trilha por entre às árvores. O caminho era estreito e irregular, mas o que sacrificava em velocidade, ganhava em mobilidade.


O príncipe imprimia um galope veloz, mas ela se mantinha no meio, não lhe deixando espaço para ultrapassá-la. Abrindo passagem pelas árvores, Gina alcançou uma campina, com apenas dois metros de distância à frente. O instinto a fez mudar de direção à esquerda e subir outra colina, de modo que Harry precisou conter seu ímpeto ante a inesperada manobra. Contudo, continuou se aproximando, de forma que quando os estábulos entraram em seu raio de visão os dois estavam quase pescoço com pescoço. Rindo, ela mudou de direção à esquerda mais uma vez, em direção a uma cerca viva.


O pânico ameaçou dominá-lo, por um momento, ao imaginar Gina voando da montaria e caindo no chão. Então, sem despender muito esforço, ambos ultrapassaram o obstáculo, lado a lado.


Pés para baixo, joelhos pressionados nos flancos dos animais, os dois se dirigiram para os estábulos.


Pipit os observava com as mãos nos quadris. Eles os olhava desde que despontaram no topo da colina, com o capão na dianteira. No instante que saltaram a cerca, Drácula passara à frente, com passadas largas e leves. Era de se esperar, pensou Pipit, enquanto esfregava as mãos nas pernas da calça. Não havia outro cavalo em Cordina ou na Europa, até onde ele sabia, que pudesse fazer frente ao garanhão.


Mas enquanto observava a mulher se manter bem próxima, concluíra que o príncipe, por fim, encontrara um competidor à altura.


Harry puxou as rédeas do cavalo e deslizou da sela, com a excitação ainda tocando tambor em sua cabeça. Gina vinha apenas alguns segundos atrás. Sua risada soou baixa e um pouco ofegante, quando ziguezagueou o animal para desmontar.


Harry a pegou pela cintura, antes que ela pusesse os pés no chão.


- Onde aprendeu a montar dessa maneira? - Ela espalmou as mãos sobre o tórax dele, mais para manter distância do que para se equilibrar.


- É uma coisa que eu amo, além da literatura. Havia esquecido o quanto perdi estes últimos meses.


O príncipe não conseguia tirar os olhos dela. Agora era puro desejo, básico e vital. A cavalgada que poderiam fazer juntos seria tão selvagem e inconseqüente quanto a que haviam acabado de completar. De alguma maneira ele sabia disso, podia até sentir o gosto. Não saberia dizer por quê, mas tinha a impressão de estar segurando duas mulheres: uma, calma; outra, impetuosa. Não tinha certeza qual das duas o atraía mais.


- Vamos cavalgar amanhã novamente.


Uma cavalgada fora um risco e um prazer. Duas, Gina sabia que seria um erro tolo.


- Acho que não será possível. Com a peça de Eve prestes a estrear, há muito a ser feito no teatro.


Não a pressionaria, decidiu Harry. Prometera a si mesmo que lhe daria tempo para se acostumar a tê-lo por perto. Naquele instante, na colina, quando percebera o que aquilo significava para ele, ficara ainda mais determinado a cortejá-la corretamente.


Um ponto para o libertino real, pensou, enquanto se afastava a fim de beijar-lhe a mão.


- Os estábulos estão à sua disposição sempre que tiver tempo para usá-los.


- Eu agradeço. - Gina levou uma das mãos aos cabelos para se certificar de que os grampos estavam no lugar. - Adorei o passeio, Harry.


- Eu também.


- Bem, Eve está à minha espera.


- Vá em frente. Pipit e eu cuidaremos dos animais.


- Obrigada. - Ela estava protelando. No momento em que percebeu isso, Gina se forçou a partir - Adeus, Harry.


- Gina. - O príncipe fez um gesto com a cabeça e a observou caminhar de volta ao palácio. Um sorriso curvou-lhe os lábios, enquanto batia de leve no pescoço do cavalo.


- Ela vai ser minha, mon ami. - murmurou ele. - E só uma questão de tempo.


 


O tempo passou muito rápido. Trancada em seu quarto, Gina segurou a carta de Sussex. Dentro, acharia a resposta de Deboque a seu pedido, feito alguns dias antes no museu. Tinha as mãos trêmulas quando se sentou à escrivaninha. Com um abridor de cartas, com cabo de marfim, que lhe fora fornecido, abriu o envelope. No interior havia uma carta casual, até mesmo pouco inspirada, de um conhecido da Inglaterra. Foram precisos menos de 15 minutos para decodificá-la.


 


Pedido concedido. Dia 3 de dezembro, às 23h30. Café Du Dauphin. Sozinha. O contato perguntará as horas em inglês, então comentará sobre o tempo em francês. Certifique-se de que suas informações justificam o inusitado procedimento.


 


Naquela noite! O próximo passo seria dado naquela noite! Gina dobrou a carta e a colocou de volta no envelope, mas a deixou à vista sobre a escrivaninha. Ao lado, havia uma rosa branca que Harry lhe enviara naquela manhã. Ela hesitou, então se permitiu o prazer de tocar as pétalas.


Se pelo menos a vida fosse tão doce e simples!


Momentos depois, estava batendo à porta do escritório do príncipe Tiago.


A porta foi aberta pelo secretário, que se curvou diante dela em uma reverência cortês e, em seguida, anunciou-a ao príncipe.


Tiago ergueu-se atrás da escrivaninha, enquanto lhe concedia permissão para entrar.


- Alteza. - Gina fez uma mesura. - Peço que me perdoe por incomodá-lo.


- Não se preocupe, Gina.


- Mas vocês estão ocupados. - Ela se manteve junto à soleira da porta, com as mãos dobradas. - Eu apenas queria lhe pedir um conselho sobre algo. Mas se não for conveniente, poderei voltar mais tarde.


- Nada disso. Por favor, entre e sente-se. Michel, se puder cuidar desses assuntos agora, quero ter uma conversa particular com lady Gina.


- Claro, Alteza. - Michel se curvou e deixou a sala.


Quando a porta se fechou, Gina deixou os braços caírem ao longo do corpo. Com passos largos e firmes, caminhou até a escrivaninha.


- Tivemos um imprevisto. Terá que chamar Rony imediatamente.


- Não estou me sentindo muito confortável com isso. - disse Tiago algum tempo depois, quando o genro se encontrava sentado à sua frente. - Como podemos ter certeza que Deboque será enganado pela informação que Gina lhe passará?


- Porque é muito próxima da verdade. - Rony terminou sua segunda xícara de café. - A menos que Gina possa lhe dar algo importante, algo que ele não tenha nenhum outro modo de conseguir, jamais poderá se aproximar dele.


- Mas ele vai acreditar nela?


- É meu trabalho fazê-lo acreditar. - disse Gina, num tom de voz tranqüilo. - Alteza, sei que tem objeções contra essa operação desde o início, mas até agora tudo tem saído exatamente conforme planejado.


- Até agora, sim. - concordou Tiago erguendo-se da cadeira. Ele gesticulou para que ambos permanecessem em seus assentos de forma que ele pudesse caminhar de um lado para o outro em paz. - Mas agora estou a ponto de permitir que uma mulher, uma mulher por quem, ambos, eu e minha família, nos afeiçoamos, vá se encontrar sozinha com um homem que mata tanto por prazer quanto por lucro.


- Ela não estará só.


Ao ouvir a declaração de Rony, Gina se endireitou na cadeira.


- Tenho que estar. Se Deboque ou um dos seus homens tiver a mais leve desconfiança de que não estou, a operação inteira irá por água abaixo. - Ela se ergueu. - Dediquei dois anos da minha vida a isso.


- E pretendemos fazê-la viver um pouco mais. - rebateu Rony, num tom suave. - Suspeitamos que Deboque tem sua sede em uma pequena vila a aproximadamente cinco milhas daqui. Teremos homens vigiando.


- E eles terão os homens de Deboque vigiando-os.


- Deixe essa parte comigo, Gina, e faça o seu trabalho. Você tem as cópias heliográficas e as especificações dos sistemas de segurança?


- Sim, claro. - Aborrecida, ela se sentou novamente. - E sei que não devo dá-las a ninguém a não ser Deboque.


- E também sabe que ao primeiro sinal de que algo não vai bem deve sair de cena.


Gina assentiu com a cabeça, entretanto não tinha qualquer intenção de agir daquele modo.


- Sim.


- Haverá dois homens dentro do café.


- Por que não coloca logo um batalhão? - Gina se reclinou para trás no assento.


Rony entendia sua frustração, mas somente tomou uma terceira xícara de café.


- Ou isso ou terá que levar uma escuta. O último agente que tentou entrar com escuta na organização de Deboque foi mandado de volta ao SSI em três caixas. - Rony encolheu os ombros. - Fica a seu critério.


Gina se ergueu novamente.


- Não estou acostumada a adivinhar o que vai acontecer, Rony. - Quando ele não disse nada, ela rangeu os dentes. - Sei que é meu superior nesta missão, então acho que não tenho muita escolha.


- Contanto que continuemos a nos entender. - Ele se ergueu e segurou-lhe a mão. - Gina, conheço sua reputação. Por que não dizer que não quero me arriscar a perder uma das melhores agentes? - Deixando-a, virou-se para o príncipe. - Tenho que dar andamento em algumas coisas. Manterei contato.


Tiago esperou até que a porta se fechasse outra vez.


- Espere um momento, por favor. - disse ele a Gina. - Quer se sentar?


Ela queria ficar sozinha, planejar cada detalhe cuidadosamente. Só lhe restavam poucas horas. Mas a educação era tão importante quanto o treinamento, então ela se sentou.


- Gostaria de revisar as coisas comigo outra vez, senhor?


- Não. - Os lábios dele se curvaram apenas ligeiramente. - Acho que entendi muito bem a situação. Tenho uma pergunta pessoal para lhe fazer e peço de antemão para não se sentir ofendida. - Tiago sentou-se na frente dela com sua postura rígida de militar. - Estou enganado, ou meu filho está apaixonado por você?


Gina uniu as mãos imediatamente, ao mesmo tempo em que seu corpo inteiro ficou em alerta.


- Se está se referindo ao príncipe Harry, senhor, ele tem sido muito gentil.


- Gina, por favor, dispense as evasivas e a cerimônia. Quase sempre o dever interferiu no tempo que posso passar com minha família, mas isso não significa que não conheça bem os meus filhos. E acredito que Harry esteja apaixonado por você.


Ela ficou pálida.


- Não. - Precisou engolir, mas a palavra saiu pela segunda vez da sua boca no mesmo tom veemente. - Não, ele não está. Talvez esteja um pouco intrigado, mas apenas porque não sou o tipo de mulher com quem está acostumado a passar o tempo.


- Gina. - Tiago ergueu uma das mãos, antes que ela pudesse continuar sua tortuosa negação. - Não perguntei para deixá-la transtornada. Quando comecei a suspeitar de tal fato, fiquei preocupado apenas porque Harry desconhece o verdadeiro propósito de você estar aqui.


- Entendo.


- Não sei se entende. Harry é mais parecido com a mãe do que os irmãos. É muito... bondoso. Tem um temperamento impulsivo, mas seus sentimentos são mais facilmente alcançados. Só estou lhe perguntando isto, porque, se a resposta à minha próxima pergunta for não, devo pedir-lhe que não o magoe. Você o ama, Gina?


Os olhos falaram por ela. Ciente disso, Gina desviou o olhar, depressa.


- Tudo que sinto por Harry e pela sua família não interferirá em meu trabalho.


- Tenho experiência suficiente para reconhecer uma pessoa que fará o que tem de ser feito. - Tiago sentiu uma forte emoção, um misto de pena e empatia. - Mas você não me respondeu. Ama o meu filho?


- Não posso amá-lo. - Dessa vez, sua voz soou fraca e embargada. - Menti para ele desde o início e vou continuar mentindo. Não se pode amar e mentir. Por favor, peço que me dê licença, Alteza.


Tiago a deixou ir. Por um momento, reclinou-se na cadeira e fechou os olhos. Nas próximas horas não poderia fazer mais nada a não ser rezar por ela.


 


O café não era um dos pequenos pontos turísticos de Cordina. Era um bar à beira-mar freqüentado pelas tripulações dos barcos pesqueiros e cargueiros. O interior era espasmódico, com muitas mesas vazias e o cheiro de fumo e bebida. Não tão ruim quanto costumavam ser, Gina pensou, enquanto entrava, mas não era um lugar para uma mulher sozinha freqüentar, a menos que estivesse procurando problemas.


Contudo, não provocou muita agitação quando entrou. Usando suéter cinza e calça comprida folgada, quase se confundia com as paredes. As mulheres que já se encontravam no local eram bem mais interessantes. Se pudesse acabar logo com aquilo, não teria necessidade de desencorajar quaisquer dos freqüentadores.


Gina escolheu um banco no bar e pediu um uísque puro. Quando a bebida foi servida, ela já havia avaliado o salão. Se Rony realmente tivesse plantado dois agentes ali, eram de fato bons. Era raro não conseguir identificá-los.


Ficou bebendo em silêncio durante dez minutos quando um dos homens se ergueu de uma mesa e caminhou em sua direção. Gina continuou bebendo, enquanto todos os seus músculos enrijeciam. Quando ele falou, o sotaque francês soou inarticulado devido ao uísque.


- É muito triste para uma mulher beber sozinha. - Gina relaxou apenas o suficiente para se sentir incomodada. Então, lançou mão do afetado tom britânico.


- É mais triste ainda para uma mulher não poder permanecer sozinha quando quer.


- Uma mulher tão comum não deveria ser tão exigente. - murmurou o homem, mas se afastou. Gina quase sorriu, então outro homem entrou no café.


Trajava roupas de marinheiro, com o quepe puxado para baixo. A face era bronzeada e magra. Dessa vez, ela ficou tensa porque tinha certeza.


Todavia, ergueu o copo, tentando parecer à vontade, enquanto o sujeito caminhava para o banco ao seu lado.


- Pode me dizer as horas, mademoiselle?


- Sim, faltam 15 minutos para a meia-noite.


- Obrigado. - Ele sinalizou pedindo uma bebida. Outro minuto se passou até que o homem voltou a falar. - Il fait chaud ce soir.


- Oui, un peu.


Os dois se calaram. Atrás deles um grupo começou a cantar, desafinado, uma canção em francês. O vinho fluía livremente e a noite estava começando para eles. O homem terminou sua bebida e deixou o bar. Gina aguardou apenas alguns instantes, então, levantou-se e o seguiu.


Ele a aguardava na extremidade das docas. O local era pouco iluminado, de forma que a silhueta masculina parecia mais uma sombra do que um homem. Gina caminhou em sua direção, sabendo que aquilo poderia ser seu começo ou seu fim.


- Você tem a informação. - Ele falou em inglês novamente. Um tom insípido e sem sotaque, da mesma maneira como falara em francês. Deboque escolheu bem, ela pensou, e apenas assentiu com a cabeça.


- Nós vamos de barco. - O sujeito indicou o pequeno barco a motor.


Gina sabia que não tinha escolha. Poderia recusar ou ir em frente. Embora soubesse que não teria como voltar, no mar, jamais consideraria a primeira opção. Deboque era o destino.


Era a linha de fundo.


Sem hesitar, entrou no barco e sentou-se na popa. Em silêncio, o contato acomodou-se a seu lado, desamarrou a corda e ligou o motor. O barulho parecia um trovão no mar aberto.


Gina respirou fundo. Estava a caminho.


 


 


 

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