Capítulo Quatro
Capítulo Quatro
Os planos de Gina para evitar o passeio com Harry até Le Havre foram completamente destruídos. Justificara sua decisão convencendo-se de que poderia obter informações mais úteis concentrando-se no palácio. Com o objetivo de ficar para trás, aplicou a pouco original desculpa de uma dor de cabeça.
Esperara deliberadamente até Alexander terminar o desjejum com a família de forma que ela pudesse falar a sós com Eve.
Eve levou menos de dez minutos para pôr a culpa em si mesma.
- Não é de admirar que não esteja se sentindo bem. - Eve tomou um gole de chá no berçário ensolarado, enquanto examinava sua agenda. - Eu a tenho monopolizado desde que chegou.
- Não seja tola. O palácio é do tamanho de uma cidade pequena. Não posso me sentir presa.
- Embora seja grande, ainda tem paredes. Um passeio agradável ao longo da costa é o que você precisa, Bernadette. - Ela olhou para a jovem babá que estava se preparando para levar Marissa a um passeio matinal. - Não se esqueça de pôr um chapéu na princesa Marissa. Está ventando lá fora.
- Sim, senhora.
Eve estendeu os braços para a filha.
- Divirta-se, querida.
- Flores. - disse Marissa, e riu da própria voz.
- Sim, escolha algumas flores. Nós as colocaremos aqui em seu quarto. - Eve beijou as bochechas de Marissa e a deixou ir. - Fico aborrecida por não poder levá-la para passear esta manhã, mas tenho uma reunião no Centro dentro de uma hora.
- Você é uma mãe maravilhosa, Eve. - murmurou Gina quando percebeu a preocupação nos olhos da amiga.
- Eu a amo tanto! - exalando um longo suspiro, ela pegou a xícara de chá novamente. - É estranho, mas quando não estou com ela penso em dúzias de coisas que poderiam acontecer.
- Eu diria que isso é normal.
- Talvez. Mas sendo quem somos, e o que somos, tudo fica mais complicado. - Inconscientemente, descansou a mão sobre o ventre, onde seu próximo filho dormia. - Queria tanto passar a Marissa a sensação de uma vida normal, mas... - Eve sacudiu a cabeça. - Há um preço para tudo.
Gina lembrou-se de Alexander, que dissera quase a mesma coisa, referindo-se à esposa.
- Eve, Marissa é uma criança adorável, saudável e feliz. Creio que não precisa de mais nada para se sentir normal.
Eve a encarou por um momento, então envolveu-lhe o queixo com a palma da mão
- Oh Gina, não sei como pude passar os dois últimos anos sem você. O que me remete ao início da nossa conversa. - Animada, ela tomou a encher a xícara de Gina. - Veio aqui para nos fazer uma visita e não lhe dei mais um minuto de sossego, algemando-a o tempo todo a mim. Isso faz com que eu me sinta muito egoísta.
- O motivo pelo qual estou aqui é para lhe fazer companhia. - lembrou-a Gina, enquanto sentia que estava perdendo terreno.
- O motivo pelo qual está aqui é porque somos amigas. Como um favor, tire o dia para relaxar e desfrutar o ar marinho. Posso lhe assegurar que Harry é uma companhia maravilhosa. Garanto que após cinco minutos dentro do carro dele sua dor de cabeça desaparecerá.
- Alguém está com dor de cabeça? - perguntou Harry, entrando no berçário. Usava um uniforme branco com uma insígnia vermelha referente à sua patente como oficial da Marinha de Cordina. No bolso do lado esquerdo havia o brasão real que indicava ser ele príncipe. Gina sempre considerara a afirmativa de que as mulheres se apaixonavam por homens fardados uma grande tolice. Até aquele momento.
Ele parecia tão... viril, admitiu, embora seu lado prático procurasse uma palavra menos enfática. O casaco branco-neve realçava a pele bronzeada e contrastava com os cabelos escuros. Harry sorriu para ela. Gina percebeu que ele sabia o efeito que causava. Automaticamente, ela se ergueu para se curvar em uma mesura.
- Harry, eu havia esquecido como fica estonteante com esse uniforme branco. - Eve inclinou a face para ele lhe dar um beijo. - Talvez seja melhor eu aconselhar Gina a tomar uma aspirina e sentar-se no banco de trás.
- Acho que lady Gina pode tomar conta de si mesma. Não é mesmo, chérie?
Naquele instante, Gina decidiu que, se tivesse que se defender daquele homem, teria de afiar sua lâmina muito bem.
- Sempre consegui.
- Está um pouco pálida. - comentou ele, tocando-lhe a face com a ponta dos dedos. - Não está realmente se sentindo bem?
- Não é nada. - Gina desejou saber se ele era capaz de sentir o sangue dela fluir mais rápido nas veias graças ao simples contato. - E Eve me assegurou de que um passeio ao longo da costa é exatamente o remédio que preciso.
- Bem, eu a trarei de volta com as faces coradas.
- Se me dá um momento, preciso pegar minha bolsa.
- Harry. - Eve o parou antes que ele pudesse seguir Gina. - Estou errada ou percebi algo entre vocês?
Ele demonstrou certa duvida.
- Não tenho certeza.
- Gina vive uma vida muito reclusa. Creio que não preciso lhe dizer que... bem, seja cuidadoso.
Embora a luz do sol brilhasse atrás dele, os olhos escuros esfriaram.
- Não, não tenho que ser lembrado com quem um homem na minha posição pode ou não ter um caso.
- Não disse isso para aborrecê-lo. - De imediato, Eve se ergueu e segurou-lhe as mãos. - Éramos amigos bem antes de sermos parentes, Harry. Só perguntei porque gosto muito dela e sei como você pode ser irresistível.
Harry amoleceu, como sempre acontecia, em se tratando de Eve.
- Você sempre conseguiu resistir.
- Você sempre me tratou como uma irmã. - Eve hesitou novamente, dividida entre duas lealdades. - Adiantaria se eu dissesse que ela não é seu tipo habitual?
- Não, ela não é. Talvez seja isso que está me deixando confuso. Pare de se preocupar. - O príncipe curvou-se para beijar-lhe a testa. - Não farei nenhum mal a sua amiga britânica.
- Acho que estou mais preocupada com você.
- Então não fique. - Apertando-lhe a face com um gesto descontraído, ele caminhou até a porta. - Diga a Marissa que lhe trarei algumas conchas.
Tranqüila e resignada com sua decisão, Gina o encontrou no topo dos degraus.
- Espero não tê-lo feito esperar muito.
- Temos bastante tempo. Posso garantir que o passeio compensará a pompa e os discursos que temos de enfrentar.
- Não tenho nada contra pompa e discursos.
- Então, estamos com sorte. Claude. - Harry acenou com a cabeça para um homem alto e forte que aguardava ao lado das portas principais.
- Bom dia, Alteza. Lady Gina. Seu carro está pronto, senhor.
- Obrigado, Claude. - Harry a conduziu sabendo que a simples declaração significava que a segurança na estrada entre Cordina e Le Havre fora reforçada.
Gina avistou o carro no momento em que saíram. O pequeno e potente conversível francês estava estacionado próximo à escadaria, flanqueado por dois sólidos sedãs.
- Você dirige isso?
- Não gosta de carros velozes? - Harry tocou o reluzente capô vermelho com afeto. - Este desliza como um sonho. Consegue fazer 140 km por hora numa reta.
Gina imaginou como se sentiria, acelerando, perto do mar... a liberdade... o vento na face. Então rejeitou tais desejos e tentou parecer intranqüila.
- Espero que não pretenda quebrar seu recorde hoje. - Com um sorriso, Harry abriu a porta para ela.
- Por você, vou dirigir como um velhinho. - Gina deslizou no assento e quase suspirou de prazer.
- É muito pequeno.
- Bastante grande para dois. - Harry levantou a capota. Claude já havia aberto a porta para o príncipe.
- Mas, por certo, não viaja sem sua segurança ou um assistente.
- Sempre que possível. Meu secretário estará no carro atrás de nós. Vamos fazê-los correr um pouco? - ele ligou a ignição. Ao ouvir o som forte sob o capô, Gina teve certeza de que aquela era uma super-máquina. Antes que ela pudesse tomar fôlego, Harry acelerou o carro pelo longo e tranqüilo passeio. Dirigia do mesmo modo que montava um garanhão: a toda velocidade. - Já devem estar resmungando, imagino. - Ele fez uma leve saudação aos guardas dos portões. - Se dependesse de Claude, eu jamais passaria de 30 km. E também só sairia em uma limusine à prova de balas, de armadura.
- O trabalho dele é protegê-lo.
- É uma pena ele ter tão pouco senso de humor. - Harry reduziu a velocidade e contornou uma curva.
- Seu avô viveu uma vida longa e frutífera?
- O quê?
- Seu avô. - Gina repetiu enquanto dobrava as mãos sobre o colo. - Gostaria de saber se ele teve uma vida longa. Parece improvável, se dirigia como você.
O vento revolvia-lhe os cabelos ao redor da face quando Harry se virou para ela com um sorriso nos lábios.
- Acredite-me, ma belle, conheço as estradas.
Gina não queria que ele reduzisse a velocidade. Era a primeira vez, em meses, que sentia uma verdadeira sensação de liberdade. Quase se esquecera de quão doce aquilo podia ser. O mar brilhava, azul e branco, às margens da estrada, enquanto desciam a parte mais alta da capital.
Palmeiras contorciam-se de encontro ao céu, envergando-se e balançando ao sabor da brisa constante. Luxuriantes flores vermelhas pendiam dos arbustos ao longo das plantações que margeavam a estrada. O ar cheirava a maresia e eterna primavera.
- Você esquia? - Harry perguntou ao vê-la observar um homem praticando wakeboard.
- Nunca tentei. Deve ser maravilhoso. Mas acho que é para tipos mais atléticos. Sou mais de ficar em casa, nas bibliotecas.
- Ninguém pode ficar lendo o tempo todo.
Gina assistiu o esquiador dar uma cambalhota na água.
- Acho que eu consigo.
Harry sorriu e contornou uma longa curva em S.
- A vida não vale a pena sem alguns tombos. Nunca sentiu necessidade de um pouco de aventura, Gina?
Ela pensou nos últimos dez anos da sua vida, nas missões que a levaram dos castelos para os guetos.
Ruelas francesas. Terras à margem da costa italiana. Ela pensou na pistola de baixo calibre que carregava na bolsa e no estilete comprimido como um amante contra sua coxa.
- Acho que sempre preferi livros em vez de aventuras.
- Nenhum sonho secreto?
- Algumas pessoas são exatamente o que parecem. - Repentinamente incomodada, Gina mudou de assunto. - Não sabia que você era oficial da Marinha. - Outra mentira, pensou. Mas sua profissão exigia muitas.
- Servi durante vários anos. No momento, é mais um título honorário. Segundos filhos costumam ir para o Exército. É uma tradição.
- Então você escolheu a Marinha.
- Cordina é cercada pelo mar. Nossa frota é menor que a sua, certamente, mas é forte.
- E vivemos tempos difíceis.
Algo brilhou nos olhos dele e desapareceu em seguida.
- Em Cordina, aprendemos que todas as horas são difíceis. Somos um país calmo, e porque queremos permanecer assim, estamos sempre preparados para a guerra.
Gina pensou no belo palácio branco, com seus jardins exóticos e torres de contos de fadas. Inacessível através do mar, com sua visão deslumbrante do alto de um penhasco, de onde se podia avistar milhas e milhas a olho nu. Reclinou-se no assento, enquanto as ondas batiam contra a orla rochosa. Nada nunca era tão simples quanto parecia.
Le Havre era encantador. Aconchegado na base de uma longa colina, misturava-se aos pequenos prédios brancos e cabanas de madeira. Veleiros e barcos pesqueiros flutuavam tranqüilos em docas limpas em uma das curvas do porto. Ao redor do velho dique, flores azuis cresciam entre as fendas. Havia armadilhas para lagosta e redes estendidas, secando ao sol. O cheiro de peixe era forte e estranhamente agradável no ar de começo da manhã.
A primeira vista, poderia ser tida como qualquer cidade que sobrevivia da pesca e do mar. Mas, à medida que contornavam o porto, as docas se tomavam mais extensas e os edifícios, maiores. Navios cargueiros com homens rebocando carregamentos flanqueavam a linha do oceano. Como outros lugares em Cordina, Le Havre era mais do que aparentava.
Graças à localização e à habilidade de seu povo, era um dos melhores portos de escala no Mediterrâneo. Também era o centro da base naval de Cordina.
Manobrando por ruas estreitas e sinuosas, Harry passou por diversos portões, só reduzindo a velocidade o suficiente para ser reconhecido pelos guardas com saudações breves. Ali havia bangalôs pintados em um tom de rosa-claro que a fez lembrar o interior de uma concha. Palmeiras e flores cresciam em profusão, mas ela reconheceu a estrutura e a ordem de uma instalação militar. Momentos depois, o príncipe se aproximou de um edifício de estuque onde marinheiros, de uniformes brancos, mantinham-se de pé, de guarda.
- Durante as próximas horas - murmurou ele a Gina - somos oficiais.
Harry pegou seu quepe no assento de trás. Enquanto o colocava sobre os cabelos desalinhados pelo vento. Um dos marinheiros alcançou a porta do veículo e a abriu. Com a aba de brim cobrindo parcialmente seus olhos, o príncipe retribuiu as saudações. Sabia que o sedã já havia estacionado atrás dele, mas não olhou para trás enquanto conduzia Gina ao interior do prédio.
- Primeiro, teremos que participar de algumas formalidades. - advertiu ele, colocando o quepe embaixo do braço.
As formalidades eram um grupo de oficiais, de almirante para baixo, e suas esposas e diplomatas, que aguardavam para cumprimentar e serem cumprimentados por Sua Alteza Real.
Gina passou pelas apresentações e fingiu não perceber os olhares de especulação. Não faz o tipo do príncipe. Podia ler isso de forma nítida nos olhos que encontravam os seus. E concordava plenamente.
Tomaram chá e fizeram uma excursão pelo edifício, por causa dela.
Gina fingiu desconhecer os equipamentos que lhe foram mostrados, fazendo perguntas peculiares e se comportando adequadamente com a simplicidade das respostas. Não poderia mencionar que o radar e o sistema de comunicação eram tão familiares para ela quanto para os treinados operadores. Em caso de emergência, poderia usar o equipamento para contatar a base do SSI fora de Londres ou a sede de Deboque em Atenas.
Ela caminhou ao longo das estantes que exibiam miniaturas, ouvindo com aparente fascinação um almirante explicar-lhe a diferença entre um navio torpedeiro e um porta-aviões.
As formalidades continuaram enquanto eram escoltados para fora, a fim de aguardar o Independance ancorar. Os músicos da banda, com seus uniformes brancos banhados pelo sol, tocavam uma marcha entusiasmada. Harry parou sobre a doca. Muitas pessoas se aglomeravam atrás da barreira militar. Bebês e crianças pequenas eram erguidos por seus pais, para que pudessem ver o príncipe.
Gina contou mais de uma dúzia de seguranças na multidão, além de dois homens que nunca se distanciavam mais de um palmo do cotovelo de Harry.
Deboque estava livre, pensou ela. Tudo era um risco.
O torpedeiro cinza manobrou, posicionando-se, enquanto a multidão aplaudia e a banda continuava tocando. Marinheiros na doca bem como no deque do navio mantinham-se atentos. Depois de seis meses no mar, o Independance voltava para casa.
A prancha foi arriada. As cometas soaram. O capitão desceu para saudar os oficiais e curvar-se diante do príncipe.
- Bem-vindo à casa, capitão. - Harry estendeu a mão e a multidão exultou novamente.
Havia, como era costume em tais ocasiões, um discurso a ser proferido. Gina manteve a fisionomia atenta, enquanto esquadrinhava lentamente a multidão.
Não foi surpresa encontrá-lo lá. O homem franzino, ligeiramente corcunda, estava em uma das extremidades da multidão com uma pequena bandeira de Cordina. Com suas roupas de trabalho simples e face serena, jamais seria notado ou lembrado. Era um dos melhores seguidores de Deboque.
Não haveria nenhum atentado ao príncipe Harry naquele dia, pensou ela, embora tivesse sentido um arrepio na nuca. Ter se infiltrado no palácio com tanta facilidade fora uma das suas melhores contribuições à organização de Deboque. As ordens, agora, eram cautela e inteligência, em vez de uma tentativa precipitada de assassinato.
Em todo caso, sabia que Deboque não estava tão interessado em Harry quanto em Alexander, e não tanto em Alexander quanto em Tiago.
Não se conformaria com o segundo na linha de sucessão ao trono, depois de uma espera tão longa.
Contudo, Gina fechou a mão sobre o fecho da bolsa. Moveu-se apenas alguns centímetros, mas o corpo de Harry agora estava quase todo protegido pelo seu.
O homem teria sido enviado com uma mensagem para ela? Gina desejou saber.
Ou simplesmente lhe ordenaram que ficasse próximo e assistisse? O instinto lhe dizia que era a segunda opção. Casualmente, ela esquadrinhou a multidão novamente. Seu olhar encontrou o do sujeito e o sustentou por apenas uma fração de segundo.
Houve um reconhecimento, mas nenhum sinal. Gina desviou o olhar, sabendo que se encontrariam dentro de alguns dias, no museu.
A bonita cerimônia com a música militar viva e bandeiras continuou com uma excursão ao navio e uma revista da tripulação.
Gina caminhou com a esposa do almirante, enquanto Harry foi conduzido à frente da fila de oficiais e marinheiros. De vez em quando, parava para comentar algo ou fazer uma pergunta pessoal a um dos homens. Ela via mais do que ele escutava as respostas. Até mesmo um observador casual teria notado que ele recebia mais que o respeito devido a seu título pelos homens que cumprimentava. Havia amor, o tipo que ela sabia que só homens poderiam dar a outros homens.
Embora Gina tivesse certeza que Harry já vira navios suficientes por uma existência, visitou a ponte, os alojamentos dos oficiais e a cozinha com fascinação aparente. O navio estava tão limpo quanto uma sala de estar, utilitários limpos e esfregados, sem sinal de pintura descascando ou ferrugem.
Harry moveu-se depressa pelo navio, sem parecer correr sobre os deques. Havia perguntas e elogios a serem feitos, mas ele sabia que também havia malas esperando para serem desfeitas. Ele cumprimentou novamente o capitão, ciente de que o homem tinha todo o direito de estar orgulhoso do navio e dos seus homens. Quando o príncipe arriou a prancha, a aclamação da multidão recomeçou. Harry desejou saber se era por sua causa ou porque a cerimônia estava chegando ao fim e os homens iriam desembarcar.
O protocolo exigia que ele fosse escoltado de volta à sede. Foi nesse momento que Gina começou a sentir a impaciência de Harry para se livrar de tudo aquilo. Embora fosse cortês, distribuindo apertos de mão, beijando mãos, trocando um último gracejo. Isso até estar novamente sentado no próprio carro e deixar escapar um xingamento.
- O que disse, senhor?
O príncipe bateu de leve na mão dela, antes de ligar o motor.
- Quatro horas foi tempo demais para mantê-la de pé. Obrigado por ser tão paciente comigo.
- Pelo contrário, achei tudo fascinante. - Nada era mais maravilhoso do que sentir o vento batendo na face outra vez, à medida que o conversível ganhava velocidade. - A excursão ao navio foi particularmente cultural. Não foi inteligente da parte do cozinheiro do navio preparar uma receita para crepes onde a farinha estava medida em libras em vez de xícaras?
- Comida se toma uma prioridade depois de alguns meses no mar. - Harry a fitou surpreso por ela ter ficado tão entretida com um navio e vários discursos pomposos. - Se soubesse que estava de fato interessada, não teria apressado tanto as coisas. Pensei que já estivesse entediada. Também pensei nos homens. Tudo que eles realmente desejavam era desembarcar e abraçar suas esposas ou namoradas, ou ambas. - Ele estava rindo quando virou a cabeça na direção dela. - Você não pode imaginar o que são quatro meses no mar, quando a única mulher que vê é uma brilhante fotografia com marcas de clipes no meio.
Os lábios de Gina se contraíram, mas ela conseguiu conter um sorriso.
- Não, de fato não posso. Mas penso que você desfrutou seu tempo no mar, Harry. Isso ficou claro pelo modo como falava com os homens e inspecionava o navio.
O príncipe permaneceu calado por um momento, surpreso e não descontente por ela ter entendido aquilo tão depressa.
- Lá eu era mais do que um oficial e menos do que um príncipe. Não posso dizer que tenho o mar em meu sangue como o capitão Dumont, mas não é algo que esquecerei.
- Do que jamais se esquecerá? - perguntou ela, antes que pudesse evitar.
- Ver o sol nascer no mar, ou melhor, navegar de encontro a uma tempestade. Deus, nós enfrentamos uma na saída de Creta. As ondas tinham uns 15 metros de altura. O vento era como a ira de Deus, tão violento, tão colossal que você podia gritar ao ouvido de alguém e ele não ouvir. Nenhum céu, apenas imensas paredes de água, uma após outra. Uma experiência assim faz um homem mudar.
- Como?
- Faz com que ele perceba que não importa o que ou quem você é, há algo maior, muito maior. A natureza é um poderoso nivelador, Gina. Olhe para ela agora. - Com uma das mãos, ele gesticulou para o mar, enquanto manobrava o veículo em outra curva. - Calma, quase impossivelmente bela. Um furacão não a faz menos bela, só mais perigosa.
- Soa como se preferisse o perigo. - Ela entendia aquela predileção, talvez muito bem.
- Às vezes. O perigo tem sua própria sedução. - Gina não podia contradizê-lo. Era algo que aprendera por si mesma, anos antes. Com um breve sinal ao carro de trás, Harry parou o conversível. - No momento, prefiro a calma. - Ele desceu do automóvel, ignorando o guarda que já se encontrava ansioso próximo ao capô do carro. - Venha caminhar comigo na praia, Gina. - Ele abriu a porta para ela e estendeu-lhe a mão. - Prometi levar algumas conchas para Marissa.
- Seu segurança não parece muito contente. - Nem ela tampouco, quando percebeu o quanto ficariam expostos.
- Eles só ficam satisfeitos se sentar, imóvel, em uma redoma à prova de balas. Agora venha Gina. Você não me disse que o ar marinho faz bem para o corpo?
- Sim. - Ela pôs a mão sobre a dele. O príncipe estava a salvo, contanto que ela executasse bem seu papel. - Terá que achar conchas bem grandes, que não possam ser engolidas. Na idade de Marissa, crianças tendem a colocar na boca as coisas mais estranhas.
- Sempre prática. - Com um riso leve, Harry a ergueu pela cintura e a colocou sobre o pequeno dique. Ele a viu olhar por cima do ombro dele e soube que um guarda os estava seguindo a uma distância discreta.
- Devia tirar seus sapatos, Gina. Vão ficar cheios de areia.
Era a coisa mais prática a fazer, é claro. A coisa mais lógica. Gina tentou se convencer de que não estava revelando parte do seu disfarce.
- Vocês devem ter algumas formações de corais fascinantes nestas águas.
- Você mergulha?
- Não. - mentiu ela. - Não sei nadar muito bem. Fui a uma exposição da Marinha em Londres alguns anos atrás. Até então, não fazia idéia da variedade incrível de conchas que existe ou o quanto podem ser valiosas.
- Por sorte Marissa tem gostos simples. - De mãos dadas com ela, o príncipe a conduziu até a beira da água. - Basta um par de cascas de mariscos para deixá-la feliz.
- É muito amável da sua parte, pensar em sua sobrinha. - Ele era amável, pensou Gina. Isso, por si só, era uma das coisas mais difíceis de não perceber. - Você parece ser o grande favorito entre seus sobrinhos e sobrinhas.
- Oh, suponho que seja porque não me incomodo de bancar o bobo de vez em quando em uma brincadeira. Que tal esta aqui? - curvando-se, Harry apanhou um longo espiral que se rompera de uma concha maior e fora amaciada pelo fluxo e refluxo do mar. No topo da curva havia uma espécie de quepe, que lembrava uma coroa.
- Bastante adequada. - Gina comentou quando ele passou a concha às mãos dela.
- Marissa não se preocupa se são adequadas. Prefere as bonitas.
- Esta é bonita. - Com um sorriso, ela correu um dedo ao longo da curva que ia do âmbar claro ao rosa brilhante. - Ela devia colocá-la no peitoril da janela onde o sol a iluminaria. Oh, veja! - distraída, ela entrou na rebentação e pegou uma concha de vieira intacta. Tinha o formato de um leque, acinzentada de um lado, rosa opalino no interior da tigela rasa. - Pode lhe dizer que as fadas servem biscoitos nisto enquanto tomam chá.
- Então lady Gina acredita em fadas. - murmurou ele. Pega em flagrante, ela lhe entregou a concha.
- Não, mas acho que Marissa sim. - Harry colocou a concha no bolso.
- Seus pés estão molhados.
- Secarão rapidamente. - Ela começou a se afastar, mas o príncipe a segurou pela mão outra vez, mantendo-a na espuma da rebentação.
- Já que estamos aqui, deveríamos tentar achar mais algumas conchas. - Sem esperar por uma resposta, ele começou a caminhar ao longo da costa.
Gina sentiu a água morna e macia acariciar-lhe os pés e os tornozelos, mas não tão morna e macia quanto o ar que os envolvia. Através das águas cristalinas, podia ver a camada de areia branca e o reluzente cintilar das conchas que haviam sido esmagadas pelas ondas. A rebentação ali era serena, apenas suspiros e sussurros.
Não havia nada de romântico naquilo, advertiu-se. Não podia permitir que houvesse. A linha em que caminhava agora era mais fina e mais perigosa que qualquer uma pela qual caminhara antes. Um passo em falso poderia significar uma tragédia, ou uma guerra, na pior das hipóteses. Determinada a se manter em seu lugar, concentrou-se nos guardas alguns metros de distância atrás deles.
- A cerimônia de hoje foi adorável. Agradeço por ter me convidado.
- O motivo pelo qual a convidei foi puramente egoísta. Desejava sua companhia.
Lutando para não se deixar influenciar, Gina tentou novamente.
- Na Inglaterra fazem muita sátira com a Família Real, fora as críticas, mas sob tudo isso há um verdadeiro afeto. Vi esse mesmo tipo de amor e respeito pela sua família aqui.
- Meu pai lhe diria que governamos bem. Ele dá ao povo solidez e confiança. Alex, esperança para o futuro. Uma continuação da tradição. E Brie, glamour, inteligência e humanidade.
- E você?
- Entretenimento.
Aquilo a aborreceu. Não saberia dizer por que, mas a descrição displicente de si mesmo a fez parar e encará-lo com o rosto contraído.
- Você se subestima.
Surpreso, Harry ergueu a cabeça e a estudou. Estava lá novamente, algo, aquele algo indefinível nos olhos dela que o atraíram desde o início.
- Para ser franco, não. Estou ciente de que cumpro com o meu dever. Meu pai nos criou para entender que não herdamos simplesmente um título ou uma posição. Tivemos que conquistá-los. - Ele a puxou para trás um pouco de modo que os respingos da rebentação não molhassem sua saia. - Não serei o regente. Graças a Deus! É uma tarefa para Alex e, depois, para o filho que Eve está esperando. Portanto, não tenho que levar a vida tão a sério quanto Alex. Mas isso não significa que não tenho respeito por Cordina ou pelas minhas responsabilidades.
- Não pretendi criticá-lo.
- Tenho certeza que não. Eu apenas quis dizer que, além dos meus deveres e da minha posição oficial, proporciono às pessoas algo... para falarem quando estão bebendo uma taça de vinho ou durante um jantar. Sou perseguido pelo título de príncipe playboy desde a adolescência. - Harry sorriu e afastou uma mecha de cabelo do rosto de Gina. - Não posso dizer que não fiz o possível para merecer esse título.
- Prefiro literatura à fofoca. - disse Gina enquanto recomeçava a caminhar.
- A fofoca tem seu lugar. - Alegre, Harry a fez parar novamente.
- Você parece gostar disso.
- Não. - Os olhos do príncipe escureceram quando olhou para o mar além dela. - Apenas estou acostumado. É difícil, quando se tem 20 anos, saber que toda vez que se olha para uma mulher, com um pouco mais de interesse, isso vai ser manchete nos tablóides, incluindo fotos. Tenho um fraco por mulheres. - Dessa vez ele sorriu e a fitou. - Já que não quero mudar esse aspecto da minha personalidade, decidi conviver com a especulação pública. Se pequei, foi por falta de discrição.
- Muitos diriam que foi pela quantidade.
Harry hesitou apenas alguns instantes, antes de jogar a cabeça para trás e dar uma gargalhada.
- Oh, Gina, que pedra preciosa você é. Então perdeu tempo lendo algo além de Yeats.
- Posso ter folheado algumas manchetes.
Rindo novamente, ele a rodopiou no ar, antes que ela pudesse evitar.
- Engraçado. Muito engraçado. - Os olhos escuros estavam cintilando quando a colocou de volta no chão. - Adoro quando me aniquila com tanta habilidade.
Com um gesto automático, Gina alisou a saia para baixo.
- Tenho certeza que está equivocado. Não foi minha intenção.
- Claro que foi. É isso que me deixa encantado.
O olhar frustrado que ela lhe lançou não tinha nada a ver com o papel que estava desempenhando. Encantá-lo jamais fizera parte do plano. Estava ali para observar, consolidar sua posição e levar a cabo um plano que há anos vinha sendo elaborado. Nunca antes lady Gina precisara se preocupar por despertar o interesse de um homem.
Enquanto calculava como evitar tal coisa, Harry a alcançou.
- Seu cabelo está se soltando. - Com um movimento casual ele arrancou um grampo solto que balançava junto ao ombro dela. - A culpa foi minha por tê-la rodopiado.
- Devo estar parecendo ter sobrevivido a um furacão. - Gina pegou o grampo para refazer o prático penteado. Nesse instante, outros grampos caíram na sua mão, soltos pelo vento e pelo peso das mechas. Enquanto blasfemava em silêncio, os cabelos caíram-lhe livres, descendo pelos ombros até alcançarem cintura.
- Mon Dieu. - Antes que ela pudesse torcer os cabelos para trás, Harry enchera ambas as mãos com os fios brilhantes, que entrelaçaram seus dedos macios como seda. Ele a contemplou fulminado pela transformação. A cascata, vermelho sangue, rebelava-se livre ao redor da face dela, acentuando-lhe o desenho das maçãs do rosto que aparentavam ser ainda mais firmes e angulares com a moldura. Sua face já não parecia magra e ossuda, mas exótica.
- Cest magnifique. C'est la chevelure d'un ange.
Com o coração acelerado, Gina tentou ignorar o que viu nos olhos do príncipe. Não era deleite inocente ou atração casual, havia desejo de homem para mulher, primitivo, poderoso e tão perigoso quanto o mar em um dia de tempestade. Não podia se afastar, porque as mãos de Harry estavam em seus cabelos. Foi difícil negar a força do próprio desejo, quando ele a puxou para si.
Aquilo não devia estar acontecendo. Não devia, repetiu Gina a si mesma. Mesmo assim, desejava sentir-se envolvida por aqueles braços, ser confortada, e, embora a palavra parecesse ridícula em sua mente, ser apreciada por ele. Desejada, querida, amada. Todas essas coisas eram contra as regras, mas não conseguia afastá-las da mente.
- Cabelos de anjo. - Harry repetiu, sussurrando. - Por que uma mulher esconderia tamanha beleza, prendendo-os?
Não, ela não era capaz de negar o que estava acontecendo em seu interior, mas podia, como fora treinada, dizer não a si mesma.
- É mais prático usá-los presos. - Gina ergueu as mãos para afastar os cabelos dos dedos do príncipe e encontrou resistência.
Sim, estava certo desde o início, pensou Harry. Havia mais, muito mais sobre lady Gina do que ela se permitia mostrar. Talvez fosse isso que continuava a atraí-lo, fazendo-o desejá-la e querê-la de um modo como jamais se interessara por outra mulher. Se tivesse sido possível, a teria tomado nos braços. Não foram os guardas que o impediram, mas o traço de ansiedade que viu nos olhos dela.
- Se isso fosse verdade, minha prática Gina, por que simplesmente não os corta?
Quantas vezes pensou em cortá-los, mas se arrependera no último minuto? Respirando fundo, ela resolveu dizer a verdade, porque, em geral, era o melhor disfarce de todos.
- Até uma pessoa como eu tem um pouco de vaidade.
- Eles a fazem parecer mais bela. - Harry deslizou as mãos pelos fios sedosos novamente, achando difícil acreditar que pudessem ser contidos por um punhado de grampos.
- Apenas diferente. - O sorriso de Gina escondia a tensão que a estava levando em duas direções.
- Qualquer homem aprovaria tal diferença. - Ela enrijeceu ao contato das mãos dele. O príncipe percebeu, e a libertou com alguma relutância. - Embora não esteja preocupada com a aprovação de um homem, não é?
- Nunca achei isso necessário. - Com alguns movimentos hábeis, Gina arrumou os cabelos novamente na altura da nuca. Os grampos foram colocados um a um, até os fios ficarem seguros. Então, quase pôde se sentir segura. - É melhor voltarmos. Eve pode estar precisando de mim.
Com um aceno de cabeça, Harry começou a caminhar de volta ao carro com ela.
Haveria outro tempo e lugar. De repente, percebeu algo em si que raramente experimentara, em particular com uma mulher: paciência.
- Pode prendê-los, Gina. Mas agora que sei como eles ficam soltos, eu a verei desse modo sempre que olhar para você. - Quando ambos alcançaram o dique, Harry a ergueu de novo, mas dessa vez parou, as mãos ao redor da cintura dela, seus olhares se prendendo. - Conhecendo esse segredo, me faz desejar saber quantos outros esconde e quanto tempo levarei para descobri-los.
Ansiedade e desejo eram uma combinação poderosa. Gina sentiu seu coração batendo com ambos.
- Acho que vou desapontá-lo, Harry. Não escondo nenhum segredo interessante.
- Veremos. - disse ele, antes de saltar com um movimento ágil para cima do dique.
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