Capítulo Três



Capítulo Três


 


Gina tinha acesso irrestrito ao palácio e aos jardins. Era só pedir e seu banho era providenciado ou sua cama feita. Se tivesse vontade de tomar um chocolate quente às três horas da manhã, podia pegar o telefone ao lado da cama e pedir. Como convidada da Família Real, dispunha de todos os confortos que o palácio poderia oferecer.


E como convidada da Família Real dispunha de guardas para sua própria segurança, o que considerava um pouco incômodo. Era bastante simples, para alguém com seu talento, fazê-los pensar que estava segura em seus aposentos, enquanto se encontrava em algum outro lugar. Porém, o fato de estar sendo observada tornava difícil entrar em contato com seus companheiros no exterior.


Usar o telefone do palácio estava fora de questão. As várias extensões existentes punham em risco até mesmo uma conversa codificada. Considerara brevemente a hipótese de usar um transmissor, mas rejeitara a idéia em seguida. Transmissões podiam ser localizadas.


Gastara dois anos da sua vida para chegar àquele ponto e ver tudo ruir por causa de algum descuido. Em todo caso, preferia que reuniões de tal importância fossem realizadas pessoalmente.


Dois dias após chegar a Cordina, enviara uma carta. A missiva fora endereçada a um velho amigo da família em Sussex que não existia.


Seu destino era uma das muitas facções de Deboque ao longo da Europa. Se por qualquer motivo a carta fosse interceptada e aberta, o leitor não encontraria nada mais interessante do que algumas linhas descrevendo Cordina e o tempo.


Se alcançasse seu destino e fosse decodificada, seria lida com uma conotação diferente. Gina fornecera seu nome, sua posição na organização e pedido uma reunião, detalhando o tempo, a data e o local. As informações seriam confirmadas pelo contato em Cordina.


Tudo que precisava fazer era chegar lá, sozinha.


Uma vez a carta a caminho, restaria uma semana, pensou ela. Em uma semana começaria o que de fato começara muito tempo atrás. Tinha muito o que fazer para se manter ocupada durante esse tempo.


A princesa Hermione e a família chegariam ao palácio naquela noite. Os empregados passaram boa parte do dia alvoroçados, mais, imaginou Gina, por causa das crianças do que por qualquer outro motivo. Ouvira-os dizer que a inestimável coleção de ovos de Fabergé seria posta fora do alcance dos meninos.


Passara o dia bastante tranqüila, visitando Eve e Marissa no quarto das crianças, almoçando com vários membros da Sociedade Histórica e, no final da tarde, explorando os porões em busca de locais vulneráveis.


Agora, estava fechando o colar de pérolas e se preparando para se unir à família na sala de estar principal. Seria interessante vê-los todos juntos, pensou. Desse modo, poderia julgar o relacionamento entre eles, bem como as personalidades de cada um. Antes que se passasse muito tempo, tinha que conhecer todos tão bem quanto a si mesma. Um engano, um erro de julgamento e tudo estaria perdido.


- Venha já aqui, seu diabinho!


Gina ouviu um riso alto, um baque, então passos apressados. Antes que tivesse chance de sair para ver o que estava acontecendo, a porta do seu quarto se abriu.


Um menino pequeno com vastos cabelos escuros, que aparentava não ter sido penteado na última semana, entrou apressado. A criança lhe deu um sorriso surpreendente, mostrando a falta de alguns dentes, antes de se refugiar embaixo da cama.


- Cachez-moi, s'il vous plait! - a voz foi amortecida pela barra da colcha antes de a pequena figura desaparecer.


Gina abriu a boca novamente apenas para ver Harry parado junto à entrada.


- Viu um menino pequeno e endiabrado andando por aqui?


- Eu, ah... não. - ela decidiu, parada no mesmo lugar com as mãos cruzadas. - Tive a impressão de ouvir alguém correndo no corredor. O que está...


- Obrigado. Se o vir, prenda-o em um armário ou algo parecido.


O príncipe voltou a caminhar pelo corredor


- Dorian, pequeno ladrão sórdido, não pode se esconder para sempre.


Gina caminhou até a entrada e avistou Harry contornando uma quina, antes de ela fechar a porta novamente. Dirigindo-se à cama, agachou-se e ergueu a barra da colcha.


- Acho que está seguro agora. - disse ela em francês.


Os cabelos escuros surgiram primeiro, então um pequeno menino robusto vestido com short e uma camisa de linho branca suja. Se Gina não tivesse visto sua foto antes, pensaria tratar-se do filho de um dos criados. Mas ele era um membro da Família Real.


- Você é inglesa. Eu falo inglês fluente.


- Estou vendo.


- Obrigado por me esconder do meu tio. - O jovem príncipe Dorian inclinou a cabeça em sinal de respeito. Embora ainda não tivesse completado 5 anos, executou a reverência com perfeição. - Ele estava bravo, mas não fica assim muito tempo. Sou o príncipe Dorian.


- Alteza. - Gina se curvou em uma mesura. - E um prazer conhecê-lo. Sou lady Gina Weasley. - Então, incapaz de resistir, ajoelhou-se para ficar na mesma altura da criança. - O que você roubou?


Dorian olhou para a porta fechada atrás de Gina e depois sorriu. Enfiando a mão no bolso da parte de trás do short, retirou um ioiô. O objeto podia ter sido azul, mas agora era o cinza da madeira velha com algumas fachas de pintura brilhantes que predominava. Gina estudou-o com apropriado respeito.


- Isto é de Harry, Alteza?


- Merveilleux, n'est-ce pas? Ele o tem desde que tinha 5 anos.


Dorian virou o brinquedo sobre a mão, admirando a peça que um dia foi nova e brilhante, quando o tio contava com a idade que ele tinha agora.


- Ele fica bravo quando entro no quarto dele e brinco com isto, mas como posso fazer isto funcionar?


- Bem pensado. - Gina resistiu ao desejo de arrepiar os cabelos do príncipe. - E qualquer um duvidaria que ele brinca com isso freqüentemente.


- Ele o guarda em uma estante. Não é que meu tio se importe que eu brinque com o ioiô. - explicou Dorian, com uma expressão nobre. - É que toda vez que tento fazê-lo funcionar a corda se enrosca e fica toda embolada.


- Precisa de um pouco de prática.


- Eu sei. - O menino sorriu novamente. - E só posso praticar se o roubar.


- Sua lógica é bem fundamentada, Alteza. Posso vê-lo? - Dorian hesitou apenas um instante, então lhe entregou o brinquedo de modo gracioso.


- Meninas normalmente não se interessam por tais coisas. - A criança fez uma careta, pura atitude masculina. - Minhas irmãs brincam com bonecas.


- As pessoas tem gostos diferentes. - Gina acariciou o ioiô, desejando saber quanto tempo se passara desde que a mão de Harry tocara o brinquedo. A corda não parecia tão velha quanto o próprio brinquedo. Supôs que fora substituída mais de uma dúzia de vezes em todos aqueles anos. Num impulso, deixou o ioiô deslizar para baixo, e, então, o ergueu habilmente.


- Oh, excelente manobra! - fascinado, Dorian a assistiu de olhos arregalados.


- Obrigada, senhor. Eu tinha um. Era vermelho. - lembrou-se Gina com um meio sorriso. - Até meu cachorro mastigá-lo.


- Sabe fazer algum truque? Tentei fazer a Volta ao Mundo uma vez e quebrei uma lâmpada. Tio Harry brigou comigo, mas jogou os cacos fora, para ninguém ficar sabendo.


Porque podia imaginar a cena com clareza, Gina sorriu. Muito barulho para pouca ação, decidiu ela, e desejou não admirá-lo mais por causa disso.


- Um truque? - enquanto considerava, moveu o ioiô para baixo e para cima. Então, com um estalido rápido do pulso o fez dar a Volta ao Mundo. Quando o brinquedo voltou para a palma da sua mão, Dorian riu e subiu em cima da cama.


- Faça outro, por favor.


Tentando se recordar, Gina fez a manobra do cachorrinho e deixou o jovem príncipe pulando no colchão e pedindo bis.


- Excelente, lady Gina! - disse Harry junto à entrada. - Obviamente, tem escondido seus talentos.


Gina teve que conter um xingamento enquanto impulsionava o ioiô de volta.


- Alteza! - com o brinquedo na mão, curvou-se em uma reverência formal. - Não o ouvi bater á porta.


- Não bati. - Harry se afastou do batente da porta, onde estava apoiado, e caminhou em direção à cama. Nem um pouco arrependido, o menino sorriu para o tio.


- Ela não é maravilhosa, tio Harry?


- Discutiremos os atributos de lady Gina mais tarde. - Ele deu um puxão de orelhas em Dorian antes de se virar. - Isto é meu, se não se importa em devolvê-lo.


Lutando para manter uma expressão séria, Gina lhe devolveu o ioiô.


- Isto pode não parecer nada além de um simples brinquedo de criança, - começou Harry enquanto enfiava o ioiô no bolso - mas na realidade é uma peça de herança tradicional.


- Compreendo. - Ela pigarreou, tentando não rir, mas o riso escapou. Esperando parecer arrependida, olhou para o chão. - Sinto muito, senhor


- Sente coisa nenhuma. E ele estava aqui o tempo todo, não é?


Harry jogou o sobrinho na cama, fazendo-o cair na gargalhada.


- Você me deixou procurar este pequeno ladrãozinho por toda parte do palácio quando ele estava aqui, escondi embaixo das suas saias.


- Embaixo da cama para ser mais honesta, senhor. - Gina teve que pigarrear mais uma vez, mas conseguiu falar calmamente. - Pela sua descrição, tão vaga, não imaginei que estivesse procurando o príncipe Dorian.


- Admiro uma pessoa que sabe mentir bem. - Harry murmurou enquanto se aproximava. Pela segunda vez, ele lhe segurou o queixo. Mas pela primeira vez ela percebeu toda a altivez que ele emanava e toda a atração desse ato. - E isso só me deixa mais intrigado.


- Lady Gina sabe fazer a Volta ao Mundo.


- Fascinante! - Harry deslizou a mão lentamente enquanto se virava para o sobrinho. Se tivesse prestado atenção, poderia ter ouvido o suspiro de alívio de Gina. - Pensei que tivéssemos um acordo, Dorian.


A cabeça do menino se inclinou, mas ela não notou que o brilho em seus olhinhos desapareceu.


- Só queria vê-lo. Perdoe-me, tio Harry.


- Claro. - Harry ergueu-o pelas axilas, fez uma careta e, então, deu-lhe um beijo prolongado na testa. - Sua mãe está lá embaixo. Não escorregue nos corredores a caminho da sala de estar


- Certo. - No chão outra vez, Dorian se curvou na frente de Gina. - Foi um prazer conhecê-la, lady Gina.


- O prazer foi meu, senhor


A criança brindou-a com um sorriso largo, antes de sair correndo.


- Fala doce. - murmurou Harry. - Oh, pode pensar que é um encanto, mas é um diabinho.


- Por incrível que pareça, ele me faz lembrar você. - Com uma sobrancelha erguida, Harry balançou nos calcanhares.


- Incrível mesmo, milady.


- Ele é um diabinho, sem dúvida. E você o ama.


- Muito. - Harry enfiou a mão no bolso. - E quanto ao ioiô...


- Sim, senhor?


- Espere até eu estar a uns cinco metros de distância antes de começar a rir de mim.


- Como quiser, Alteza.


- Foi um presente de minha mãe em um verão que eu estava doente. Já comprei uma dúzia deles para o diabinho, mas ele continua roubando o meu. Dorian sabe que se eu não tiver um filho até ele completar 10 anos, lhe darei o ioiô de presente.


- Tenho uma boneca ruiva que minha mãe me deu quando quebrei o pulso em um outono. Guardei-a até me tomar adulta. - Só quando Harry lhe segurou a mão, ela percebeu que havia lhe contado algo que o príncipe não precisava saber, uma coisa que nunca contara a ninguém. E enquanto se advertia de que tais lapsos podiam ser perigosos, os lábios do príncipe roçaram-lhe os dedos.


- Você, lady Gina, tem um coração amável, bem como uma língua afiada. Venha, desça comigo para encontrarmos o restante da família.


 


Rony Weasley seria um enorme obstáculo. Gina pensara nisso antes, mas ao vê-lo com a família teve certeza. Estava a par da sua vida desde que ele entrara para a polícia como recruta até seu trabalho menos divulgado para o governo dos Estados Unidos.


Seu envolvimento com Cordina e com a Família Real tinha uma aura de romance, mas Rony não era poeta. Deixara uma auto-imposta aposentadoria, a pedido do príncipe Tiago, quando Hermione fora seqüestrada. Embora tivesse escapado, o tempo que passara no cativeiro deixara sua marca. A princesa sofria de amnésia e Rony fora designado para protegê-la e investigar.


É claro que Deboque estava fazendo seus contatos, mas, embora sua amante tivesse sido capturada e presa, nunca o implicou. Como outros homens poderosos, ele inspirava lealdade. Ou medo!


Durante o tempo em que Hermione lutava para recuperar a memória, ela e Rony se apaixonaram. Embora Rony tivesse se recusado em aceitar um título quando se casaram, concordou em ser o chefe de segurança de Cordina. Mesmo com a experiência e com a habilidade de Rony, uma vez mais o palácio sofreu invasões.


Dois anos antes, Alexander quase fora assassinado. Desde então, Rony conseguira bloquear todo e qualquer atentado aos membros da Família Real. Mas Deboque estava prestes a sair da prisão. Com a liberdade, ganharia mais poder.


Gina observou Rony, um homem tranqüilo e introspectivo que adorava a esposa e os filhos. Ele faria tudo que estivesse ao seu alcance para protegê-los de qualquer mal. Tanto melhor.


Depois de alisar a saia, Gina entrelaçou as mãos, sentou-se e ouviu.


- Todos nós sabemos que sua peça será um sucesso maravilhoso.


Hermione, com a mão sobre a de Rony, sorriu para Eve. Os magníficos cabelos ruivos penteados de modo casual ao redor de uma face que permanecia delicada e adorável.


- Mas isso não significa que não entendamos que você tenha motivos para estar preocupada.


- Estou naquela fase em que desejo ver tudo terminado. - Eve pegou Marissa no colo.


- Mas está se sentindo bem?


- Estou me sentindo ótima. - Eve deixou a filha descer novamente. - Entre os mimos de Alex e os olhos de águia de Gina, quase não posso erguer um dedo sem um atestado médico.


- Foi muito bom você ter vindo. - Hermione sorriu para Gina, antes de tomar um gole de água mineral. - Sei o quanto é reconfortante ter uma amiga por perto. Nós a estamos tratando bem o suficiente para que não se sinta nostálgica?


- Estou muito feliz em Cordina. - Gina reclinou-se no sofá.


- Espero que vá até a fazenda enquanto estiver aqui.


- Ouvi falar maravilhas do lugar. - Hermione havia sido seqüestrada lá, enquanto ainda não passava de uma porção de terra meio abandonada. - Adoraria visitá-la.


- Então, vamos combinar isso. - disse Rony num tom tranqüilo, enquanto acendia um cigarro. - Está aproveitando bem sua visita?


- Sim, estou. - Seus olhares se encontraram e se prenderam. - Cordina é um país fascinante. Tem uma aura de conto de fadas, mas é muito real. Estou particularmente interessada em visitar o museu.


- Vai ver que temos algumas exposições muito incomuns. - comentou Tiago.


- Sim, senhor. Fiz alguma pesquisa antes de deixar a Inglaterra. Não tenho dúvidas de que vou ter boas surpresas durante minha permanência em Cordina.


Marissa andou com passos incertos, um pouco instáveis para suas perninhas de um ano de idade e ergueu os braçinhos. Gina colocou a menina no colo.


- Seu pai está bem? - perguntou Rony através da fumaça do cigarro.


Gina sacudiu as pérolas do colar para entreter o bebê.


- Sim, obrigada. Parece que quanto mais envelheço, mais jovem ele fica.


- Famílias, não importa se grandes ou pequenas, são sempre o foco de nossas vidas. - disse Rony num tom suave.


- Sim, isso é verdade. - murmurou Gina enquanto brincava com Marissa. - É uma pena que as famílias e a vida não sejam tão simples quanto parecem quando somos crianças.


Harry sentou-se relaxado na cadeira e desejou saber por que tinha a impressão de que, se pudesse ler nas entrelinhas, descobriria algo mais do que simples conversa fiada.


- Eu não sabia que você conhecia o pai de Gina, Rony.


- Apenas casualmente. - Quando se reclinou, um leve sorriso curvou-lhe os lábios. - Ouvi dizer que Dorian roubou seu ioiô outra vez.


- Eu deveria tê-lo colocado no cofre quando soube que ele viria. - Harry bateu de leve na protuberância em seu bolso. - Eu teria dado uma lição no diabinho, mas ele tinha uma cúmplice.


Ele virou a cabeça para fitar Gina.


- Peço desculpas pelo meu filho. - Os lábios de Hermione se encurvaram, enquanto ela erguia o copo novamente. - Por envolvê-la nesse crime, lady Gina.


- Pelo contrário, eu adorei. O príncipe Dorian é um encanto.


- Nós o chamamos de outras coisas em casa. - murmurou Rony. A mulher era um mistério, pensou ele. Por mais que procurasse alguma falha, não a encontrava. - Pensando nisso, acho que vou sair para procurar a turminha. Adrienne está na idade em que não se pode ter certeza se ela vai cuidar deles ou jogá-los no poço.


Harry olhou para as portas do terraço.


- Deus sabe que devastação eles podem ter causado nos últimos vinte minutos.


- Espere até ter seus próprios filhos. - Eve se ergueu para pegar Marissa do colo de Gina. - Vai estragá-los de tanto mimo. Se me dão licença, quero subir para alimentar Marissa.


- Vou com você. - Hermione pôs de lado o copo. - Acho que poderíamos discutir os planos para o baile de Natal. Sabe que quero ajudar no que puder.


- Graças a Deus não precisei implorar. Não, Gina, por favor, sente-se e relaxe. - disse Eve quando Gina começou a se levantar. - Não vamos demorar.


- Não demorem mesmo. - Harry tirou o ioiô para passá-lo de uma das mãos para a outra. - O jantar será servido em uma hora.


- Todas nós conhecemos suas prioridades, Harry. - Eve curvou-se para beijar-lhe a face, antes de deixar a sala.


- Também vou dar uma volta. - Erguendo-se, Alexander acenou com a cabeça para Rony. - Vou ajudá-lo a reunir as crianças. - Eles estavam atravessando as portas do terraço quando um criado surgiu à entrada.


- Perdoe-me, Alteza. Um telefonema de Paris para o senhor.


- Sim, eu estava esperando essa ligação. Vou atender no escritório, Louis. Se me dá licença, lady Gina. - Segurando a mão dela, Tiago se curvou. - Tenho certeza de que Harry pode entretê-la por alguns momentos. Harry, talvez lady Gina apreciasse conhecer a biblioteca.


- Se gosta de olhar paredes de livros. - Harry disse quando o pai saiu. - Não poderia haver lugar melhor.


- Sou mesmo apaixonada por livros. - Em seguida, Gina levantou-se.


- Certo, então. - Embora pudesse ter pensado em pelo menos uma dúzia de modos melhores para passar uma hora, Harry segurou-a pelo braço e a conduziu pelos corredores.


- É difícil acreditar que o museu possa ter pinturas ainda melhores do que as que vocês têm aqui no palácio, príncipe Harry.


- Le Musee d'Art tem 152 exemplares de pinturas impressionistas e pós-impressionistas, incluindo dois Corots, três Monets e um Renoir particularmente belo. Adquirimos recentemente um Childe Hassam dos Estados Unidos. Em troca, minha família doou seis Georges Complainiers, artista cordiniano que pintava na ilha no século XIX.


- Entendo. - Notando a expressão dela, Harry sorriu.


- Faço parte da diretoria do museu. Posso preferir cavalos, Gina, mas isso não me impede de ter atração pela arte. O que acha disto? - o príncipe parou em frente a uma pequena aquarela. O Palácio Real fora de um modo muito especial, quase místico, retratado. Suas paredes brancas e torres erguiam-se por trás de uma névoa rosa, que encantava mais do que ocultava o próprio imóvel. Deve ter sido pintado ao amanhecer, pensou ela. O céu, de um azul delicado, em contraste com o tom mais profundo do mar. Gina podia ver a antiguidade, a fantasia e a realidade. Em primeiro plano, os portões de ferro altos e as sólidas paredes de pedra que protegiam os jardins do palácio.  


- Muito bonita. Revela amor, bem como um toque de encantamento. Quem a pintou?


- Minha tataravó. - Satisfeito com a reação de Gina, Harry colocou a mão dela sobre seu antebraço. - Ela pintou centenas de aquarelas e as jogou fora. Em sua época, as mulheres pintavam ou desenhavam apenas como passatempo, não como profissão.


- Algumas coisas mudam, - murmurou ela e então olhou outra vez para a pintura. - outras, não.


- Alguns anos atrás, achei o trabalho dela em um baú em um dos sótãos. Muitos estavam deteriorados. Isso partiu meu coração. Então achei este. - Harry tocou a moldura, com reverência, percebeu Gina. Então, ela olhou para a mão dele e, depois, para a face, e se sentiu atraída por aquele homem. - Foi como voltar gerações no tempo e descobrir a si mesmo. - Poderia ter sido pintado hoje, e teria a mesma aparência.


Gina podia sentir o coração batendo mais forte por ele. Que mulher era imune à dignidade e sensibilidade? Em sua defesa, ela deu um pequeno passo atrás.


- Na Europa, entendemos que algumas gerações representam apenas um piscar de olhos no tempo. Nossa história nos antecede, séculos antes. É nossa obrigação deixar a mesma herança para as gerações seguintes.


Harry a fitou e achou seus olhos quase impossivelmente profundos.


- Temos isso em comum, não é? Na América, há uma urgência que pode ser excitante, até mesmo contagiosa, mas aqui sabemos quanto tempo leva para construir e adquirir. Políticas mudam, governos são substituídos, mas a história prossegue firme.


Gina precisava se afastar dele. As coisas ficariam confusas se pensasse no príncipe como um homem preocupado e sensível, em vez de encará-lo como uma simples peça de um trabalho.


- Existem outros? - perguntou ela, indicando o quadro.


- Poucos, infelizmente. A maioria não pôde ser recuperada. - Por razões que não estava muito seguro, sentia necessidade de compartilhar com Gina coisas que achava serem importantes para ele. - Há um na sala de música. O restante está no museu. Aqui, venha dar olhada. - Pegando-a pela mão novamente, Harry conduziu-a através do corredor que levava à próxima ala, o som de seus passos ecoando sobre a cerâmica de mosaico.


Passando por uma outra porta aberta, levou-a até uma sala que parecia ser um abrigo especial para o piano de cauda branco que ocupava o centro do lugar.


Havia uma harpa em um dos cantos que poderia ter sido tocada uns cem anos atrás, ou na semana anterior. Em um compartimento de vidro estavam alguns instrumentos de sopro antigos e uma frágil lira. Vasos com flores frescas, como no restante dos cômodos do palácio, perfumavam o recinto. O cheiro de jasmim derramava-se sobre as umas vermelhas de porcelana chinesa. Em uma das paredes, havia uma pequena lareira de mármore, varrida e limpa, com uma pilha de madeira empilhada ao lado, como um convite a acendê-la.


Ao lado de Harry, Gina caminhou até o outro lado de um tapete de Aubusson e sentiu-se voltar no tempo. A pintura reproduzia um baile festivo, com cores luminosas e pinceladas arrojadas. Mulheres, gloriosamente femininas, com trajes do século XIX, giravam ao redor de um reluzente piso de encontro aos seus pares. Espelhos refletiam os dançarinos e os duplicavam, e três magníficos lustres brilhavam sobre suas cabeças. Ao contemplar a obra, Gina quase pôde ouvir o som da valsa.


- Que adorável! Este salão é aqui no palácio?


- Sim. Quase não mudou. Faremos um baile de Natal lá no mês que vem.


Apenas um mês, pensou ela. E havia muito a ser feito. Em questão de horas Deboque estaria livre e logo ela saberia se a sua base fora bastante inteligente.


- É um salão muito bonito. - Gina virou-se. Mantenha a conversa e a mente leve, por enquanto, advertiu-se em pensamento. - Em nossa casa de campo há uma pequena sala de música. Nada que se compare a isso, é claro, mas sempre a achei muito relaxante. - Ela se dirigiu ao piano, não apenas para examiná-lo, mas para se distanciar um pouco do príncipe. - Toca algum instrumento, Alteza?


- Gina, estamos a sós. Não é necessário ser tão formal.


- Sempre considerei o uso de títulos mais apropriado do que formal. - Não desejava aquele grau de intimidade entre eles.


- Sempre o considerei irritante entre amigos. - Harry caminhou até ela a tocou de leve em seu ombro. - Pensei que fôssemos amigos.


Gina sentiu o toque da mão dele através do linho do vestido, da alça fina do sutiã, até atingir-lhe a pele. Travando uma guerra particular, manteve-se de costas para o príncipe.


- Fôssemos o quê, senhor?


Ele riu. E, então, segurou-a com ambas as mãos, virando-a de frente para si.


- Amigos, Gina. Acho você excelente companhia. É uma das primeiras exigências para se começar uma amizade, não é?


Ela o fitava de maneira solene, com um rubor lânguido tingindo-lhe as maçãs do rosto. Os ombros pareciam fortes sob as mãos dele, contudo Harry se lembrou de como a pele feminina era delicada ao longo da mandíbula.


O vestido que ela usava era marrom e sombrio. A face sem maquiagem e sem nada para emoldurá-la. Nem um fio de cabelo fora do lugar e, assim mesmo, ele a imaginou rindo, com os cabelos soltos e os ombros nus. E estava rindo só para ele.


- Que diabo há com você? - murmurou Harry.


- Como?


- Espere. - Impaciente e aborrecido consigo mesmo, e com ela, Harry se aproximou ainda mais. Ao vê-la enrijecer, ergueu as mãos, com as palmas para fora como se quisesse demonstrar que não lhe faria mal algum. - Espere apenas um momento, está bem? - ele pediu enquanto curvava a cabeça e lhe roçava os lábios com os seus.


Não corresponda, não corresponda, Gina repetiu várias vezes em sua mente, como uma ladainha. Harry não pressionou, não persuadiu ou exigiu. Apenas provou, com uma suavidade que ela não imaginou que um homem fosse capaz de ter. E seu sabor a penetrou até ela se sentir totalmente embriagada.


Os olhos do príncipe permaneceram abertos, observando os dela. Estava tão próximo que ela podia sentir o perfume de sabonete exalando de sua pele. Algo que lhe trazia lembranças do mar. Gina cravou as unhas nas palmas das mãos, lutando para que ele não percebesse o tumulto que lhe provocara. Deus, ela o queria. Como o queria!


Harry não sabia o que havia esperado. Mas o que achou foi suavidade, conforto, doçura, sem calor ou paixão. Embora tivesse visto ambos nos olhos de Gina. Não sentia necessidade de tocá-la ou aprofundar o beijo. Não o primeiro. Talvez já soubesse que haveria outros. Mas aquele primeiro lhe mostrou uma facilidade, um relaxamento que ele jamais procurara em uma mulher antes.


Era homem suficiente, bastante experiente, para saber que havia um vulcão dentro daquela mulher. Mas, estranhamente, não tinha desejo de provocar-lhe uma erupção, ainda.


Harry finalizou o beijo com um simples passo para trás. Gina não moveu um músculo.


- Não fiz isso para assustá-la. - disse o príncipe num tom de voz calmo, pois estava falando a verdade. - Foi apenas um teste.


- Você não me assusta. - Que ele não a tinha assustado era fácil perceber, mas a mulher dentro dela estava apavorada.


Aquela não era a resposta que ele desejava.


- Então, o que eu lhe provoco?


Lenta e cuidadosamente, Gina relaxou as mãos.


- Receio não ter entendido o que está querendo dizer, Alteza.


Ele a estudou por um momento, então respondeu.


- Talvez, não. - Harry esfregou a nuca, desejando saber por que uma mulher simples e plácida o deixava tão tenso. Ele conhecia o desejo. Deus sabe como sentira isso antes. Mas não como agora. - Droga, Gina, você não tem nada por dentro?


- Claro que sim, senhor, um grande número de coisas.


O príncipe teve que rir. Devia ter se lembrado que ela o rejeitaria com um pouco de lógica.


- Chame-me apenas pelo meu nome, por favor.


- Como quiser.


Harry virou-se. Ela estava de pé em frente ao brilhante piano branco, com as mãos entrelaçadas, fitando-o com um olhar calmo. Ele achava ridículo, mas sabia que estava muito próximo de se apaixonar.


- Gina...


Não dera mais que dois passos em direção a ela quando Rony entrou na sala.


- Harry, com licença, mas seu pai gostaria de falar com você antes do jantar.


Dever e desejo. Harry quis saber se um dia acharia um meio de conciliar os dois.


- Obrigado, Rony.


- Acompanharei lady Gina de volta à sala de estar.


- Certo. - Harry fez uma pausa e olhou outra vez para ela. - Gostaria de falar com você mais tarde.


- Claro. - Gina tentaria por todos os meios evitar que aquilo acontecesse. Ela permaneceu onde estava quando o príncipe saiu.


Rony olhou por sobre o ombro, antes de se aproximar.


- Há algum problema, lady Gina?


- Nenhum. - Ela respirou fundo, mas não relaxou. - Por que deveria haver?


- Harry pode ser... uma distração.


Dessa vez, quando seus olhares se encontraram, ela teve certeza que havia um brilho de divertimento nos olhos de Rony. Uma camada, a mais fina das camadas do seu disfarce exterior se desfizera.


- Não me distraio facilmente, principalmente, quando estou trabalhando.


- Assim fui informado. - disse Rony num tom bastante calmo. Ainda estava à procura de falhas e receava ter encontrado a primeira pelo modo como ela olhava para Harry. - Mas nunca trabalhou em uma missão como esta.


- Como agente sênior do SSI, sou capaz de cumprir com qualquer missão. - Sua voz soou afiada outra vez, não a voz de uma mulher quase terrivelmente excitada por um beijo. - Terá um relatório meu amanhã. Agora acho que é melhor nos unirmos aos outros. - Ela ia começar a se mover, mas Rony a segurou pelo braço, fazendo-a parar.


- Há muitas coisas em jogo que dependem de você. - Gina apenas acenou com a cabeça.


- Eu sei. Você pediu a melhor, e eu sou a melhor.


- Talvez. - Porém, quanto mais o tempo passava, mais Rony ficava preocupado. - Tem excelente reputação, Gina, mas nunca se envolveu em uma tarefa contra alguém como Deboque antes.


- Nem ele com alguém como eu. - Ela olhou para o corredor novamente e então baixou o tom de voz. - Sou membro permanente da organização dele agora. Levei dois anos para conseguir isso. Evitei que ele perdesse 2,5 milhões evitando que aquele negócio das munições não fosse arruinado seis meses atrás. Um homem como Deboque aprecia iniciativa. Nos últimos meses, tenho plantado sementes que desacreditarão seu segundo homem no comando.


- Ou terá sua garganta cortada.


- Isso é problema meu. Em uma questão de semanas, serei seu braço direito. Então o servirei a você em uma bandeja.


- Autoconfiança é uma excelente arma, se não for em excesso.


- Não costumo me exceder. - Gina pensou em Harry e fortaleceu sua resolução. - Nunca falhei em uma missão, Rony. Não pretendo começar com esta.


- Certifique-se de manter contato. Tenho certeza que entenderá quando eu digo que não posso confiar em ninguém.


- Entendo perfeitamente, porque penso do mesmo modo. Podemos ir?


 


 


 


 


 

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