CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 25
O enorme campo onde se celebraria o torneio estava rodeado de tribunas com toldos. Quando Gina, Luna, tia Elinor e Hagrid chegaram, as cadeiras já se achavam ocupadas por uma alegre multidão de damas e cavalheiros. Nos postes de cada tribuna uma bandeira balançava mostrando o brasão dos ocupantes, ao olhar ao redor em busca de seu próprio estandarte, Gina comprovou em seguida que Katherine tinha tido razão: as tribunas de seus compatriotas não estavam integradas com as dos outros, e sim, se encontravam em frente às ocupadas pelos ingleses.
- Ali, querida... ali está seu brasão. - disse tia Elinor, assinalando a tribuna situada em frente ao campo. - A bandeira está balançando ao lado da de seu pai.
Nesse momento, Hagrid falou com voz ensurdecedora, produzindo nas três mulheres um pouco de pânico.
- Sentem-se ali... - ordenou, assinalando a tribuna em que balançava o brasão de Claymore.
Gina, que sabia que a ordem não vinha de Harry, embora ao contrário tampouco tivesse obedecido, negou com a cabeça.
- Me sentarei sob meu próprio brasão, Hagrid. Muitos que deveriam sentar-se em nossa tribuna não podem fazer devido às guerras com os ingleses. A tribuna de Claymore, por outro lado, está cheia.
Mas não estava. Não toda. No centro havia uma grande cadeira, como se tratasse de um trono, e estava vazia. Gina sabia que tinha sido destinada para ela. Sentiu um nó no estômago ao passar em frente dela no lombo de seu cavalo, e, assim que fez os seiscentos convidados de Claymore e cada um dos servos e aldeãos presentes pareceram se voltar para ela e olhá-la, primeiro emocionados, depois decepcionados e, alguns, com expressão de desprezo.
A tribuna do clã Weasley, onde balançava o falcão e a lua crescente, encontrava-se entre o clã McPherson e a do clã Duggan. Para aumentar a crescente desfeita de Gina, assim que os clãs observaram que ela cavalgava para ficar ao seu lado, gritos de vivas ensurdecedores que só aumentaram na medida em que se aproximava. Gina olhava fixamente para frente, sem ver, e fez um esforço para pensar unicamente em Carlinhos.
Ocupou seu assento na fila da frente, entre tia Elinor e Luna, e assim que se os homens de seu clã se acomodaram, incluído o pai de Becky, começaram a lhe dar tapinhas de ânimo no ombro e a lhe dirigir orgulhosas saudações de boas-vindas. Pessoas que conhecia, e muitas que não conhecia das tribunas contíguas, aproximaram-se para renovar seus votos de amizade ou para se apresentar. Em outros tempos, tudo o que tinha desejado era que seu povo a aceitasse; agora, por outro lado, mais de mil escoceses a tratavam como uma verdadeira heroína nacional.
E para conseguir isso, só tinha tido que humilhar e trair publicamente seu marido.
Ao se dar conta disso, sentiu um nó no estômago e as mãos começaram a suar. Estava ali a menos de dez minutos e já começava a se sentir fisicamente doente.
E isso foi antes que as pessoas que estavam ao redor dela se afastassem finalmente para transformá-la no centro de atenções de quase todos os olhares procedentes do lado inglês. Para onde olhasse, os ingleses a observavam, apontavam ou chamavam a atenção de alguém para ela.
- Só querem observar os maravilhosos tocados que usamos. - disse tia Elinor encantada, indicando com um gesto os enfurecidos ingleses. - Tudo é tal e como eu esperava; todos nós nos sentimos muito animados pelo espírito que reina, e pelos juramentos que estávamos acostumados a fazer em nossa juventude.
Gina fez um esforço por levantar a cabeça, e seu olhar percorreu cegamente o mar de toldos multicoloridos, bandeiras que ondulavam e véus que flutuavam sobre o campo, em frente a ela. Havia altos capuzes de forma cônica, com véus que desciam até o chão; capuzes que se sobressaía de ambos os lados, como asas gigantescas, outros em forma de corações com véus, semelhantes a cortinados, e capuzes que produziam a impressão de formar duas peças quadradas de véu arrancadas e penduradas de altos postes colocados retos sobre o cabelo das damas. Gina os olhou sem vê-los e, do mesmo modo, apenas ficou consciente de que tia Elinor dizia:
- E enquanto olha ao redor, querida, mantenha a cabeça erguida, pois tomou partido, embora acredite que erroneamente, e agora deve procurar seguir adiante até o final.
Gina voltou bruscamente à cabeça para a senhora, e perguntou:
- O que está dizendo, tia Elinor?
- O que teria dito antes se tivesse me perguntado: seu lugar é com seu marido. Meu lugar, entretanto, é ao seu lado. De forma que aqui estou. E aqui está também à querida Luna, que suspeito trame algum plano para ficar para atrás e permanecer junto ao irmão de seu marido.
Luna voltou à cabeça de repente e também olhou para tia Elinor, mas Gina se sentia muito perdida na incerteza e na culpa para alarmar-se pela possível atitude de Luna.
- Não compreende que eu amava Carlinhos, tia Elinor?
- Ele também te amava. - disse Luna, e, por um instante, Gina se sentiu melhor, até que sua meia-irmã acrescentou: - Diferente de nosso pai, ele a amava muito mais do que desprezava o inimigo...
Gina fechou os olhos.
- Por favor. - Disse, dirigindo-se a ambas. - Não digam nada. Eu... sei que não está ...
Não teve necessidade de dizer nada mais, pois naquele momento os corneteiros avançavam pelo campo de batalha fazendo soar seus instrumentos, seguidos dos arautos, que esperaram até que se fez um pouco de calma entre a multidão e depois começaram a proclamar as regras.
Um dos arautos anunciou com voz de trovão que o torneio seria precedido por três combates de justa, que se dariam entre os seis cavalheiros considerados como os melhores do país. Gina conteve a respiração para depois expulsar o fôlego lentamente; os dois primeiros combatentes eram um cavalheiro francês e um escocês; o segundo combate seria o de Harry contra um francês chamado Dumont, e o terceiro seria o de Harry contra Ian MacPherson, o filho do velho que em outros tempos tinha estado “prometido” a Gina.
A multidão começou a dar vivas de entusiasmo. Em vez de ter que esperar durante todo o dia, ou provavelmente até o dia seguinte para ver o Lobo, o veriam em ação duas vezes seguidas já na primeira hora.
A princípio, as regras pareciam perfeitamente normais: o primeiro cavalheiro que acumulasse três pontos seria o vencedor; que seria concedido cada vez que o cavalheiro golpeasse seu competidor forte o bastante para lhe estilhaçar a lança. Gina supôs que necessitariam de pelo menos cinco combates diretos para que um dos opositores conseguisse acumular os três pontos exigidos, visto que não era pouca façanha manter a lança em riste, apontá-la do lombo de um cavalo a galope e golpear com ela o oponente no lugar correto para que sua própria lança deslizasse sobre ela. Os três pontos e o assalto seriam concedidos ao cavalheiro que conseguisse desarmar seu rival.
Os dois anúncios seguintes fizeram com que a multidão soltasse exclamações de aprovação, e Gina se encolhesse em seu assento: as justas não seriam ao estilo francês e sim ao alemão, o que significava que em vez de lanças de madeira seriam utilizadas lanças maciças, e que as mortais cabeças dela não estariam cobertas com protetores.
Os gritos de entusiasmo da multidão foram tão estridentes que aconteceu um considerável atraso antes que o arauto pudesse terminar de anunciar que às três justas seguiria o torneio, e que as restantes seriam celebradas ao longo dos dois dias seguintes. Além disso, acrescentou, devido à ilustre categoria dos cavalheiros que participavam, as justas que seguissem o torneio seriam organizadas de acordo com a importância de cada participante, sempre que esta pudesse ficar bem determinada.
A multidão voltou a rugir de entusiasmo. Em vez de ter que ver às escuras cavalheiros que corriam lanças com outros ainda menos importantes, seria oferecido primeiro os combates mais importantes.
Fora do campo de batalha, os fiscais já tinham terminado de verificar as selas, para se assegurar de que nenhum cavalheiro tentasse utilizar correias de couro, em vez de sua própria destreza como cavaleiro, e fazer uso da força bruta para se manter sobre a cela. Satisfeito, o fiscal deu o sinal, os arautos abandonaram o campo de batalha e começaram a soar os tambores, gaitas de fole e trompetistas para anunciar o desfile cerimonioso de todos os cavalheiros.
Nem Gina pôde permanecer impassível diante do deslumbrante espetáculo que se seguiu. Avançando em frente de seis em linha, os cavalheiros desfilaram vestidos com a armadura completa, montados sobre seus brilhantes corcéis magnificamente vestidos, com mantas de brilhante seda e veludos que mostravam o brasão dos cavalheiros. De tão polidas as armaduras cintilavam tanto que Gina teve que fechar os olhos ao passar diante dela os escudos gravados com os brasões em que aparecia todo tipo de animais imagináveis, desde animais tão nobres como leões, tigres, falcões e ursos, até imaginativos dragões e unicórnios; outros mostravam desenhos de franjas e quadros, meias luas e estrelas e outros, flores. Aquele espetáculo multicolorido, combinado com o incessante rugido da multidão, encantou tanto tia Elinor que chegou a aplaudir um cavalheiro inglês que levava um brasão particularmente atraente, com três leões, duas rosas, um falcão e uma lua crescente verde.
Em qualquer outro momento, para Gina o espetáculo teria parecido extraordinariamente excitante. Seu pai e seu meio-irmão passaram junto com o que calculou deveriam ser pelo menos quatrocentos cavalheiros. Seu marido, entretanto, não apareceu, e os primeiros pares, para as justas se dirigiram cada um para um lado do campo de batalha enquanto a multidão, decepcionada, gritava: “Lobo! Lobo!”
Antes de se enfrentarem, cada um dos dois cavalheiros trotou para a tribuna onde se achava sua esposa ou dama amada. Inclinaram as lanças, esperaram à concessão cerimoniosa de uma prenda, um lenço, uma fita, um véu, ou inclusive uma manga, que a dama atava orgulhosamente na ponta da lança. Uma vez realizado, ambos cavalgaram para os extremos lados opostos do campo de batalha, ajustaram o cavalo, verificavam o elmo, a viseira, a lança, e finalmente esperavam que soasse a trombeta. Na primeira nota, cravaram as esporas nas suas montarias e se lançavam rapidamente. A lança do francês golpeou o escudo de seu competidor ligeiramente desfocado. O escocês vacilou na sela e se recuperou rapidamente. Necessitaram de outros cinco confrontos antes que o francês recebesse finalmente um golpe que o fez cair na terra, com multidão gritando vitória.
Gina apenas observou o resultado do combate, apesar do cavalheiro ter caído virtualmente aos seus pés. Com a vista fixa nas mãos que mantinha cruzadas sobre o colo, esperou escutar de novo a chamada dos corneteiros.
Quando esta aconteceu, a multidão pareceu enlouquecer e, apesar de Gina fazer esforços para não olhar, finalmente não pôde evitar levantar a cabeça. Montando um bonito cavalo com vistosos arreios vermelhos, o francês que tinha chamado sua atenção durante o desfile devido, em parte, que era muito corpulento, e, em parte, pelos adereços que protegiam seus cotovelos com enormes peças de metal escamado que se abriam em leque e faziam lembrar as asas de um morcego. Agora também observou que embora usasse no pescoço uma elegante corrente, não havia nada de “caprichoso” ou formoso na figura de uma cruel serpente que luzia sobre seu peito. Dirigiu seu cavalo para uma das tribunas para o habitual pedido de uma prenda e, ao fazer, o fragor da multidão começou a diminuir.
Gina afastou o olhar, tremendo de terror, mas mesmo assim soube o momento exato que Harry entrou finalmente no campo de batalha montado a cavalo, porque a multidão guardou de repente um silêncio espectador, e ficou tudo tão quieto que o som dos trompetistas ressonou como um sino funerário no meio do impressionante silêncio. Incapaz de evitar, Gina levantou a cabeça e a voltou para ele. O que viu fez com que seu coração se detivesse por um instante. Em contraste com a alegria, o colorido e o espetáculo que havia por toda parte, seu marido estava completamente vestido de negro. As mantas de seu cavalo negro eram negras, o tecido que sobressaía do casco era negro, e o escudo não mostrava seu brasão, e sim a negra cabeça de um lobo. Inclusive para Gina, que o conhecia, oferecia um aspecto aterrorizador. Viu-o olhar para sua própria tribuna, e percebeu seu engano momentâneo quando fixou sua atenção em uma mulher sentada na poltrona que tinha sido destinada a Gina. Mas em vez de cavalgar para aquela dama, ou para quaisquer uma das outras sentadas nas tribunas que rodeavam o campo de batalha e que agitavam freneticamente seus véus e fitas para ele, Harry voltou Zeus na direção oposta.
Ginevra se sentiu morrer ao se dar conta de que Harry se dirigia diretamente para ela. A multidão também sentiu e guardou novamente silêncio, observando. Enquanto todos os que se encontravam na tribuna do clã Weasley começavam a lhe lançar maldições, Harry avançou Zeus até ter Gina ao alcance de sua lança, e se deteve. Mas em vez de inclinar a lança solicitando uma prenda que, estava certo, não lhe concederia, fez algo que Gina jamais tinha visto alguém fazer antes. Olhou-a fixamente, enquanto Zeus se movia inquieto, e depois, hábil, mas lentamente, fez descer a lança até o chão.
Era uma saudação! Estava saudando-a, e Gina ficou presa em uma dor e um pânico que superaram inclusive o que havia sentido quando Carlinhos morreu. Levantou-se na metade na cadeira, sem saber o que fazer ou dizer, e depois o momento passou. Harry girou Zeus e galopou para seu lado do campo de batalha, em frente ao francês, que ajustava a viseira do elmo sobre a cabeça, colocando-a mais firmemente sobre a garganta, e flexionava um braço para comprovar o peso da lança.
Harry se posicionou em frente ao seu competidor, abaixou a viseira, colocou a lança em riste... e permaneceu imóvel. Completamente imóvel preparado para o momento, esperando, mas com uma atitude fria, de violência contida.
Ao som da primeira nota do trompetista, Harry se agachou, afundou as esporas no Zeus e o lançou a galope, diretamente para seu adversário. Sua lança golpeou o escudo do francês com tal força que o escudo saiu voando para o lado e o cavalheiro efetuou uma cambalhota para trás, sobre si mesmo, e caiu no chão com a perna direita dobrada, de tal modo que não correu nenhum perigo de que a quebrasse. Harry continuou galopando até o extremo oposto do campo de batalha, voltou-se e esperou. Novamente imóvel.
Gina tinha visto MacPherson poucos momentos antes, e lhe pareceu um homem magnífico. Quando entrou no campo de batalha oferecia um aspecto tão letal como o próprio Harry, com as mantas do corcel brilhando e no escudo as cores verde e dourada do clã MacPherson.
Gina observou pela extremidade do olho que Harrye não afastava o olhar em nenhum momento de Ian MacPherson, e algo na forma como fazia indicou a Gina que estava estudando o futuro chefe do clã MacPherson, e que não subestimava de modo algum a ameaça que este representava. Ocorreu a Gina pensar que Harry e Ian eram os dois únicos cavalheiros que usavam armadura alemã, cujas linhas fortemente angulares imitavam o corpo humano. De fato, os dois únicos ornamentos que Harry levava na armadura eram duas pequenas pranchas côncavas, do tamanho de um punho, sobre suas ombreiras.
Deslocou o olhar para o rosto de Harry e quase pôde sentir o implacável peso de seu olhar, como parecia transpassar o Ian. Tão concentrada estava, contemplando seu marido, que não se deu conta de que Ian MacPherson acabava de deter seu cavalo em frente a ela e que nesse preciso momento estendia a ponta de sua lança para ela...
- Gina. - exclamou o pai de Becky, ao mesmo tempo em que a tocava no ombro, chamando sua atenção diante da presença do Ian.
Gina levantou o olhar e deixou escapar um suspiro angustiado, paralisado pela incredulidade, mas tia Elinor lançou um grito de exagerado regozijo.
- Ian MacPherson! - exclamou, e arrancou o véu. - Sempre foi o mais galante dos homens. - inclinou-se ligeiramente e atou o véu amarelo na lança do cavalheiro, que franziu o cenho.
Uma vez que Ian ocupou seu lugar no campo de batalha, em frente à Harry, Gina observou que seu marido tinha mudado sutilmente de postura. Permanecia quieto, como antes, mas agora se inclinava ligeiramente para frente, um pouco agachado, em atitude ameaçadora, ávido em lançar-se contra o inimigo que se atreveu a solicitar uma prenda de sua esposa. Soou a trombeta e os cavalos se lançaram a galope, adquirindo velocidade rapidamente. Justo no momento em que Harry, com a lança em riste, dispunha-se a golpear Ian MacPherson, ele lançou um grito de guerra capaz de gelar o sangue nas veias e atacou. Uma lança golpeou contra um escudo e, um instante depois, Ian e seu magnífico cavalo cinza foram derrubados juntos na terra e rodaram de lado, em meio a uma nuvem de pó.
Um rugido ensurdecedor brotou da multidão, mas Harry nem sequer ficou para desfrutar dos histéricos gritos. Com uma fria desconsideração para a coragem de seu inimigo caído, que nem sequer se incomodou em olhar, e cujo escudeiro já o ajudava a ficar em pé, Harry dirigiu Zeus para a saída do campo de batalha.
A seguir se celebraria o torneio, que era o que Gina mais temia, pois eram quase verdadeiras batalhas, em que os homens se enfrentavam em lados opostos, se jogando um contra o outro dos lados opostos do campo. A única coisa que impedia que se transformassem em autênticos massacres era a imposição de umas poucas regras, mas quando o arauto terminou de anunciá-las, os temores de Gina só se intensificaram. Como sempre, estava proibido utilizar armas pontiagudas. Era proibido golpear um homem pelas costas, ou golpear seu cavalo. Também estava proibido golpear um homem que fizesse uma pausa, coisa que só estava permitido fazer duas vezes, a menos que o cavalo caísse. O grupo ganhador seria aquele que terminasse com mais homens montados ou sem ter recebido nenhum ferimento.
Além disso, não havia outras regras, nem cordas nem cercas que dividissem às forças opositoras uma vez que se iniciasse a luta. Nada. Gina conteve a respiração, sabendo que ainda restava anunciar mais uma regra, e quando foi anunciada, sentiu-se desolada. Neste momento, o arauto anunciou que em virtude da habilidade e a dignidade dos cavalheiros, seria permitido o uso de espadas, assim como de lanças, embora pouco pontiagudas.
Dois grupos compostos por cem cavalheiros cada um, dirigidos por Harry e por Dumont respectivamente, entraram no campo de batalha em lados opostos, seguidos dos escudeiros que carregavam lanças e espadas de reposição.
Gina começou a tremer ao olhar para o lado dos cavalheiros de Dumont: seu pai estava ali, assim como Malcolm e MacPherson e uma dúzia de representantes de outros clãs, cujos distintivos reconheceu. O campo de batalha foi dividido, o lado inglês de um lado, o francês do outro e os escoceses em outro. Assim como na vida, aqueles homens se achavam divididos nos mesmos lados do campo de batalha. Mas com certeza as coisas não deviam ser dessa forma, pensou Gina; em um torneio, os guerreiros participavam para alcançar a glória individual e exibir alguma habilidade especial, não para que um inimigo vencesse o outro. Os torneios que houve entre inimigos, foram realizados alguns, tinham sido verdadeiros banhos de sangue. Gina tratou de acalmar seus mais negros presságios, mas sem o menor êxito; todos os instintos que possuía gritavam que algo inimaginável estava a ponto de acontecer.
Os trompetistas tocaram três vezes, e Gina começou a rezar pela segurança de todos aqueles que conhecia. A corda foi esticada, dividindo temporariamente o campo de batalha em dois; o som, dos trompetistas rasgou o ar pela quarta vez e a corda foi separada com um puxão. Duzentos cavalos se lançaram a galope, a terra tremeu sob os cascos dos cavalos, enquanto os guerreiros levantavam as espadas e lanças, e então aconteceu: vinte dos homens do clã de Gina, dirigidos por seu pai e seu irmão, separaram-se do grupo e se lançaram diretamente contra Harry, brandindo as espadas com sede de vingança.
O grito de Gina se viu abafado pelos rugidos da encolerizada desaprovação que os ingleses começaram a lançar ao sentir que os escoceses foram em busca de Harry como os cavaleiros do Apocalipse. Nos momentos em que se seguiram Gina assistiu a mais impressionante amostra de habilidade com a espada e o maior desdobramento de força que jamais tinha presenciado. Harry lutou como um possesso, com reflexos tão rápidos, com golpes tão poderosos, que desarmou seis homens de seus cavalos antes de ser finalmente derrubado do dele. Mas o pesadelo não fez mais que piorar. Gina, que sem se dar conta do que fazia ficou de pé igual a todos nas tribunas, tratou de distinguir seu marido entre o fragor do combate. Os cavalheiros de Harry sentiram que ele corria perigo e começaram a abrir caminho rumo a ele, do lugar onde Gina estava, pareceu como se todo panorama da batalha tivesse mudado de improviso. Harry se lançou para cima para sair do amontoamento de homens, como um demônio vingador, empunhando com ambas as mãos a espada, e se lançou com todas suas forças, contra... o pai de Gina.
Gina não chegou a ver que Harry descarregava um golpe sobre outro escocês das terras altas, em vez de sobre seu pai, porque cobriu o rosto com as mãos e lançou um grito. Tampouco viu o sangue que escorria de Harry, por causa de uma ferida que Malcolm tinha lhe infligido no pescoço com a adaga que levava escondida. Tampouco viu como lhe cortavam a armadura na altura da coxa nem como lhe davam golpes nas costas, nos ombros e na cabeça.
A única coisa que viu ao afastar as mãos do rosto foi seu pai que de algum modo continuava de pé, e que Harry atacava MacPherson e outros homens brandindo a espada e lançando golpes como um possesso, e que cada vez que golpeava, os homens caíam como ovelhas metálicas desconjuntadas.
Gina se voltou para Luna, que mantinha os olhos fechados.
- Gina! - exclamou tia Elinor - Não acredito que deva...
Mas Gina não prestou nenhuma atenção; a bílis se elevava em sua garganta como um rio amargo. Cega pelas lágrimas, pôs-se a correr para seu cavalo e tomou as rédeas das mãos do assombrado servo...
- Olhe milady! - exclamou o servo com entusiasmo ao mesmo tempo em que a ajudava a montar e assinalava para onde estava Harry, no campo de batalha. - Viu alguma vez alguém como ele?
Ela olhou mais uma vez e viu que Harry descarregava a espada sobre o ombro de um escocês. Viu que seu pai, seu irmão, o pai do Becky e outra meia dúzia de escoceses, levantavam-se do chão, que já começava a ficar manchado de sangue.
Viu a morte iminente.
Essa mesma visão a atormentou enquanto permanecia de pé em frente à janela aberta de seu dormitório, com o rosto pálido apoiado contra o marco, e os braços cruzados sobre o peito, como se tentasse conter de algum modo toda a dor e o terror que a dominavam. Fazia uma hora que tinha abandonado a tribuna, e as justas continuavam acontecendo durante pelo menos a metade desse tempo. Harry disse que tinha aceitado onze combates, e já tinha combatido em dois antes de participar do torneio. A julgar pelo anúncio do arauto, segundo o qual as justas se celebrariam imediatamente depois deste, encabeçados pelos cavalheiros mais habilidosos, Gina abrigava poucas dúvidas de que os combates de Harry seriam os primeiros a continuar na celebração do torneio. Seria uma gloria impressionante para o rei Henrique, pensou com uma vaga desventura, demonstrar a todos que, inclusive esgotado, seu famoso campeão era capaz de derrotar qualquer escocês que fosse bastante estúpido para desafiá-lo.
Já tinha contado cinco justas completas a julgar pelos gritos de vitória que brotavam da multidão quando cada perdedor abandonava o campo de batalha. Depois de outros quatro, Harry poderia abandoná-la também; para então, alguém lhe trazer sem dúvida a notícia dos muitos que tinha ferido ou matado. Enxugou uma lágrima que deslizava pela bochecha, e nem por um instante lhe ocorreu pensar que pudesse ter acontecido algo a Harry; ele era invencível. Tinha o visto assim durante suas justas, e no inicio do torneio. E, que Deus a perdoasse por isso, havia se sentido orgulhosa dele. Inclusive quando enfrentou MacPherson.
Sua lealdade estava dividida. Embora não pudesse ver o campo de batalha, sabia o que nela acontecia pelos prolongados rugidos e vivas, que aumentavam ao final de cada combate, não dedicavam grandes demonstrações ao perdedor. Evidentemente, os escoceses nem sequer eram dignos de receber um aplauso amável...
De repente, a porta do dormitório se abriu, e Gina deu um grito.
- Ponha a capa. - disse Ronald Potter em tom ameaçador. – Vai me acompanhar ao campo de batalha nem que tenha que lhe arrastar.
- Não penso em retornar para lá. - replicou Gina, voltando-se de novo para a janela. - Não tenho estômago para aclamar ninguém enquanto meu marido destroça a minha família o...
Rony a tomou pelos ombros, e a obrigou a olhá-lo. Sua voz soou como um selvagem.
- Eu lhe direi o que está acontecendo! Meu irmão está lá fora, nesse campo de honra, morrendo. Jurou que não levantaria a mão contra nenhum dos seus e assim que se deram conta disso os valentes homens de seu clã caíram sem piedade sobre ele. - Sacudiu-a com força e, entre dentes, acrescentou: - Destroçaram-no! E apesar de tudo, agora participa de mais uma justa... escuta os gritos da multidão? Estão aclamando por ele. Está tão gravemente ferido que não acredito que se dê conta de nada. Acreditou ser capaz de superá-los na justa, mas não pode, e outros quatorze escoceses o desafiaram.
Gina o olhou fixamente e seu pulso começou a acelerar loucamente, mas seu corpo parecia ter criado raízes, como se estivesse vivendo um desses pesadelos em que quer correr e não pode.
- Ginevra! - exclamou Rony com voz rouca. - Harry está permitindo que o matem. - Fez uma pausa, e com voz alterada pela angústia, acrescentou: - Está lá fora, lutando, morrendo por você. Matou seu irmão e está pagando... - deteve-se na metade da frase quando Ginevra se liberou de um puxão de entre suas mãos e pôs-se a correr...
Garrick Carmichael cuspiu no chão, perto de Harry, ao abandonar o campo de batalha, vitorioso, mas Harry já era indiferente a tais insultos. Levantou-se, cambaleando-se, sobre os joelhos, vagamente consciente de que o rugido da multidão se elevava até alcançar proporções ensurdecedoras. Levantou uma mão e com gesto vacilante tirou o elmo, que tratou de mudar para o braço esquerdo, mas este estava pendurado inerte ao lado do corpo, e o elmo caiu ao chão. Gawin corria para ele... mas não, não era Gawin, e sim alguém envolto em uma capa azul. Piscou, e tratou de focar o olhar, perguntando se por acaso seria seu competidor seguinte.
Através da imprecisa neblina de suor, sangue e dor que confundia sua visão e nublava sua mente, Harry acreditou distinguir por um instante a figura de uma mulher que corria para ele, com a cabeça descoberta e o cabelo, avermelhado, brilhando ao sol. Ginevra! Incrédulo, cerrou os olhos, aguçou o olhar, e o estrondo ensurdecedor da multidão se alterou ainda mais.
Harry tratou de ficar de pé, apoiando-se no único braço que não tinha sido quebrado, o direito. Ginevra tinha retornado... para ser testemunha de sua derrota. Ou de sua morte. Mesmo assim, não queria que o visse morrer daquele modo tão indigno, e com o último resto de força que restava, conseguiu ficar de pé, levantou uma mão e passou com o dorso pelos olhos. Sua visão clareou, e compreendeu que não tinha imaginado. Ginevra avançava para ele e um estranho silêncio se fez entre a multidão.
Gina abafou um grito quando chegou perto e viu o braço esquerdo pendurado inerte ao lado do corpo, quebrado. Deteve-se diante dele e o grito de seu pai, que lhe chegou de um lado, fez com que voltasse a cabeça para a lança que estava no chão, aos pés de Harry.
- Use-a! - gritou o conde de Weasley. - Use a lança, Ginevra!
Harry compreendeu então que ela estava ali para acabar a tarefa que seus parentes tinham iniciado, para lhe fazer o mesmo que tinha lhe feito a seu irmão. Imóvel, olhou-a, observou que as lágrimas escorriam por seu lindo rosto, ao mesmo tempo em que se inclinava lentamente. Mas em vez de pegar a lança caída, pegou-o pela mão e, levando-a aos lábios, beijou-a.
Através da neblina de dor e confusão, Harry sentiu finalmente que se ajoelhava diante dele, e um gemido brotou de seu peito.
- Querida. - disse com voz entrecortada, pedindo para que se levantasse - Não faça isso...
Mas sua esposa não quis escutá-lo. Diante de sete mil espectadores, Ginevra Weasley Potter, condessa de Rockbourn, ajoelhou-se diante do seu marido em um ato público de humilde obediência, com o rosto apertado contra sua mão, soluçando amargamente. Quando por fim se levantou, foram muito poucos os espectadores que deixaram de ver o que acabava de fazer. Uma vez de pé, retrocedeu um passo, levantou o rosto sulcado pelas lágrimas e endireitou os ombros.
Uma sensação de orgulho percorreu o machucado corpo de Harry, porque, de algum modo, ela tinha conseguido erguer-se com uma atitude tão honesta e desafiante como se um rei acabasse de nomeá-la cavalheiro.
Gawin se livrou da mão de Rony, que o tinha mantido seguro pelo ombro, e correu para Harry. Este passou o braço por cima do ombro de seu escudeiro e abandonou coxeando o campo de batalha.
Fez acompanhado de gritos e aclamações tão ressonantes, como os que escutou quando jogou fora de suas montarias Dumont e MacPherson.
Em sua tenda, que estava armada junto ao campo de justas, Harry abriu os olhos lentamente e se preparou para o estalo de dor que iria sentir com a recuperação da consciência. Mas não sentiu dor alguma.
A julgar pelo ruído que chegava até ele lá de fora, as justas continuavam, e se perguntou aturdido, onde estaria Gawin, quando se deu conta de repente de que alguém lhe segurava a mão direita. Voltou à cabeça e por um instante acreditou que estava sonhando: Ginevra se achava sobre ele, rodeada por um brilhante halo de luz devido ao sol que entrava na tenda. A visão daquele rosto, em que se desenhava um terno sorriso, era muito comovedor para suportar. Como se falasse de muito longe, ouviu-a dizer suavemente:
- Bem-vindo, meu amor.
De repente, Harry compreendeu a razão pela qual a via rodeada de uma luz que cegava a razão pela qual não sentia nenhuma dor, e a razão pela qual ela o olhava e lhe falava daquele modo.
- Já morri. - disse sem uma nota de paixão na voz.
Mas a visão que se inclinava sobre ele negou com a cabeça e se sentou cuidadosamente ao seu lado, no leito. Inclinou-se novamente, afastou-lhe uma mecha de cabelo da frente do rosto e voltou a sorrir, embora suas espessas pestanas estivessem umedecidas pelas lagrimas.
- Se tivesse morrido, - brincou com voz dolorida - teria sido obrigada a vencer meu irmão no campo de honra.
Notou os dedos a sua frente, e houve algo decididamente humano na pressão de seus quadris contra os seus. Provavelmente depois de tudo, não fosse uma visão angelical; provavelmente, depois de tudo, não tivesse morrido, decidiu Harry.
- Como faria? - perguntou, para comprovar se seus métodos eram espirituais ou mortais.
- Bom, - respondeu a visão, e lhe deu um suave beijo nos lábios - da última vez levantei a viseira do elmo e fiz isto...
Harry viu como sua língua surgia docemente e se introduzia em sua boca. Não, não estava morto. Nem sequer os anjos podiam beijar assim. Passou o braço são por seus ombros e a atraiu para ele, mas outro pensamento veio a sua mente.
- Se não estou morto, - perguntou com cenho franzido - como é que não está doendo nada?
- Graças à tia Elinor. - sussurrou ela. – Deu para você beber uma de suas poções.
Harry sentiu que sua mente por fim ficava clara; beijou-a nos lábios e ao sentir que ela correspondia com todo seu coração, experimentou uma alegria desconhecida. Quando finalmente a soltou, ambos ofegavam desejosos de encontrar-se em um lugar mais apropriado que essa tenda, de onde chegavam os gritos da multidão.
Ao término de um momento, Harry perguntou com calma:
- Estou gravemente ferido?
Gina engoliu saliva e mordeu o lábio inferior, lamentando que ele tivesse sofrido tanto por sua causa.
- É tão grave assim? - disse Harry em tom irônico.
- Sim. - sussurrou ela. - Tem o braço esquerdo quebrado, e três dedos. Feridas no pescoço e na clavícula, que segundo Rony e Gawin são obra do Malcolm, são profundas, mas já não sangram. A ferida da perna é monstruosa. Mas conseguimos conter a hemorragia. Recebeu um golpe terrível na cabeça, evidentemente quando não tinha o elmo, e estou certa de que quem deu foi um dos homens de meu clã. Além disso, tem o corpo coberto de horríveis machucados.
Harry arqueou uma sobrancelha e disse em tom de despreocupação:
- Pois não parece tão grave.
Gina esboçou um sorriso diante daquela descabelada conclusão, mas então ele acrescentou sereno:
- O que acontecerá depois disto?
Gina compreendeu imediatamente ao que se referia, e considerou rapidamente a magnitude do dano físico adicional que provavelmente sofreria se retornasse para participar de uma só justa a mais, e o comparou com o dano moral que experimentaria se não o fizesse.
- Isso depende de você. - respondeu depois de refletir um momento, e incapaz de esconder a animosidade que sentia por seu pai e seu meio-irmão acrescentou: - Além disso, aí fora, no campo da honra que minha família manchou, há um cavalheiro chamado Malcolm Weasley que lhe desafiou publicamente faz uma hora.
Harry esfregou a face com os nódulos dos dedos, e perguntou com ternura:
- Devo supor por esse comentário que realmente me acha tão bom para derrotá-lo com o escudo bem apertado ao ombro, sobre um braço quebrado?
- Poderia? - perguntou ela, inclinando a cabeça.
- Certamente. - respondeu ele com um amplo sorriso.
Fora da tenda, de pé ao lado de Hagrid, Gina observou Harry inclinar-se para agarrar a lança que Gawin lhe estendia. Olhou-a, vacilou um segundo e depois esporeou Zeus, dirigindo-o novamente para o campo de batalha. Gina lembrou então que não tinha lhe pedido aquilo que ela mais tinha esperado, e o chamou para lhe pedir que aguardasse.
Entrou correndo na tenda de Harry, pegou a tesoura que tinha utilizado para cortar tiras de tecido para enfaixar suas feridas. Depois se pôs a correr de volta ao corcel negro que agora permanecia imóvel, chutando o chão com o casco dianteiro, deteve-se e olhou seu sorridente marido. Depois, inclinou-se e se cortou um pedaço da borda do vestido de seda azul, ficou nas pontas dos pés e o amarrou na ponta da lança de Harry.
Hagrid caminhou até ficar ao seu lado, e ambos olharam Harry cavalgar para a justa, enquanto a multidão lançava exclamações de aprovação. Gina observou o brilhante tecido azul que flutuava da ponta de sua lança, e apesar de todo o amor que sentia por Harry, as lágrimas vieram aos seus olhos. A tesoura que segurava na mão pesava como um pesado símbolo do que acabava de fazer, no momento que amarrou sua prenda na lança de Harry, tinha matado todos os laços que a uniam a seu país.
Engoliu saliva e se sobressaltou de repente quando a pesada mão de Hagrid pousou suavemente sobre sua cabeça. Tão pesada como um martelo de guerra permaneceu ali por um instante e depois deslizou ao longo da face atraindo seu rosto contra o peito do gigante. Era um abraço.
- Não tem por que se preocupar, querida, vai despertar. - disse tia Elinor a Gina, com absoluta convicção. - Ainda permanecerá adormecido durante várias horas.
Um par de olhos abrasadores se abriu, percorreram a estadia e pousaram encantados sobre a valente e bela mulher de cabelo avermelhado que estava de pé diante da porta de seu quarto, escutando as palavras de sua tia.
- Mesmo que não tivesse lhe administrado essa infusão, - continuou tia Elinor enquanto se dirigia para os frascos e pós que havia sobre a arca - qualquer homem que retorna ferido depois de participar de cinco justas, dormiria pelo menos durante toda a noite. Embora, na verdade - acrescentou em tom de admiração - não necessitasse de muito tempo para acabar com todos eles. Que resistência tem esse homem. E que habilidade. Jamais tinha visto nada igual.
No momento, Gina se preocupava muito mais a comodidade de Harry que as façanhas realizadas depois de retornar às justas.
- Doerá terrivelmente quando despertar. Desejaria que lhe administrasse um pouco mais da poção que lhe deu antes que retornasse ao campo de batalha.
- Não acredito que fosse prudente. - disse a senhora. - Além disso, a julgar pelo aspecto das cicatrizes que cobrem seu corpo, está acostumado à dor. E como já te disse, não é prudente utilizar mais de uma dose de minha poção. Entristece-me comunicar que também possui certo efeitos... indesejáveis.
- Que tipo de efeitos? - perguntou Gina, que ainda esperava poder fazer algo para ajudá-lo.
- Para começar - disse tia Elinor em tom atrevido - será incapaz de render na cama durante ao menos uma semana.
- Tia Elinor, se isso for à única coisa que lhe preocupa, administre a ele mais dessa poção. - disse Gina com firmeza, disposta a sacrificar o prazer físico para assegurar a comodidade de seu marido.
Tia Elinor vacilou. Finalmente assentiu com um gesto resistente. Agarrou um frasco de pó branco da arca.
- É uma pena - observou Gina - que não possa acrescentar algo que lhe permita manter a calma quando lhe disser que Luna está aqui e que ela e Rony desejam se casar. Desejava tanto levar uma vida pacífica, e duvido muito que tenha passado alguma vez por tantas complicações como as que conheceu desde a primeira vez que me viu.
- Estou certa de que tem razão. - disse tia Elinor - O que não à ajuda em nada. Mas Sir Godfrey me confiou que sua graça nunca tinha rido tanto como tem feito desde que te conheceu, de forma que só resta esperar que desfrute rindo mais para compensar toda uma vida de complicações.
- Ao menos - disse Gina com expressão sombria ao observar, estendendo sobre a mesa, o pergaminho que tinha sido enviado por seu pai - não terá que viver esperando a cada dia que meu pai o ataque para libertar suas filhas, já que deserdou às duas.
Tia Elinor olhou compreensivamente sua sobrinha, e depois disse com voz filosófica:
- Sempre foi um homem mais capacitado para odiar que para amar, só que você nunca se deu conta disso. Se quiser saber minha opinião, a pessoa a quem mais ama no mundo é a si mesmo. Se não fosse assim, jamais teria tentado te casar, primeiro com o velho Balder, e depois com MacPherson. Nunca se interessou, exceto em perseguir seus próprios objetivos egoístas. Luna o vê como ele é, visto que ele não é seu verdadeiro pai e não está cega pelo amor.
- Também deserdou meus futuros filhos. - sussurrou Gina tremula. - Imagine o quanto deve me odiar para deserdar também seus netos.
- Quanto a isso, não foi o que fez que o fizesse tomar essa decisão. Nunca desejou ter netos, se fossem gerados pelo duque.
- Eu... não acredito. - disse Gina, que não desejava que a culpa a torturasse. - Também teriam sido meus filhos.
- Não para ele. - replicou tia Elinor. Segurou um pequeno copo na luz, calculou a quantidade de pó que continha e depois acrescentou um pingo a mais. - Este pó, administrado em pequenas quantidades durante uma semana, faz com que um homem se torne completamente impotente. Que é precisamente a razão pela qual seu pai desejava que eu a acompanhasse a Claymore. - prosseguiu enquanto vertia um pouco de vinho no copo. - Desejava se assegurar de que seu marido não pudesse gerar um filho. Algo que, como eu me preocupei de lhe dizer, significava que você também ficaria sem ter filhos, o que ele não se importou absolutamente.
Gina conteve a respiração, primeiro horrorizada diante das ações de seu pai, e depois diante do pensamento de que tia Elinor pudesse ter seguido suas instruções.
- Não... não colocou nada disso na comida ou na bebida de meu marido, não é verdade?
Sem se dar conta do tenso e atormentado olhar que lhe dirigiu da cama, tia Elinor tomou seu tempo em agitar e mexer com uma colher, antes de responder:
- Santo Deus, não! Não teria feito uma coisa assim por nada do mundo. Entretanto, - acrescentou enquanto se aproximava com o copo da cama - não posso deixar de pensar que quando seu pai decidiu que depois de tudo não me enviaria a Claymore, deve ter sido porque lhe ocorreu um plano melhor. E agora, se deite e trate de dormir. - aconselhou sem se dar conta de que não tinha feito mais que aumentar a dor de Gina ao convencê-la ainda mais de que seu pai tinha tentado enterrá-la em um convento pelo resto de seus dias.
Tia Elinor esperou até que Gina partisse em direção ao seu quarto. Satisfeita pelo fato de que sua sobrinha se entregasse ao descanso que tanto necessitava, voltou-se para o duque e ficou boquiaberta. Levou a mão à garganta com expressão de alarme ao observar o olhar funesto que Harry lhe dirigia.
- Prefiro a dor. - disse Harry laconicamente. - Já pode tirar esses pós do meu quarto. - Fez uma pausa, e acrescentou - E de minha casa.
Recuperada do susto, a senhora sorriu com um gesto de aprovação.
- É exatamente o que pensei que diria querido rapaz. - sussurrou orgulhosamente. Voltou-se para partir, mas se deteve, voltou-se de novo para ele e desta vez, advertiu-lhe: - Espero que esta noite tenha cuidado com esses pontos que lhe fiz... enquanto se assegura de que a poção que lhe administrei não lhe causou nenhum dano irreparável.
Como estava com o braço e os dedos da mão esquerda fortemente enfaixada, Harry demorou vários minutos para se levantar, vestir a bata de casimira cinza e amarrar a faixa negra ao redor da cintura. Abriu sem fazer ruído à porta que dava ao dormitório de Gina, convencido de que estaria na cama ou adormecida ou, o que era mais provável, sentada na escuridão, tentando assimilar tudo o que tinha lhe acontecido nesse dia.
Deteve-se no vão da porta e sentiu que ela não fazia nada do que tinha imaginado. As velas da parede estavam acesas e ela se encontrava serenamente de pé diante da janela, olhando, ao que parece, o vale iluminado pelas tochas. Ao contemplar seu delicado perfil e sua cabeleira avermelhada, ocorreu a Harry compará-la com uma magnífica estátua que tinha visto na Itália, e que representava uma deusa do panteão romano que olhava para o céu. Sentiu-se orgulhoso de Gina, de sua coragem e de seu espírito indomável. Em um dia tinha desafiado a sua família e seu país, e tinha se ajoelhado diante dele diante de sete mil pessoas; tinha sido deserdada e se sentia desiludida e, apesar de tudo, ainda era capaz de permanecer diante da janela e contemplar o vale com um tênue sorriso nos lábios.
Harry vacilou, e se sentiu repentinamente inseguro a respeito de qual seria a melhor forma de se aproximar dela. Quando várias horas atrás tinha abandonado o campo de batalha, sentiu-se perto do colapso e até agora não tinha tido a menor oportunidade de falar com ela. Ao considerar tudo o que Gina tinha sacrificado por ele, dizer apenas obrigado por isso não parecia adequado. E se, por acaso, ela não estivesse pensando que tinha perdido para sempre a sua família e seu país, não precisava dizer nada que a lembrasse.
Decidiu que melhor se fosse o próprio estado de ânimo de Gina que decidisse a forma como devia se comportar. Entrou no quarto e seu corpo jogou uma sombra sobre a parede, ao lado da janela.
Quando Harry se deteve ao seu lado, Gina se voltou para ele e, tentando esconder sua preocupação, disse:
- Suponho que não serviria de nada se eu insistisse para que retornasse para a cama, não é verdade?
Harry apoiou o ombro sadio contra a parede e conteve a urgência que sentiu de mostrar-se de acordo com ela e retornar para a cama... sempre e quando o acompanhasse.
- Não, não servirá de nada. - disse sem lhe dar importância. - No que pensava enquanto olhava pela janela?
- Eu... não estava pensando. - respondeu ela, ruborizando.
- O que fazia então? - perguntou Harry em tom de curiosidade.
Ela esboçou um sorriso melancólico e voltou à cabeça para a janela.
- Estava... falando com Deus. - respondeu. - Tenho esse costume.
Assombrado, Harry perguntou:
- De verdade? E o que ele te disse?
- Acredito que me disse: “De nada”
- Por quê? - perguntou ele com um sorriso.
Gina o olhou nos olhos e respondeu com solenidade:
- Por você.
Harry deixou de sorrir e, passando o braço direito por seus ombros, atraiu-a para ele.
- Gina. - sussurrou com voz rouca, afundando o rosto entre seus cabelos. - Gina, eu te amo.
Gina se fundiu com ele, modelou seu corpo aos rígidos contornos do dele, ofereceu-lhe os lábios diante do seu beijo feroz e ardente e depois tomou seu rosto com as mãos. Apoiada ligeiramente contra seu braço bom, olhando-o intensamente nos olhos, disse:
- Acredito que eu te amo mais.
Satisfeito e com um ânimo excelente, Harry permaneceu na escuridão; Gina estava acomodada ao seu lado, com a cabeça apoiada em seu ombro. Ele começou a lhe acariciar a cintura enquanto olhava fixamente para o fogo que ardia na lareira, lembrava o modo como ela tinha caminhado para ele, no campo de batalha. Viu-a ajoelhar-se diante dele e depois se levantar de novo, com a cabeça orgulhosamente erguida, olhando-o com amor e sem disfarçar as lágrimas que brilhavam em seus olhos.
Que estranho pensou Harry, que depois de ter saído vitorioso de mais de cem batalhas reais, o maior momento de triunfo de toda sua vida tivesse sido encontrado precisamente em um campo de batalha justamente onde se encontrava sozinho, ferido e derrotado.
Essa manhã sua vida tinha lhe parecido quase tão negra como a morte. Agora, por outro lado, sustentava a alegria de sua vida entre os braços. Alguém ou algo, o destino ou a fortuna, ou provavelmente o mesmo Deus de Gina, tinha olhado essa manhã e tinha visto sua angústia. E, por alguma razão, Gina tinha sido devolvida para ele.
Fechou os olhos, deu a Gina um beijo na face, e pensou: “Obrigado”.
E no fundo de seu coração, teria jurado que escutou uma voz que respondia: “De nada”.
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