CAPÍTULO X
CAPÍTULO X
De pé junto à janela, Harry olhava para a elegante multidão que transitava pela avenida. Fazia seis semanas que se encontrava em Londres. A primavera estava agora no auge e seu jardim, um dos mais lindos da cidade, exibia impecáveis gramados e canteiros repletos de flores fragrantes.
A chuva amena, que caíra quase incessantemente desde o princípio de abril, havia sido substituída pelos ventos vindos do sul. Os dias eram dourados, estimulando as mulheres bonitas a usarem leves vestidos de seda e chapéus emplumados, e a passearem nos parques. Diariamente, havia bailes e reuniões, jogos de cartas e recepções matinais. Um homem, de boa condição social e que dispusesse de uma bolsa recheada de ouro, poderia desfrutar de uma vida confortável, com poucos inconvenientes e muitas satisfações.
Gostava da atmosfera suave de Londres, cidade onde nascera e se criara, e onde tudo lhe era familiar. Apesar disso, sentia que seu coração não estava mais ali, mas na Escócia. E perguntava-se como seria a primavera em Glenroe e se Gina estaria sentindo sua falta.
Se dependesse dele, já teria voltado para lá. Mas seu trabalho em favor de Charles estava tomando mais tempo do que o previsto. As coisas não estavam marchando como imaginara. Os jacobitas ingleses eram numerosos, mas poucos dentre eles se animavam a erguer a espada por um príncipe inexperiente.
A conselho de lorde George, falara com vários grupos influentes, não só para dar-lhes uma idéia da disposição de ânimo dos clãs da Alta Escócia, mas também para transmitir-lhe todas as informações que recebia do próprio príncipe.
Fora a Manchester e mantivera conluios secretos com membros de sua facção política. Mas era arriscado. O governo estava alerta agora que os rumores de uma guerra com a França corriam soltos pelo país. Os simpatizantes dos Stuart e seus partidários ativos seriam acusados de traição e encarcerados, se descobertos. Isso na melhor das hipóteses. Lembranças de execuções públicas e deportações permaneciam frescas na memória de todos.
Após seis semanas, tinha a esperança, mas apenas isso, de que se o príncipe Charles pudesse agir rapidamente e dar início à sua campanha, seus seguidores ingleses cerrariam fileiras em torno dele. Pedir que lutassem por algo tão vago quanto uma causa, quando isso significava arriscar nome, fortuna e também a vida, não os comoveria de modo algum.
Voltando-se da janela, ele estudou o retrato da avó. Sua decisão já estava tomada havia anos, quando era ainda um menino e ouvia histórias de reis exilados e de lutas por justiça. Não trocaria por outros os ideais que herdara de seus antepassados.
Mas não tinha remédio senão partir, e sem alcançar coisa alguma. O governo tinha meios de descobrir quem conspirava contra o rei da Inglaterra. Até aquele momento, seu nome o mantivera acima de qualquer suspeita. Porém, isso podia não durar para sempre. Principalmente agora que a guerra com a França parecia outra vez inevitável, assim como uma nova revolta jacobita.
"É mais prudente desaparecer de cena", pensou, enquanto revolvia os carvões do fogo que se extinguia. Partiria sozinho, encoberto pelas sombras da noite. Quando voltasse a Londres, traria Gina consigo. Juntos se estabeleceriam no solar de seus ancestrais, brindando ao legítimo rei e a seu regente.
Iria voltar à Escócia pelo príncipe, como ela dissera. Mas também para reivindicar o que era seu. Ali, teria que travar outra batalha, talvez mais importante do que aquela pela causa dos Stuart. E estava determinado a vencer.
Horas depois, naquela mesma tarde, enquanto se preparava para outra noitada no clube, seu velho mordomo bateu-lhe à porta dos aposentos.
- Sim?
- Queira me desculpar, my lord. O conde de Whitesmouth quer falar com o senhor. Parece que é um assunto, de certa urgência.
- Nesse caso, mande-o subir.
Segundos depois, o conde de Whitesmouth, um homem baixo, de rosto redondo e juvenil aparecia no limiar.
- Harry...
Harry fez um sinal a Parkins.
- Pode ir, agora.
Depois que o criado se retirou, ele caminhou para uma mesa e encheu duas taças de vinho.
- Entre, Johnny, e diga-me o que aconteceu.
Seu amigo aceitou a taça que ele lhe oferecia e esvaziou o conteúdo de um trago.
- Temos problemas. - disse então, deixando-se cair numa cadeira.
- De que natureza?
- Miltway, aquele cabeça oca, embriagou-se na casa de sua amante e falou demais.
- Ele citou nomes?
- Não temos certeza, mas parece que sim. E, nessas circunstâncias, o seu é o mais óbvio.
Nenhuma emoção se revelou nos olhos calmos de Harry.
- A amante dele não é aquela dançarina ruiva?
- Ela sabe um bocado de coisas, Harry. Aquele jovem idiota tem mais dinheiro do que cérebro!
- Ela ficará de boca fechada se lhe dermos uma boa recompensa?
- Tarde demais. Foi por isso que vim até aqui. Ela já passou algumas informações a nossos inimigos. Suficientes para que Miltway fosse preso.
- Pobre imbecil!
- Nossos companheiros acham que você será interrogado, Harry. E se descobrirem algo que o incrimine...
- Não sou tão tolo quanto Miltway. - Harry fez uma pausa. - E você, Johnny, tem a necessária cobertura?
- Negócios urgentes exigem minha presença no campo. - O conde de Whitesmouth sorriu. - Para todos os efeitos, já estou a caminho de minha propriedade.
- Ótimo.
O jovem conde serviu-se de mais vinho.
- O que pretende fazer?
- Vou partir para a Escócia esta noite.
- Essa partida súbita pode parecer suspeita. Está pronto para justificá-la?
- Estou cansado de simular.
- Nesse caso, desejo-lhe uma boa viagem.
Harry sentiu-se tocado com a sua nobre cortesia.
- Você se arriscou muito, vindo avisar-me. Fico-lhe grato por isso.
- Obrigado, mas não perca tempo.
- Apenas o suficiente para me preparar. Você falou com mais alguém sobre a indiscrição de Miltway?
- Não. Achei que seria melhor vir diretamente a sua casa.
Harry assentiu.
- Fez bem. Passarei algumas horas no clube, como tinha planejado, para saber se os rumores já começaram a circular. Quanto a você, fará melhor saindo de Londres antes que alguém perceba que não está a caminho de sua propriedade.
Whitesmouth levantou-se e pegou o chapéu.
- Um conselho, Harry. Não subestime Cumberland, o filho do Príncipe-Eleitor. Ele é jovem, mas extremamente ambicioso.
No clube, Harry foi calorosamente cumprimentado e convidado a reunir-se aos jogadores de cartas ou dados. Com o pretexto de tomar uma taça de vinho em companhia do visconde Leighton, ele desculpou-se polidamente e dirigiu-se para junto da lareira, onde seu amigo o aguardava.
- Não quer tentar a sorte, Potter?
- Não nas cartas, Leighton. E não esta noite, perfeita para uma viagem ao campo.
Leighton manteve os olhos estudadamente fixos no borgonha.
- Há notícias de tempestade ao norte.
- Tenho pressentimento de que, breve, haverá uma tempestade aqui.
Harry aproveitou o instante em que as vozes dos jogadores tornaram-se mais altas e inclinou-se para frente.
- Miltway fez confidências comprometedoras à sua amante e foi preso.
Leighton imprecou algo entre os dentes e depois levantou os olhos.
- Ele falou muito?
- Ninguém tem certeza, mas precisamos avisar alguns companheiros.
O rosto astuto do visconde abriu-se num sorriso irônico.
- Considere essa missão cumprida, meu caro. Deseja companhia, para a viagem?
Harry ficou tentado a dizer sim. O visconde Leighton, com seus coletes de brocado cor-de-rosa e mãos perfumadas, dava a impressão de um perfeito dândi. Mas não havia outro companheiro de armas melhor do que ele.
- No momento, não. Obrigado.
- Nesse caso, vamos brindar a dias melhores. - Enquanto erguia a taça, Leighton lançou um olhar aborrecido à mesa mais próxima. - Temos que mudar de clube, meu caro Potter. Este estabelecimento está abrindo suas portas a pessoas de todas as categorias.
Harry olhou para o grupo de jogadores, reconhecendo o homem que estava à banca e boa parte dos outros. Mas havia um homem magro debruçado sobre a mesa que parecia não estar aceitando sua má sorte de maneira polida, como convinha a um cavalheiro.
- Não o conheço. - disse, tomando um gole de vinho.
- Eu já tive esse duvidoso prazer. O sujeito é um oficial que, em breve, irá terçar armas com os franceses. Parece, no entanto, que ele não é mais o favorito de nossas damas, apesar da imagem romântica que procura passar de si mesmo.
Harry riu e preparou-se para partir.
- Devido, talvez, à sua falta de educação.
- Devido ao tratamento que ele dispensou a Alice Beesley, quando essa jovem teve a infeliz idéia de tornar-se sua amante.
- A encantadora sra. Beesley não se distingue pela inteligência, mas pelo que me disseram, é uma mulher bastante amável.
- Evidentemente, Standish não a achou tão amável, pois a fez experimentar a força de seu chicote.
Harry não conseguiu evitar a expressão de profunda indignação.
- O homem deve ser um louco ou... - Ele interrompeu-se bruscamente. - Você disse... Standish?
- Sim. Coronel, acredito. Ele granjeou uma péssima reputação durante o escândalo que envolveu Porteous, em 1735. Parece que ele sentia prazer em saquear e queimar aldeias e que isso valeu-lhe uma promoção.
- Ele devia ser capitão em 1735. - observou Harry pensativo.
- Possivelmente. - Um brilho de interesse iluminou os olhos de Leighton. - Você o conhece, afinal?
- De nome... e a fama. - murmurou Harry, lembrando-se de ter ouvido Rony dizer que o capitão Standish era responsável pela violação de sua mãe, pelas casas queimadas e pela morte dos seareiros indefesos. - Acho que chegou a hora de nos conhecermos melhor. Sabe Leighton, vou tentar a sorte, como você me sugeriu.
- Está ficando tarde, Potter. - Harry sorriu.
- Algumas horas a mais não farão diferença.
Não lhe foi difícil entrar no jogo. Menos de vinte minutos depois, ajudado por sua boa sorte, ele já comprara a banca, ao passo que o coronel amargava uma perda considerável. Por volta da meia-noite, quando havia apenas três jogadores à mesa, fez um sinal ao criado que servisse mais vinho e, deliberadamente, acompanhou Standish na bebida. Pretendia matar o homem em igualdade de condições.
- Parece que os dados não o estão favorecendo, coronel.
- Ou o estão favorecendo demais!
As palavras de Standish eram ditadas não só por influência da bebida, mas também da amargura. Tudo conspirava para excluí-lo das mais simples e das mais necessárias dentre todas as satisfações da existência. Estava a zero... falido mesmo de esperança. Contava obter os favores de uma jovem dama, coisa que lhe permitia alimentar seu gosto pelo jogo e conquistar um lugar na sociedade, mas essa confiança morrera naquela tarde. Estava certo de que fora obra de Beesley, aquela vagabunda!
Sacudindo raivosamente a caixa de couro, Standish atirou os dados e tornou a perder.
- É uma pena. - Harry sorriu e tomou mais um gole de vinho.
- Não me importo de perder. - resmungou o oficial.
- Espero que não considere falta de patriotismo de minha parte vencer um dragão do rei. Mas, aqui, somos apenas homens comuns.
- E estamos aqui para jogar, não para falar! - completou Standish com rudeza.
- Num clube de "cavalheiros", fazemos ambas as coisas. Mas, talvez, o coronel não tenha tempo para freqüentá-los.
O rosto de Standish ficou rubro. Ele não tinha certeza, mas achava que havia sido insultado.
- Passo a maior parte de meu tempo lutando pelo rei, não vadiando nos clubes!
- Naturalmente. - Harry jogou e venceu. - Isso explica por que o senhor não tem traquejo para os jogos de azar.
- O senhor parece ter traquejo demais, my lord. Os dados favoreceram-no desde o instante em que sentou-se a esta mesa.
- Verdade? - Harry lançou um olhar de cumplicidade a Leighton, postado a seu lado. - Não reparei.
- O senhor reparou, sim! E isso está me parecendo mais do que sorte!
Um silêncio tenso seguiu-se a essa observação.
- Talvez o senhor queira se explicar melhor. - disse Harry, depois de alguns segundos.
Standish perdera e bebera além da conta. Olhou para Harry e odiou-o por ser o que ele não era: nobre e rico. Perdendo toda a prudência, disse em alto e bom som:
- Prove-me que esses dados não estão viciados!
O silêncio transformou-se em murmúrios. Alguém disse:
- Não lhe dê atenção, Potter. Ele está embriagado.
Harry inclinou-se para a frente, sorrindo.
- Está embriagado, Standish?
O coronel lançou um olhar à sua volta. Todos estavam contra ele porque chicoteara uma vagabunda. "Gostaria de chicotear a todos"!, pensou, esvaziando o copo.
- Estou suficientemente sóbrio para saber que os dados não podem cair sempre a favor de um único homem!
- Pois vamos quebrá-los! - Harry fez um sinal ao proprietário do clube. - Traga um martelo, por favor.
Houve um coro de protestos. Harry ignorou-os e conservou os olhos cravados em Standish. E gostou de ver que a testa do coronel estava perlada de suor.
O proprietário do clube voltou com o martelo, como lhe fora ordenado, desmanchando-se em mesuras:
- My lord, eu o imploro para não agir impulsivamente. Não é necessário.
- Pois eu lhe asseguro que é necessário. Quebre os dados.
Segundos depois, Standish olhava para os fragmentos que estavam sobre o pano verde. "Foi um estratagema", pensou, empalidecendo. De algum modo, aqueles bastardos o haviam logrado. Queria vê-los todos mortos, esses aristocratas de maneiras delicadas e vozes suaves!
- O senhor está embriagado, coronel. - disse Harry, lançando-lhe ao rosto o conteúdo de seu copo.
Standish levantou-se da mesa, o vinho escorrendo-lhe do rosto magro. A bebida e a humilhação haviam feito seu trabalho. Ele teria arrancado a espada da bainha ali mesmo, se os outros não o tivessem segurado pelo braço.
- Eu o espero à entrada da cidade, entre quatro e cinco horas da manhã! Veremos, então, se sabe manejar tão bem a espada quanto os dados!
- Como quiser, senhor. - Harry virou-se para o visconde. - Meu caro Leighton, peço-lhe que seja meu padrinho.
Um pouco antes do amanhecer, um grupo de homens de negro encontrava-se no descampado que orlava a cidade. A névoa se desprendia do chão, aumentando o ar de abandono do lugar ermo sob a luz fria e distante da estrela matutina.
Leighton deixou escapar um suspiro, enquanto observava o amigo.
- Suponho que você tenha suas razões para essa loucura.
- Sim, tenho.
O visconde olhou para o céu, que o sol nascente tingia de rosa, e franziu os cenhos.
- Fortes suficientes para atrasar sua viagem?
Harry pensou em Gina e na expressão de seu lindo rosto, enquanto falava do abuso que sua mãe sofrera. Pensou em Molly, tão frágil e delicada, e confirmou:
- Sim, muito fortes.
- O homem é um canalha. Mas isso não me parece uma razão para estarmos aqui, a estas horas da manhã. Porém, se acha que é seu dever, estou do seu lado. Pretende matá-lo?
- Sim, pretendo.
- Seja rápido, então. Não quero me atrasar para o café da manhã.
Dito isto, Leighton foi conferenciar com o padrinho de Standish, um jovem oficial que estava pálido e excitado à idéia de assistir a um duelo.
Depois que as armas foram examinadas e julgadas aceitáveis, Harry apanhou uma delas e sopesou-a cuidadosamente. Standish, de sua parte, estava pronto e quase ansioso. Não tinha dúvida de que acabaria com o jovem pedante, e que voltaria para a caserna em triunfo!
Cumprimentaram-se como era de praxe, tocando as lâminas. Depois, tomaram posição, rompendo a quietude do campo com o retinido das armas. Harry mediu cuidadosamente seu adversário e, afastando Gina da mente, enfrentou-o com habilidade e precisão de gestos. O homem tinha experiência e sabia guardar-se, mas seu estilo era agressivo demais.
- O senhor é hábil no manejo da espada, coronel. Meus cumprimentos.
- Hábil suficiente para espetar seu coração, Potter!
- Veremos. - As lâminas tocaram-se uma, duas, três vezes. - Mas o senhor não precisou de uma espada para violentar lady Weasley.
Estas palavras romperam a concentração de Standish. Mas anos de treinamento somados a um forte instinto de conservação levaram a melhor, fazendo-o neutralizar o arremesso de Harry antes que sua espada encontrasse o alvo.
- Não se viola uma prostituta. - disse entre dentes, percebendo que fora levado ao duelo como um carneiro ao matadouro. - O que essa vagabunda escocesa representa para o senhor?
- Vai morrer pensando nisso, coronel.
Continuaram a esgrimar em silêncio; Harry frio e impassível, enquanto o coronel ardia de raiva e humilhação. As espadas se chocavam agora com mais vigor, competindo com o som de suas respirações ofegantes e silenciando até os pássaros.
Súbito, num ousado ecart, Standish simulou um ataque pela direita, que confundiu seu adversário, obrigando-o a guardar-se. Depois retesou os músculos e vibrou-lhe um golpe, atingindo-o no ombro. Uma cabeça mais fria teria tirado vantagem disso. Mas o coronel via apenas o sangue e, com ele, sentiu o sabor da vitória. Julgando-se a um passo dela, atacou com redobrado furor.
Harry aparava um golpe atrás do outro, tomando tempo, sem se importar com o sangue que lhe escorria ao longo do braço. Recuou, e, durante uma fração de segundo seu peito ficou a descoberto. A luz da vitória já iluminava as feições de seu opositor, que se lançou para frente, visando-lhe o coração.
Furtou agilmente o corpo e desviou-lhe a arma um momento antes que ela o atingisse. Girando então com rapidez vertiginosa, fez sua espada descrever uma curva ampla e mergulhou-a no peito dele. Quando retraiu a lâmina manchada de sangue, o coronel já estava morto.
Leighton examinou o corpo junto com o oficial de rosto pálido e anunciou:
- Você o matou, Potter. É melhor que tome seu caminho sem demora. Eu darei um jeito nessa confusão.
- Obrigado.
- Deixe-me cuidar de seu ferimento.
Harry entregou-lhe a espada e mostrou, com um gesto cansado, o inestimável Parkins que o esperava a alguns metros de distância.
- Meu criado fará isso.
Gina despertou pouco antes do nascer do sol, banhada em suor. A lembrança do sonho permanecia, com menos nitidez, um tanto desconexo, mas ainda oprimindo seu coração. Um sonho impregnado de horror, que aumentava o sofrimento em que vivia desde o dia em que Harry partira.
"E loucura", pensou sentando-se na cama. "Ele está em Londres, a salvo."
Por um certo tempo, permitira-se acreditar que ele voltaria, como havia prometido. Mas, a véspera do casamento de Rony e Mione, sentia-se insegura. Se Harry não voltara para o casamento de seu melhor amigo, era porque não voltaria nunca mais.
Confusa e amargurada, concluíra que seu amor não havia sido mais do que um interlúdio em suas vidas tão diferentes. Um delicioso fogo de amor, mas fora da realidade. Agora, restavam-lhe apenas as lembranças.
Viu no espelho o seu rosto alterar-se de súbito e as lágrimas subirem-lhe aos olhos, transbordando. Longos soluços abafados sacudiram-na tão profundamente que, por um momento, julgou estar gritando. Afinal, esgotada a emoção, lamentou aquela fraqueza tão contrária ao domínio que tinha de si mesma.
Retomando a posse da vontade, desceu para tomar café com sua família. Depois, mergulhou de corpo e alma no trabalho. E sempre que ameaçava cair em depressão, tentava convencer-se que os momentos de encantamento que tivera dariam para preencher uma vida.
O crepúsculo já esfumava as formas, quando saiu furtivamente da casa, vergando os calções de montaria. Sua mãe e Mione escolhiam os fios para tecer e Gwen estava visitando um dos doentes da aldeia. Ninguém notaria sua ausência.
Sombras espessas no bosque de pinheiros que ela atravessava inclinavam-se e afastavam-se à sua passagem.
Quando alcançou a orla, puxou suavemente as rédeas do cavalo e desmontou.
A relva, junto à margem, era brilhante e fresca e entremeada de flores brancas e amarelas. Colheu um punhado delas, enfiou-as nos cabelos, e depois deitou-se de costas, com às mãos cruzadas sob a nuca.
Fechou os olhos e não resistiu à recordação de Harry, deixando que as imagens que visualizava a acalmassem ao invés de atormentá-la.
Ao sentir um leve toque, como se um inseto tivesse pousado em sua face, ergueu a mão para afastá-lo, mas não abriu os olhos. Queria permanecer mais um pouco a sonhar com o que poderia ser seu futuro. "Harry", pensou, "como eu queria que me beijasse." Sorriu levemente ao sentir um toque suave nos lábios.
- Olhe para mim, Gina.
Ela obedeceu automaticamente, ainda imersa em seu devaneio. Quando encontrou um par de olhos verdes fixos nela, experimentou uma felicidade tão grande, que permaneceu muda, sem saber o que dizer.
Ele viu as feições delicadas resplandecerem de ternura, de agradável surpresa. Puxou-a para si, pressionando os lábios contra os dela.
- Como senti sua falta, querida!
Podia ser verdade? A mente de Gina girava em turbilhão, enquanto ela o envolvia em seus braços.
- Harry... é mesmo você? Parece uma coisa irreal vê-lo aqui agora. - disse, temendo que ele desaparecesse de repente. - Beije-me outra vez!
Ele a beijou outra vez, querendo transmitir o que sentira ao vê-la adormecida no mesmo lugar em que haviam feito amor. Logo despiam-se com urgência, na ânsia de saciar a paixão que a saudade fizera crescer.
Gina o abraçou com força, as mãos deslizando pelo corpo forte de Harry, acariciando-o, tocando-o sem a timidez do primeiro encontro, mas com a desenvoltura de uma mulher que reencontrara o homem amado.
A noite já cobria Glenroe. Entregues ao doce langor que se seguiu aos momentos de êxtase, eles continuaram abraçados, desfrutando a felicidade de estarem juntos.
- Mal consigo acreditar que você está aqui... - ela falou, olhando-o nos olhos.
- Ora, menina, eu não disse que voltaria? - Ele curvou-se para beijá-la. - Eu te amo, Gina. Nada poderia me impedir de voltar para você.
- Esteve fora durante tanto tempo e não me escreveu uma só vez.
- Seria arriscado. Daqui a pouco vai começar a batalha, Gina.
- Então... - Ela interrompeu-se, ao ver seus dedos manchados de sangue. - Harry, você está ferido!
Sobressaltada, examinou a faixa que lhe rodeava o ombro. Estava ensopada de sangue.
- Foi atacado novamente? Os Campbell!
- Não. Foi um pequeno ajuste de contas em Londres.
- Como assim?
- Não vamos falar sobre isso agora, querida. Já anoiteceu e devemos voltar para casa.
Ela rasgou a camisa dele para fazer uma nova faixa.
- Como foi que você me encontrou aqui?
- Eu poderia dizer que apenas segui os impulsos de meu coração. Mas a verdade é que recebi a informação de Malcolm. Ele a viu sair em disparada. - Fitou-a embevecido e então pediu: - Por favor, Gina, diga o que estou ansioso por ouvir.
- Eu te amo, querido. Mais do que jamais imaginei que seria capaz.
- E irá se casar comigo?
Quando ela baixou os olhos, contrafeita, ele explodiu:
- Você diz que me ama, mas quando eu falo em casamento, parece que estou lhe propondo ir à forca!
- Já lhe disse que não posso ser sua esposa.
- Pois eu lhe digo que pode. - Arrancou-lhe a camisa das mãos e vestiu-a. - Vou falar com seu pai.
- Não, não faça isso!
- Você não me deixa outra alternativa. Eu te amo Gina e não quero passar mais uma só noite na agonia da dúvida.
Ela suspirou.
- Quando a guerra começar, você partirá e eu ficarei à espera. Vamos nos dar tempo para enfrentar o que está para acontecer.
- Pois fique sabendo que, no final, eu não lhe darei outra escolha.
Agradecimentos especiais:
Babi Mione: Que bom que gostou do capitulo.... O Harry pediu a ruiva em casamento, mas não antes dela pensar que ele so a quer como amante.. Beijos.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!